Há um momento vertiginoso, que pode ocorrer diariamente ou ao menos uma vez na vida de cada um, quando percebemos que tudo ao nosso redor é oco, vazio, e que a vida é sonho. Trata-se, claro, de um clichê – verdadeiro, mas ainda um clichê. Talvez seja melhor reformula-lo: nosso tempo é imóvel. Como a flecha do paradoxo de Zenão de Eleia, vivemos na imobilidade estática, permanente. Nossos gadgets, guerras, refugiados e problemas cotidianos não passam de uma espuma que agita brevemente um mar turbulento. Assim, vivemos ainda o tempo das vanguardas artísticas. Somos movidos pelos mesmos paradoxos, nos emocionam os mesmos dramas, nos escandalizam as mesmas técnicas de épater la bourgeoisie. Talvez, isso aconteça pelo fato dos artistas envolvidos com as vanguardas no início do século XX tenham descoberto o segredo para a criação de um novo gênero narrativo e teatral: a tragédia universal – ou talvez comédia universal, pois os dois gêneros fluem em paralelo nesse novo gênero. A produção nesse gênero inédito foi única: um drama, imenso e contínuo, cujo tema central é a aniquilação da arte.
Nesse novo tipo de arte total inaugurada pelas vanguardas, o público em escala global é convidado a tomar parte em um ato no qual os artistas e suas criações são esmagados por inúmeras forças repressivas, mas mesmo assim buscam desesperadamente manter-se vivos e conscientes, a despeito da violência e das tentações que incluem a venda de almas em leilão. Assim, cada retrato, cada imagem, cada pintura, cada história, cada drama das vanguardas do século XX sugaria seu público para o interior dessa peça sem palcos, a voragem de uma outra época, aparentemente remota; quando contemplamos uma pintura como La città che sale (A cidade ascende), de Umberto Boccioni, realizada em 1910, temos exatamente essa sensação, ainda que ignoremos seu criador ou o tema central da composição. As formas dinâmicas de homens e cavalos na imagem de Boccioni levam o espectador a um abismo vertiginoso, um outro tempo, ou melhor ainda, uma outra possibilidade temporal, na qual a tensão dramática é permanente. Dessa forma, as justas preocupações de nossa época perecem desaparecer diante das incertezas da Revolução Bolchevique, da barbárie estilizada do fascismo, do cotidiano terrível da hiperinflação, das guerras civis, européias, mundiais. Se tivéssemos de batizar esse gênero de uma única obra, inaugurado pelas vanguardas do início século XX e ainda pulsante e contínuo, poderíamos empregar um termo sintético, eficaz: Conflagração. Não por acaso, esse é o título do novo trabalho de D. P. Watt, publicado pela Ex Occidente Press de Bucareste através de sua nova persona editorial, a série Mount Abraxas. O novo livro de Watt possui um formato curioso: quadrangular, algo que o editor já havia empregado na série L’homme recent mas em um formato ainda maior. A sobrecapa apresenta uma ilustração contínua (realizada por Misanthropic Art), como um pôster, a imagem de um Sol negro ao centro, mediando entre uma mão de proporções imensas, divinas, e olhos igualmente enormes, os dois campos marcados pela presença de formas humanas ornamentais. Diante dessa sobrecapa extraordinária, a capa minimalista, padrão da editora, fornece um eficaz contraponto, com sua textura de pelagem animal, seu baixo relevo e sua cor alaranjada (seguida pelo marcador de página). Logo que começamos a leitura do livro (após a extraordinária fotografia que serve de frontispício ao livro, “Multiple self-portrait in mirrors”, de Stanisław Ignacy Witkiewicz) somos surpreendidos por um folheto que nos apresenta as “Instruções para o Leitor”. Tais instruções começam da seguinte forma: “Por favor, leia este texto de uma única vez, começando precisamente às 19:30 de uma noite qualquer.” Tal procedimento, orientar o hipotético leitor em uma forma de leitura aconselhável segundo o autor, foi empregado com finalidades semelhantes por Julio Cortázar em seu experimento romanesco Rayuela (O jogo da amarelinha); como no caso de Cortázar, Watt nos convida a desobedecer as regras do jogo por ele estabelecido, o que aliás fizemos, exatamente como Des Lewis em sua excelente resenha de Conflagration (que pode ser vista aqui). Logo após esse primeiro momento de estranhamento, temos a Dramatis Personae aos moldes de uma peça de teatro. Nessa lista, surgem os nomes dos diversos inovadores vanguardistas do teatro no século XX, de Alfred Jarry a Jean Genet, de Bertolt Brecht a Eugene Ionesco, de Vsevolod Meyerhold a Samuel Beckett. Mas os textos breves do livro não constituem a estrutura tradicional de uma peça de teatro adaptada ao formato de um livro; são narrativas breves e fluidas, marcadas por uma data e um título topográfico, uma indicação de lugar como “As ruas de Trieste” ou “Galerie Montaigne, Paris”. Essas pequenas narrativas se estabelecem no equilíbrio entre o abstrato, o fantástico, o cômico e o trágico. Nesse sentido, o subtítulo é revelador: são “vinhetas imorais”, cenas breves que poderiam ser encenadas como imaginativas e críticas (ou irônicas) reformulações da história do teatro contemporâneo. Assim, o universo de Beckett ressurge no interior da França desolada pela guerra. La cantatrice chauve de Ionesco materializa-se no seu provável momento de concepção. A tragédia de Meyerhold se desenvolve com nitidez diante do leitor, até seu inevitável fim decretado pela ortodoxia stalinista. Mas esses são apenas alguns fragmentos, algumas dessas vinhetas vorazes que parecem sumarizar toda a história contemporânea e se iniciam em Braunau Am Inn, a 20 de abril de 1899. Em uma dessas vinhetas, “Sprovieri Gallery, Rome”, temos uma descrição viva e dinâmica do teatro futurista italiano. Dado momento, somos informados que as imagens empregadas como pano de fundo dessas apresentações, representações da velocidade e da força de veículos mecânicos baseadas no carnaval napolitano, “descreviam apenas a paixão de sua própria concepção”. Talvez, essa seja a melhor maneira de descrever esta pequena obra-prima de D. P. Watt, uma descrição que caberia igualmente aos intentos e utopias instáveis, frágeis, decadentes e inúteis produzidas pela perpetuamente fascinante arte das vanguardas no século XX – uma névoa, um fluxo, um fantasma, cuja intensidade ofusca e impressiona o leitor por sua própria força motriz, infinita. As três primeiras fotos abaixo foram gentilmente fornecidas pelo editor, Dan Ghetu.
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Foi em 2013 que a ideia do blog Bibliofagia (e de seu irmão, Bibliophage) surgiu. À época, eu estudava a ficção de J. G. Ballard pois trabalhava na tradução de The Atrocity Exhibition para o português. No meio desse percurso, percebi como a ficção fantástica e especulativa adotou, desde seus primórdios, a forma do livro, a arte de cada detalhe de um volume, como veículo de expressão para o sentido de ambiguidade e instabilidade do universo que nos cerca, uma meta usual nessa forma de ficção. O desenvolvimento dessas ideias levou à configuração do blog e ao contato com criadores de ficção fantástica em atividade, editores, autores, ilustradores. O projeto sobre Ballard já foi encerrado, outros vieram desde então, mas o blog se manteve como uma atividade extremamente prazeirosa e útil para meus estudos. Assim, por que não compartilhar o prazer que me traz a leitura e a análise desses livros?
Mas, infelizmente, está difícil manter o site vivo: há prolongados hiatos nas postagens pois cada detalhe do blog é sistematicamente pensado – escolha do livro, leitura, análise do material, elaboração do texto, captura das imagens, etc. Assim, tendo em vista a manutenção do projeto e mesmo a possibilidade de ampliar a quantidade e a qualidade dos ensaios publicados (penso, inclusive, em realizar ensaios em vídeo e entrevistas gravadas em áudio para o futuro) é que peço aos leitores, que apreciam e compreendem as duas necessidades deste trabalho (não remunerado, mas apaixonado, como a construção de barricadas segundo Charles Fourier) que colaborem com meu projeto através do Patreon. Agradeço antecipadamente a atenção e o apoio de todos. |
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January 2021
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