É célebre o começo de Temor e Tremor de Kierkegaard – por “nada saber” do hebraico, ao menos não o suficiente para a exegese que pretendia, o autor repete quatro vezes a narrativa do Sacrifício de Abraão. Essas quatro breves releituras são feitas antes de um panegírico em homenagem ao patriarca bíblico, célebre por quase ter matado o próprio filho, Isaac. Talvez, a repetição obsessiva dessa narrativa, do suspense bíblico em torno da potencial morte de Isaac, de seu assassinato pelo próprio pai, aponte para uma dúvida terrível sentida por Kierkegaard diante do abismo da fé: será que a visão de Abraão era de fato verdadeira? Não seria uma ilusão dos sentidos?
Mas há algo ainda pior, um pesadelo mais terrível para o profeta, para o visionário: e se tal sangrento holocausto fosse não inspirado pelo Altíssimo, mas o resultado de uma quimera diabólica, de uma percepção errada dos sinais de uma realidade cambiante/alucinada, de uma ilusão terrivelmente equivocada? Nesse caso, o profeta fundador transformaria-se em um mero assassino; perverso talvez, que arrancasse de seu crime não apenas a justificativa pela crença, mas certo prazer inominável. Essa, no final das contas, é a mesma dúvida de todo aquele abençoado ou amaldiçoado (as duas opções são igualmente possíveis) pela possibilidade de viver no peculiar universo visionário. E é a ambiguidade dessa benção/maldição que está na essência de uma das mais extraordinárias narrativas de 2019, a novela Sermons In a House of Grief, de Benjamin Tweddle, publicado pela Mount Abraxas – um dos melhores livros de 2019 e um trabalho pioneiro pelo tratamento desse universo ao mesmo tempo tão concreto e tão fantasmagórico, a esfera visionária. Sermons é uma das únicas, das mais verdadeiras obras a respeito daquilo que denominamos de “esfera visionária” – de modo geral, um fenômeno muito estranho e complexo, difícil de delimitar e compreender. Por vezes tratado nos limites das pesquisas e da profilaxia das doenças mentais, em outros momentos surge evocado nos tratados de antropologia ou nas exegeses místicas, mas também nas descrições mais tétricas dos manicômios, a esfera visionária surge do curto circuito entre a percepção usual da realidade captada por nossos sentidos com uma transfiguração provocada por elementos projetados de nossa mente, mas que ao se mesclarem com os elementos usuais, concretos, transformam essa realidade percebida em outra coisa. Tweddle parece fascinado por tudo o que diz respeito às transformações operadas pela esfera visionária e isso está bem claro em seus dois primeiros romances, The Dance of Abraxas (2018) e The Salix Arcanum (2019). Mas em Sermons, a construção é ao mesmo tempo delicada – sugerindo em cada detalhe, como por exemplo os efeitos auditivos e táteis da atividade visionária, além do salto que há muitas vezes entre a mente consciente e o estado visionário – e complexa, pois a esfera visionária de Leo e Matias (os dois protagonistas) parece exigir um esforço interativo considerável dos personagens que logo é transferido para o leitor. Pois as visões inspiradas, ou melhor dizendo despertadas, pela líder da seita “Kartanoista” (Kartanoism), Alma Kartano, parecem exigir uma leitura que se baseia em uma tríplice postura, aparentemente contraditória: meditativa, interpretativa e transformativa. Dessa forma, é perpétua a dúvida a respeito da validade (a questão da veracidade é abordada de forma irônica, no momento em que a trama sublinha ecos do filme The Wicker Man) das visões não abandona os personagens nem mesmo no final, quando tudo parece indicar um salto definitivo e final. Essa imaginativa abordagem é original dentro da longa tradição da literatura visionária desde Swedenborg ou antes, com Mestre Eckhardt; e essa originalidade faz de Tweddle um dos mais bem guardados segredos da literatura contemporânea. O livro foi produzido pela Mount Abraxas de Bucareste e seu acabamento, como usual no caso de tal editora, é fenomenal. O mistério apresentado tanto pela capa quanto pela sobrecapa, o formato de livro ilustrado (ou cinematográfico, como costumo imaginar), a tipografia caprichada que torna a leitura suave – tudo aqui indica extremo cuidado e requinte. O negro e dourado da capa parecem dialogar com as sóbrias fotos internas, que representam a congregação Kartaonista. De fato, trata-se da banda finlandesa Mansion em tais fotos, cujos discos, de forte vocação herética, são reconstruídas narrativamente por Tweddle, que cria uma curiosa síntese narrativa para as músicas e o universo visual da banda. Mas isso, ao fim e ao cabo, pouco importa. Pois para se apreciar este romance basta um mergulho imaginativo no festiva sinestésico que é esta Magnus Opus da literatura visionária.
0 Comments
Leave a Reply. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
Categories
All
|