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Um alfabeto extraordinário (a experiência em versos e imagens de Reggie Oliver)

8/9/2017

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Uma das características mais perenes da humanidade, talvez, seja sua tendência a evitar o incongruente, o incognoscível. Optamos por um reconhecimento dos objetos que nos cercam – se queremos evitar a perturbadora experiência do Unheimlich freudiano – cristalino, sem surpresas ou sobressaltos. A multiplicidade do engenho e da arte humanas segue esse mesmo padrão, e isso, claro, inclui as editoras. Evita-se o livro monstruoso, ou seja, aquele marcado pela heterogeneidade e hibridismo desde a Antiguidade, pois o alvo privilegiado é o todo harmônico, o resultado esperado, o elemento facilmente reconhecível e catalogável. Em sua Arte Poética, Horácio reprova o livro monstruoso, constituído por partes desiguais e desarmônicas, afirmando que tais totalidades multiformes são os aegri somnia, esses produtos da imaginação desenfreada, inacessíveis a um ordenamento saudável, convencional. Talvez, Horácio imaginasse que esses aegri somnia um dia fossem extintos, que a imaginação encontraria um caminho uniforme, que a mente humana se conformaria com a projeção estética do belo que seguisse padrões elevados de decoro. Mas estava errado: apesar de toda nossa organização, talvez mesmo instintiva, de toda essa busca de um imaginário depurado, os aegria somnia persistem, encontrando locais inusitados para sua eclosão. Talvez um digno representante herdeiro desse tipo de construto que tanto desagradava o digno Horácio seja, justamente, The Hauntings at Tankerton Park, livro ilustrado de Reggie Oliver, publicado com elegante e discreta suntuosidade pela Zagava Press.

À primeira vista, nada haveria de incomum em Hauntings: trata-se de um alfabeto ilustrado, em que cada letra do alfabeto é ilustrada por um verso e por uma imagem simultaneamente. Abaixo, temos um exemplo desse gênero didático de criação literária (em versão espanhola), retirado do blog El desván del abuelito:
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​No caso do trabalho de Reggie Oliver, as letras ilustradas compõem uma breve narrativa, constituída pelo ato de montagem/desmontagem das imagens e dos versos. Trata-se sem dúvida de uma inovação, embora mesmo ela já tenha sido precedida por algumas outras experiências, como The Dangerous Alphabet de Neil Gaiman e Gris Grimly. Mas a simplicidade, austeridade e mesmo convencionalidade Hauntings é apenas aparente: trata-se de um legítimo pesadelo, uma manifestação intrincada em que imagens, versos e um contexto narrativo tornam-se elementos heteróclitos de uma totalidade que ressoa na mente do leitor e que se distancia das referências tranquilizadoras de gênero ou forma. Nesse sentido, são as imagens que saltam aos olhos do leitor de forma imediata; extremamente sugestivas, elas criam uma verdadeira gramática de interiores e ambientações vitorianas, incluindo até mesmo as ornamentações orientalizantes acessórias ao estilo, como vemos na letra X de Xerxes. O estilo de Oliver, por ele empregado na ilustração de seus contos, encontra aqui uma expressão ou mesmo tempo mais sutil e mais direta, em que são evocados tanto a aspereza da xilogravura quanto a suavidade de claro-escuro que valoriza as transições e as sombras, como as águas-fortes de Goya. 

Se o livro fosse apenas essas imagens detalhadas, esses ambientes ao mesmo tempo vertiginosos e sufocantes nos quais ocorre o impossível, o absurdo, Hauntings já seria um livro memorável. Mas ele vai além disso graças a outros dois elementos heteróclitos: os versos e a narrativa. No caso dos versos, o autor buscou certa singeleza dos versos infantis:

“F was the Frog they acquired from a farm
To eat up the finger that caused such alarm”

A rima simples evoca o non-sense do universo infantil, mantendo, contudo, a literalidade do elemento descrito na pavorosa imagem do sapo gigantesco devorando um dedo igualmente desproporcional, inumano. Essa tensão entre a forma (os versos singelos), a literalidade do sentido e o diálogo com a imagem que ilustra o verso e que ultrapassa essa funcionalidade aparentemente limitada criam um efeito notável. Por outro lado, esses versos escapam da funcionalidade didática do silabário ou do alfabeto ilustrado – Reggie Oliver não pretende ilustrar o seu leitor com a memorização das letras do alfabeto. O que ele quer é contar a história de uma família que se mudam para uma mansão vitoriana, encontrando nesse novo lar as mais inusitadas aparições. Essa ânsia narrativa desloca novamente a percepção do leitor, tornando a experiência dessa viagem por imagens e versos bastante inusitada e única. De fato, a edição da Zagava colabora para a obtenção de todos esses efeitos por ser primorosa: tenho, em minhas mãos, a versão mais barata. Mesmo essa versão simples impressiona desde a capa – inteiramente preta, um negativo de uma das imagens internas do livro – pelo tamanho, qualidade da impressão e formato, torna a revisita da breve narrativa um prazer renovado. 

E, de fato, essa repetição, o ato de revisitar, torna-se chave nesse breve volume. Walter Benjamin, o filósofo alemão que trabalhou com temas eruditos como o drama barroco alemão, o narrador (a partir de Nikolai Leskov), o conceito de história e as passagens parisienses, era igualmente fascinado pela materialidade inevitável do livro para crianças e suas curiosas, estranhas idiossincrasias. Para Benjamin a criança materializaria um verso de Goethe: “Es ließe sich alles trefflich schlichten, könnte man die Sachen zweimal verrichten” (tudo ocorreria com perfeição, se se pudesse fazer duas vezes as coisas). A repetição fornece um prazer espantoso para a criança; pois, de fato, Hauntings desloca seu leitor (adulto ou criança) para essa dimensão de imenso prazer na repetição, em ver novamente aquelas imagens espantosas, repetir os versos, refazer o percurso da narrativa. Uma vez mais. E novamente.
Nota: a citação de Goethe foi gentilmente corrigida por Jonas Plöger.
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A natureza da invisibilidade (sobre o universo de John Howard em “Visit of a Ghost”)

7/25/2017

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A velha máxima do Eclesiastes 1:9, “nihil novi sub sole” (Não há nada de novo sob o Sol), parece materializar de modo geral, uma espécie de regra, impiedosa, estabelecida, inflexível como o aço. Mas o fato é que a inovação, o novum não precisa surgir de uma alteração brutal, de uma revolução em termos absolutos, totais. Há modificações espantosas que surgem de pequenas nuances, manipuladas com destreza, habilidade, sensibilidade. Quando diante desse tipo de novidade, em uma novela, romance, poema ou filme, sentimos esse arrepio benfazejo despertado pelas obras-primas – algo que sentimos tão logo contemplamos esse “FIN” cinematográfico, que fecha o mais novo livro de John Howard, Visit of a Ghost.

O novum dessa breve (pouco mais de 35 páginas) narrativa de Howard surge inicialmente de dois aspectos relacionados diretamente com a trama. O primeiro deles, já uma característica conhecida daqueles que acompanham esse extraordinário autor, é a localização: a cidade imaginária de Steaua de Munte. Trata-se de um triunfo da imaginação de Howard, obtido através do arranjo econômico de elementos aparentemente triviais. O mapa imaginário da ficção é imenso, diversificado, desde as lendas de Preste João a Jonathan Swift, de William Faulkner a Gabriel García Márquez. Mas Steaua de Munte é uma paisagem familiar construída pacientemente, seus elementos mínimos em conjunção com outros muito mais amplos, dando à totalidade uma figuração fantástica, quase de realidade alternativa. Nesse sentido, John Howard parece ter em mente um trecho do poema “Juan López y John Ward”, de Jorge Luis Borges: “El planeta había sido parcelado en distintos países, cada uno provisto de lealtades, de queridas memorias, de un pasado sin duda heroico, de derechos, de agravios, de una mitología peculiar, de próceres de bronce, de aniversarios, de demagogos y de símbolos. Esa división, cara a los catógrafos, auspiciaba las guerras.” 

O segundo aspecto, nesse sentido, surge logo no título: a ideia de fantasma. Trata-se de um elemento fantástico tão empregado em tantas formas de narrativa diferenciadas que sua existência torna-se praticamente irrisória – o leitor, diante dessa palavra, inicia o processo mental de acomodação desse conceito em alguma das inúmeras possibilidades já conhecidas e compartilhadas no imenso acervo de significados disponíveis, reconhecidos, catalogados. Mas aqui o fantasma desdobra-se, englobando aspectos de aparência simples, mas que estão distantes de certa singeleza inocente. O encontro desses dois fantasmas é mantido em boa parte da trama como um evento potencial, algo que ocasiona um extraordinário quid pro quo cuja complexidade surge de uma escalada de incompreensão múltiplo, algo construído de forma simples mas natural, como tantos outros equívocos cotidianos. Quando esses dois fantasmas finalmente convergem, em um evento particularmente extraordinário, tal encontro climático revela o que talvez seja o ponto crítico da narrativa, em termos temáticos: a descoberta de uma outra Europa, talvez inviável nos dias de hoje, talvez inviável desde sempre, mais aberta ao olhar e à presença do Outro. Nesse sentido, a história de John Howard trouxe à minha mente um ensaio de Ezra Pound entitulado “The Passport Nuissance”, publicado no The Nation a 30 de novembro de 1927. Nesse breve ensaio, Pound vitupera contra a formação de uma burocracia nova que, após a Primeira Guerra Mundial, tornava essa atividade desinteressada que é viajar mais e mais complicada. Nesse mesmo espírito, um dos personagens afirma (e esse é o dístico que aparece na parte posterior da sobrecapa) "My new book will be called Around Europe", ou seja, "Meu novo livro vai se chamar A Europa ao Redor". Trata-se de uma outra Europa, potencialmente acolhedora embora cercada das usuais nuvens tempestuosas da guerra, da intolerância. Mas, talvez, esse seja apenas um sentido possível, uma leitura de muitas disponíveis.

Fisicamente, o livro é extraordinário por sua unidade, realização aliás usual da editora Ex Occidente/Mount Abraxas. A tipografia equilibrada, a opção pela fotografia como elemento significativo, mesmo o uso desse recurso cinematográfico inesperado, o “FIN” ao final da obra. Aliás, o uso de recursos fotográficos, aliados com formatações inteligentes de paginação, estabeleceu efeitos únicos, cinematográficos. Pois, de fato, trata-se de uma história que poderia estar nas telas do cinema, como A Condessa Descalça (de Joseph L. Mankiewicz), A Última Ordem (de Josef von Sternberg) ou Grilhões do Passado (de Orson Welles).
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Livros impossíveis (sobre Astronautilia) - Parte 2

7/12/2017

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 Alguns livros possuem um impacto todo especial em sua existência mesma, seu *ser no mundo*; por não possuírem uma apresentação padronizada, uma estrutura exterior convencional, tornam-se objetos de fascínio antes mesmo de serem abertos. Alguns apresentam uma capa estranha, chocante ou extraordinária, estando nessa imagem externa sua fonte de magnetismo mais evidente e concreta. Assim, a tradução para o francês do romance de J. G. Ballard The Atrocity Exhibition (1970), feita por François Rivière e publicada em 1976 pela Editions Champ Libre, com o título La Foire aux Atrocités, pela coleção Chute Libre (queda-livre) – apresenta uma dessas capas extraordinariamente marcantes. Trata-se de uma espécie de retrato, em forma de ilustração cuja autoria é desconhecida, na qual temos um rosto (feminino, provavelmente) obliterado por venda e mordaça. As cores da imagem (o vermelho vão fundo, o verde, o marrom claro da pele, o negro que cria certo contraste) são poderosamente evocativas, embora a imagem em si tenha pouco a ver com o conteúdo do livro. Outra forma, mais complexa, de um livro expressar sua potência em si mesmo é pelo seu volume, a maneira como sua estrutura externa se apresenta ao leitor – nesse sentido, as recentes coletâneas Booklore e The Whore is This Temple são imponentes de forma peculiar. A primeira ao evocar a multiplicidade de uma biblioteca por seu conflito entre formato e conteúdo; a segunda, por ser uma espécie de objeto impossível, um tipo de grimório contemporâneo embora seja, de fato, uma coletânea de criações poéticas e narrativas.

Astronautilia está próximo dessas duas tendências, mas de uma forma muito própria, pois seu impacto acontece em ondas sucessivas, que jogam o leitor de um sobressalto aparentemente superado a outro., culminando em um impacto final muito próprio e decisivo. Em sua sobrecapa, de um forte tom azul, temos uma ilustração sugestiva de Václav Pazourek como a primeira imagem que confrontamos, a capa de fato: trata-se de um retrato, de perfil, bastante colorido (o estilo sugere um expressionismo vagamente primitivista) do que aparenta ser um guerreiro do passado, provavelmente um hoplita da Grécia Antiga. É possível identificar na imagem o escudo, o elmo, a lança que esse soldado ostenta. Mas a ilustração, ao mesmo tempo, escapa dessa determinação por um traço de futurismo tecnológico que a atravessa – o espaço branco entre o rosto e o fundo da imagem sugerem um capacete de astronauta, adaptado para uso no espaço sideral; os elaborados arabescos no elmo sugerem uma civilização e uma história que não são inteiramente humanas; o olho do hoplita, por fim, repuxado e multiplicado (seriam lentes? Ou um olho alienígena, de fato?) por efeito do traço empregado pelo ilustrador garante a persistência do efeito de estranheza. Essa imagem extraordinária serve de cobertura para a capa dura da edição, bem mais sóbria – azul escuro suavemente marmorizado, com a parte em grego do título gravada em tons prateados enquanto a parte tcheca está em baixo relevo –, que remete a coleções como as traduções de obras da Antiguidade publicadas por editoras como a Éditions Les Belles Lettres. 

Mas esse impacto provocado pela rica imagem da sobrecapa, pela solidez da capa e mesmo pelo volume desse livro razoavelmente denso constituem o primeiro momento, a preparação para o impacto ainda maior com aquilo que poderíamos denominar a descoberta linguística de seu conteúdo. Pois, logo nas primeiras páginas, o leitor está diante de uma confusio linguarum de proporções consideráveis: há textos em inglês, latim, tcheco – mas tudo isso é apenas a porta de entrada para o poema, milhares de hexâmetros em glorioso grego homérico escritos à mão.
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Livros impossíveis (sobre Astronautilia) - Parte 1

6/22/2017

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Existem certos livros que parecem não existir – ou melhor, parecem existir apenas como uma possibilidade ficcional, um tipo de interação imaginária. Desde Rabelais, que fazia seu gigante Pantagruel empregar seu tempo lendo obras-primas imaginárias que incluíam um guia seguro para a flatulência em público, escrito por certo Magister Noster Ortuinus, não poucos autores povoaram sua ficção, seu universo compartilhado com a realidade, de obras livros impossível. São volumes que, caso existissem de fato (pois isso parece improvável, uma realização técnica inviável), seriam como o volume perdido da Encyclopedia Britannica encontrada por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares no conto “Tlön, Uqbar, orbis Tertius” – parte de uma conspiração que visa demolir os alicerces de nossa realidade. Mas, certos momentos, cruzamos com esses livros imaginários; nosso tato reconhece suas texturas, a suavidade de suas páginas e a graciosa lisura de sua capa. O momento em que encontramos livros imaginários (ou que poderiam ser imaginários) é como se encontramos uma brecha na continuidade de uma realidade cotidiana, sistemática, prosaica, imanente. Posso dizer que, algumas vezes em minha vida, encontrei esses volumes semi-imaginários nos mais diversos locais – bibliotecas, pequenas livrarias, bancas de livros usados em plena rua, livrarias virtuais, sites de pequenas editoras artesanais (parte desses livros, aliás, foram resenhados aqui, neste blog, que surgiu por causa deles).

​Um dos últimos encontros com esses livros que parecem tornar o tecido da realidade mais delgada e fácil de se esgarçar – para se romper e se tornar um pedaço mutável do imaginário – foi com o inacreditável livro Astronautilia/Hvězdoplavba, do polígrafo tcheco Jan Křesadlo (na verdade, o pseudônimo de Václav Pinkava), publicada por Ivo Železný, editor famoso por seu trabalho de popularização do esperanto. Trata-se de um livro espantoso, que chegou dessa terra distante (ao menos de meu ponto de vista, um pedestre do hemisfério sul), que se dissolve em uma bruma igualmente imaginária, a terra do Golem e de Kafka, da República Checa, de uma pequena cidade cuja curiosa sonoridade do nome, para um falante do português, soa ao mesmo tempo poética e feérica. Ao abrir o pacote, me deparei com um alentado tomo, em um estojo de papelão sólido. Esses estojo, ao mesmo tempo rústico e funcional, realizado com perícia, deixava ver em sua capa apenas a assinatura do autor, em uma caligrafia convulsiva – uma segura antecipação do conteúdo do estojo, já visível na lombada do livro que tal arranjo mantinha exposto. Pois, de fato, esse conteúdo seria ainda mais surpreendente.

Livro único em mais de um sentido, Astronautilia/Hvězdoplavba será alvo de uma série de pequenos filmes e comentários, que inaugurará uma nova metodologia de nosso blog. Espero que seja do agrado de todos (em todo caso, enviem, se for o caso, comentários a respeito desse e de outros temas).
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Extinção, uma novela gráfica

4/19/2017

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"Uma após outra, todas essas Terras são submersas em chamas renovadoras, para renascer antes de serem novamente consumidas, o fluxo monótono de uma ampulheta que eternamente se esvazia e gira a si mesma para nova contagem. É algo novo que sempre será antigo; algo antigo que é novo."
(A eternidade pelos astros, de Louis-Auguste Blanqui)

Após muito tempo de elaboração, o projeto de crowdfunding da adaptação do conto "The Extinction Hymnbook" – presente nas espantosas coletâneas The Gift of the Kos'mos Cometh! A Homage to Night and Kosmos e Lanterns of the Old Night – para formato graphic novel, ilustrada pelo jovem e talentoso Fabio Laoviahn, está pronto e consumado. Alguns desenhos podem ser vistos na galeria a seguir e o link para a campanha encontra-se disponível no link abaixo.

​Extinção: Projeto de Graphic Novel
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O fantasma do livro

9/20/2016

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O livro de horas de Jeanne D’Evreux (foto retirada de medievalfragments).
Toda uma nova mitologia poderia ser desenvolvida tendo por base os livros possíveis, aqueles que foram imaginados mas nunca escritos. Ou que se perderam para todo o sempre em uma dessas mudanças de trama da História, sempre cruel com a fragilidade da imaginação. Há um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que parece oferecer uma perspectiva terrivelmente sedutora para qualquer escritor. Trata-se de “El milagro secreto”, parte da seção “Artifícios” do livro Ficciones (1944), que fala de um poeta que, após rápida condenação por um tribunal nazista, encontra-se diante de um pelotão de fuzilamento. Ele trabalhava em uma peça de teatro particularmente difícil e seu desejo, possivelmente, seria terminá-la antes das balas de seus algozes destroçarem seu corpo. Era, evidentemente, uma esperança vã, mas alguma divindade ouviu o poeta e concedeu-lhe um ano, entre o momento do disparo e o impacto das balas, para que ele concluísse sua obra. Assim foi feito e logo que os últimos reparos foram finalizados, as balas se colocaram novamente em movimento. O poeta, protagonista do conto, não teve tempo ou possibilidade de realizar sua obra definitiva em um formato editorial cabível; apenas sua memória e a divindade que teve com ele alguma consideração conheceriam o conteúdo do que havia projetado em sua mente. Por isso, Borges, autor e narrador, oferece ao leitor não uma reprodução dessa obra insólita, inacessível e não registrado, mas seu insólito percurso. Nesse sentido, Mark Valentine nos oferece o mesmo em seu Wraiths – o percurso sinuoso, insólito e complexo de obras que nunca chegaram a tomar forma ou que se tornaram invisíveis.

​O ensaísmo de Mark Valentine é vibrante, inovador e sugestivo. Um dos aspectos desses ensaios, sem dúvida, é a abordagem/recriação de obras perdidas, inacabadas, invisíveis. Em Wraiths, temos dois de seus ensaios focando essa forma específica de criação não existente, de possibilidade não concretizada mas que atiça a imaginação de um tipo muito específico de animal – o bibliófilo, o indivíduo que nutre essa fascinação obcecada, algumas vezes torturante, pelo livro, como objeto, forma, conceito. O primeiro ensaio é justamente “Wraiths” (algo como “espectros”) e trata dos livros de poesias que provavelmente foram produzidos na virada do século XIX para o XX na Inglaterra, mas que aparentemente não existem de fato. A época foi povoada por livros de poemas breves e preciosos, pequenas jóias da indústria editorial, mas nem todos tiveram essa materialização essencial, a forma definitiva do livro. Os livros de poemas imaginários descritos por Valentine são como miragens complicadas, cuja existência é atestada inclusive por testemunhos, mas que se desvaneceram e não deixaram vestígio. Valentine, nesse primeiro ensaio, utiliza esses testemunhos, essas evidências indiretas para tratar de tal corpus invisível; trata-se de uma metodologia inteligente, pois essas evocações indiretas trazem ao leitor algo da vida incomum desses criadores de obras primas desmaterializadas. Essa evocação fornece, por um paradoxo de representação, algo como um vislumbre de seus poemas perdidos. Pois, de fato, tais criações inexistentes vão ainda mais longe que esses sonetos esparsos e vaporosos que Mallarmé escreveu para impressão em leques. Esses autores de obras perdidas atingiram algo como a concretização de uma utopia da imaginação: a construção poética tão breve, suave, sofisticada, que se dilui em fragmentos ominosos ou felizes na própria existência do poeta e em sua época. 

O segundo ensaio, “What Became of Dr. Ludovicus”, trata da aventura de criação não realizada ainda mais intrincada: um romance perdido, que fora escrito a quatro mão por Ernst Dowson e Arthur Moore. Tratava-se de um “shocker”, que era a maneira como os vitorianos denominavam romances centrados em elementos bizarros, inquietantes e/ou sobrenaturais. O ensaio acompanha a produção do romance através de cartas trocadas entre os dois autores; o nível de detalhamento desse processo de produção, evocado por Valentine, é bem grande, incluindo detalhes como o uso de um caderno de notas compartilhado que ambos autores empregavam para escrever os capítulos. O leitor acompanha, assim, o desenvolvimento (algumas vezes problemático) de cada capítulo e o destino do material finalizado, rejeitado sistematicamente onde quer que os autores tentassem publicá-lo. Rejeição justa, tendo em vista a qualidade, ou uma miopia editorial, tão frequente, diante de um material interessante? Valentine coloca essa questão em aberto, ressaltando contudo – com sua alma de bibliófilo – como seria interessante se o livro tivesse existido, conhecer sua narrativa tendo em vista uma origem tão aparentemente rica e tumultuada. Essa, talvez, seja a essência mais evidente do livro, o elo de união entre os dois ensaios: o desejo pela existência de um livro, de certa forma, pode fazer com que o próprio o leitor (que já se converteu em pesquisador, investigando pistas de sua paixão aqui e ali), por uma sorte de magia evocatória, realize essa prestidigitação de um livro perdido que faz com que, do nada, surja alguma coisa.

Como livro, Wraiths é um objeto delicado e precioso, de fato uma bela homenagem à arte editorial fin de siècle. Apenas título surge, dourado, na capa – uma fonte sinuosa parece marcar aqui ao mesmo tempo ousadia e contenção, único traço distintivo em um papel rugoso e cinza, como a textura pouco polida, mas rica em nuances de uma pedra. As duas ilustrações de Ronald Balfour, que abrem os ensaios, parecem evocar de forma decisiva e nada sobrecarregada, a época vitoriana. Curiosamente, o próprio livro de Mark Valentine, hoje é parcialmente invisível – a editora Zagava informa que a tiragem de 50 exemplares já se encontra esgotada. Embora os ensaios possam ser encontrados em outros livros (notadamente, na excelente coletânea de ensaios Haunted by Books da Tartarus Press) a preciosidade desse pequeno livreto, tão delgado que poderia desaparecer a qualquer instante, é insubstituível.
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Extinction, the Notation Script (primeiras fotos)

9/16/2016

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A edição especial de Extinction, the Notation Script finalmente está pronta. Seu formato sanfonado e alongado, com sobrecapa especial, contendo ainda duas imagens bastante significativas (aos que conhecem o conto e o roteiro). Essa versão terá apenas dez exemplares (os subsequentes terão acabamento convencional e tamanho A5). Essas versões especiais ainda estão disponíveis neste link (também há a versão digital, em epub ou PDF).
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Considerações para a compreensão da imagem precedente

9/2/2016

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(O martírio de Santa Catarina​, de Albrecht Dürer)

As rodas do suplício se romperam com a explosão & morte dos carrascos & o céu se crispou & trovejou uma chuva de pedras, contudo o fogo terrestre se afastou de Santa Catarina, ela cuja pescoço estava lacerado pelo ferro & ainda assim findava.

Mas há algo mais sobre essa imagem, ou melhor, está mais completamente escrito em conformidade com o eterno pelo que foi entalhado na madeira.

A roda está ao centro, um pouco excêntrica, como se se tratasse do centro de um leque, que é completa embora não circular. E há uma manivela para mover a roda & essa roda é dupla & as duas metades giram em sentido inverso, da mesma forma que se abre um leque.

As chamas fluem dessa rotação como a água de um moinho & os fragmentos do solo da colina se precipitam na direção delas, que persistem, & as árvores na parte superior estão em outro plano, dispostas horizontalmente, empilhadas, descendo da seção à direita, sobre uma nuvem & alimentam o giro da roda.

A chuva que cai do céu desaba sobre os dois lados de um triângulo isósceles no qual as extremidades são a base: a base preenchida torna-se curva (a forma do pluviômetro) & cria o braço direito do carrasco, as vestes erguidas & a espada à direita, outro lado é coberto pelo braço esquerdo, que leva ao ar igualmente as vestes de acordo com a ventilação das aletas e da roda como se fosse um catavento & as duas orelhas foram um pentágono no qual a pandorga se inverte & a forma do triângulo é visível também, uma significação de Deus, o Pai de fogo que surge entre as nuvens pesadas.

Acima é possível ver a cidade, sustentada pela roda, na qual há uma colina que desce desde o céu & que alcança seu ponto inferior onde a terra se converte nos carrascos mortos & as folhas ao redor da roda & há três níveis na imagem, significando cada um dos três mundos. A sinuosa colina é harmoniosa com as dobras da vestimenta & a bela linha dos músculos das pernas dobradas, que são as pernas de Dürer.

Essas vestimentas & essas pernas são a cauda & a vestimenta de um grande Santo Decapitado que preenche a imagem, com  a distância das ancas aos ombros do carrasco, do umbigo aos olhos de Catarina, do comprimento inferior até a linha do horizonte dos limites da colina. O pescoço dividido da santa termina de acordo com as arestas agudas dos raios que partem do homem alongado, nos prolongamentos dos traços que se adensam de modo indefinido, que são menos estocada e mais gládio. A cabeça & o cabelo enrolam-se na cidade em declive & nas árvores. E na direção do moinho da roda, em rotação nova.

​Alfred Jarry (
Perhinderion, n. 02, junho de 1896)
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Acima, apresentamos, como uma introdução aos novos livros da Raphus Press, a tradução de um breve comentário de Alfred Jarry para a expressiva, tumultuada e apocalíptica gravura de Dürer. A primeira edição da nova série da Raphus, centrada em traduções, terá um trabalho de Jarry para sua outra revista imagética, L'Ymagier, além de uma introdução com um retrato/exegese imaginária.
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Ensaios Visuais e Exegese Imaginária

6/13/2016

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Uma narrativa produz uma série de efeitos complexos, após surgir de uma forma ou de outra em nosso universo – especialmente quando essa forma é a do livro. Os efeitos mais evidentes são especulativos, no domínio da racionalização crítica: o ensaios, a resenha, o estudo. Mas existem alguns efeitos menos visíveis – ideias truncadas, analogias indiretas, construções ficcionais apenas parcialmente possíveis. Chamo esses efeitos menos visíveis de ​exegese imaginária e são eles o objeto do primeiro chapbook lançado pela Raphus Press, iniciativa editorial que é um desdobramento da Bibliofagia, especializado em pequenas tiragens, obras únicas e artesanais.

​Assim, The Ghost of the Western Borders é um pequeno livro de exegeses imaginárias e ensaios visuais, disponível em versão impressa e eletrônica (Epub e PDF). Visitem a página da Raphus Press para informações mais detalhadas.

Aos interessados no volume, por favor entre em contato através do campo Contato para valores em Real.
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Divertimento Noturno

6/6/2016

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Basta apenas uma fonte de luz, projetada através de uma lente na direção de uma tela em branco. No meio do caminho, a luz atravessa uma chapa de vidro, brilhante como uma multifacetada jóia, pintada com cenas do cotidiano, cenas engraçadas ou dramáticas transfiguradas do cinzento cotidiano. Ou então são cenas fantásticas, de naufrágios, de fantasmas, o próprio inferno projetado em suas cores mais espalhafatosas, em suas formas mais aberrantes. O espetáculo de lanterna mágica, acessível nos dias de hoje apenas através de recriações em certas performances artísticas ou evocado nas narrativas de autores como Balzac, na visionária filosofia teológica de Swedenborg e na paciente reconstrução conceitual realizada por historiadores como Laurent Mannoni, foi a base imaginária destas narrativas, elas mesmas chapas de vidro moldadas na vida e na obra de autores únicos, à margem dos processos usuais de canonização que tornam a Cultura algo previsível.

Tais espetáculos noturnos foram traduzidos para a forma de livro pelo paciente trabalho editorial de Dan Ghetu e pela criteriosa revisão do material original pelo extraordinário Damian Murphy. Em sua forma final, o show de luz e sombra tornou-se algo mais, um grimório tão imaginário quanto o catálogo de fantasmagorias usadas por Christiaan Huygens para impressionar seus amigos com sua última invenção, a lanterna mágica. Com a diferença que Lanterns of the Old Night é real.

As fotos abaixo foram gentilmente cedidas por Dan Ghetu. O livro começa a se distribuído amanhã, dia 07 de junho de 2016.
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