Uma das características mais perenes da humanidade, talvez, seja sua tendência a evitar o incongruente, o incognoscível. Optamos por um reconhecimento dos objetos que nos cercam – se queremos evitar a perturbadora experiência do Unheimlich freudiano – cristalino, sem surpresas ou sobressaltos. A multiplicidade do engenho e da arte humanas segue esse mesmo padrão, e isso, claro, inclui as editoras. Evita-se o livro monstruoso, ou seja, aquele marcado pela heterogeneidade e hibridismo desde a Antiguidade, pois o alvo privilegiado é o todo harmônico, o resultado esperado, o elemento facilmente reconhecível e catalogável. Em sua Arte Poética, Horácio reprova o livro monstruoso, constituído por partes desiguais e desarmônicas, afirmando que tais totalidades multiformes são os aegri somnia, esses produtos da imaginação desenfreada, inacessíveis a um ordenamento saudável, convencional. Talvez, Horácio imaginasse que esses aegri somnia um dia fossem extintos, que a imaginação encontraria um caminho uniforme, que a mente humana se conformaria com a projeção estética do belo que seguisse padrões elevados de decoro. Mas estava errado: apesar de toda nossa organização, talvez mesmo instintiva, de toda essa busca de um imaginário depurado, os aegria somnia persistem, encontrando locais inusitados para sua eclosão. Talvez um digno representante herdeiro desse tipo de construto que tanto desagradava o digno Horácio seja, justamente, The Hauntings at Tankerton Park, livro ilustrado de Reggie Oliver, publicado com elegante e discreta suntuosidade pela Zagava Press. À primeira vista, nada haveria de incomum em Hauntings: trata-se de um alfabeto ilustrado, em que cada letra do alfabeto é ilustrada por um verso e por uma imagem simultaneamente. Abaixo, temos um exemplo desse gênero didático de criação literária (em versão espanhola), retirado do blog El desván del abuelito: No caso do trabalho de Reggie Oliver, as letras ilustradas compõem uma breve narrativa, constituída pelo ato de montagem/desmontagem das imagens e dos versos. Trata-se sem dúvida de uma inovação, embora mesmo ela já tenha sido precedida por algumas outras experiências, como The Dangerous Alphabet de Neil Gaiman e Gris Grimly. Mas a simplicidade, austeridade e mesmo convencionalidade Hauntings é apenas aparente: trata-se de um legítimo pesadelo, uma manifestação intrincada em que imagens, versos e um contexto narrativo tornam-se elementos heteróclitos de uma totalidade que ressoa na mente do leitor e que se distancia das referências tranquilizadoras de gênero ou forma. Nesse sentido, são as imagens que saltam aos olhos do leitor de forma imediata; extremamente sugestivas, elas criam uma verdadeira gramática de interiores e ambientações vitorianas, incluindo até mesmo as ornamentações orientalizantes acessórias ao estilo, como vemos na letra X de Xerxes. O estilo de Oliver, por ele empregado na ilustração de seus contos, encontra aqui uma expressão ou mesmo tempo mais sutil e mais direta, em que são evocados tanto a aspereza da xilogravura quanto a suavidade de claro-escuro que valoriza as transições e as sombras, como as águas-fortes de Goya. Se o livro fosse apenas essas imagens detalhadas, esses ambientes ao mesmo tempo vertiginosos e sufocantes nos quais ocorre o impossível, o absurdo, Hauntings já seria um livro memorável. Mas ele vai além disso graças a outros dois elementos heteróclitos: os versos e a narrativa. No caso dos versos, o autor buscou certa singeleza dos versos infantis: “F was the Frog they acquired from a farm To eat up the finger that caused such alarm” A rima simples evoca o non-sense do universo infantil, mantendo, contudo, a literalidade do elemento descrito na pavorosa imagem do sapo gigantesco devorando um dedo igualmente desproporcional, inumano. Essa tensão entre a forma (os versos singelos), a literalidade do sentido e o diálogo com a imagem que ilustra o verso e que ultrapassa essa funcionalidade aparentemente limitada criam um efeito notável. Por outro lado, esses versos escapam da funcionalidade didática do silabário ou do alfabeto ilustrado – Reggie Oliver não pretende ilustrar o seu leitor com a memorização das letras do alfabeto. O que ele quer é contar a história de uma família que se mudam para uma mansão vitoriana, encontrando nesse novo lar as mais inusitadas aparições. Essa ânsia narrativa desloca novamente a percepção do leitor, tornando a experiência dessa viagem por imagens e versos bastante inusitada e única. De fato, a edição da Zagava colabora para a obtenção de todos esses efeitos por ser primorosa: tenho, em minhas mãos, a versão mais barata. Mesmo essa versão simples impressiona desde a capa – inteiramente preta, um negativo de uma das imagens internas do livro – pelo tamanho, qualidade da impressão e formato, torna a revisita da breve narrativa um prazer renovado. E, de fato, essa repetição, o ato de revisitar, torna-se chave nesse breve volume. Walter Benjamin, o filósofo alemão que trabalhou com temas eruditos como o drama barroco alemão, o narrador (a partir de Nikolai Leskov), o conceito de história e as passagens parisienses, era igualmente fascinado pela materialidade inevitável do livro para crianças e suas curiosas, estranhas idiossincrasias. Para Benjamin a criança materializaria um verso de Goethe: “Es ließe sich alles trefflich schlichten, könnte man die Sachen zweimal verrichten” (tudo ocorreria com perfeição, se se pudesse fazer duas vezes as coisas). A repetição fornece um prazer espantoso para a criança; pois, de fato, Hauntings desloca seu leitor (adulto ou criança) para essa dimensão de imenso prazer na repetição, em ver novamente aquelas imagens espantosas, repetir os versos, refazer o percurso da narrativa. Uma vez mais. E novamente. Nota: a citação de Goethe foi gentilmente corrigida por Jonas Plöger.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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