No filme Andrei Rublev (1966) de Andrei Tarkovsky há uma cena curiosa, bizarra embora válida e factível do ponto de vista da verossimilhança de uma obra que se pretendia uma reconstituição histórica do invisível, ou seja, da vida de Andrei Rublev, o enigmático artista russo que viveu no século XIV-XV, consagrado como o mais importante e reconhecido pintor de ícones da Rússia. Quando um dos personagens do filme, Kirill – outro pintor de ícones, cuja base é extremamente erudita e livresca – volta ao seu mosteiro, após anos de vida errante pelo mundo (contados no episódio 6, “Caridade”), percebe que um grupo de cavaleiros em movimento era projetado em posição invertida na parede oposta à janela fechada por pesados postigos. Havia, apesar das barreiras na janela do quarto escuro, espaço para a entrada de um fio de luz, responsável pela maravilhosa e breve projeção. Kirill, medíocre pintor de ícones, descobriu intuitivamente o segredo que atormentou a Arte desde a Grécia antiga em sua camera obscura improvisada: a descoberta de uma metodologia para a captura do movimento da vida, plasmado em imagens móveis. Mas isso não é o suficiente para que Kirill escape da própria mediocridade – ainda que inventivo, jamais alcançaria Andrei Rublev, um pintor que não necessitava de aparato técnico, referências estreitas da tradição ou epifanias fabricadas. Aquilo que Andrei fazia era pintar uma visão – da realidade, do universo, da imaginação – que apenas ele possuía, algo inacessível à técnica por mais refinada que seja. Mas isso não quer dizer que a Humanidade não busque em aparatos e utopias tecnológicas reproduzir ou se aproximar das visões articuladas por Andrei Rublev (ou por Michelangelo, William Blake, Francisco de Goya, Vincent Van Gogh, Francis Bacon): o cinema talvez seja o resultado mais estupendo desse esforço milenar que é tanto a tentativa de captura do movimento da vida quanto uma forma de reproduzir visões as quais temos acesso apenas na contemplação de grandes pinturas ou em raríssimas epifanias.
É curioso que a descoberta intuitiva feita no filme de Tarkovsky, embora inteiramente fictícia, não deixa de ser factível. A história e as origens da camera obscura são amplas, míticas e erráticas, aparecendo na China antiga e nas pesquisas de Aristoteles, nos tratados de engenharia árabe medieval a nos experimentos realizados por Artênio de Trales, o matemático que projetou Hagia Sophia nos tempos em que Istambul ainda se chamava Constantinopla. No horizonte ancestral da história, que costumamos denominar “Antiguidade” e "Idade Média” – nomes gerais e de finalidade didática – o conhecimento se projetava de forma muito mais complicada que na contemporaneidade, na qual há processos unificadores, bancos de dados, meios de comunicação instantânea e registros de patentes. Nesse passado de obscuros detalhes, imensas possibilidades e paradoxal desejo de acessar aquilo que poderíamos denominar imagem absoluta – um paradoxo que congregava a reprodução perfeita à visão imaginativa de plena beleza – é o que alimenta o extraordinário romance de Brian Howell, The Stream & The Torrent (cujo subtítulo é The Curious Case of Jan Torrentius and the Followers of Rosy Cross: Vol. 1), lançado pela Zagava/Ex Occidente Press em 2014, dentro da coleção Les Éditions de L'Oubli. É necessário destacar que Brian Howell não é nenhum estreante: já havia trabalhado o intrincado e fascinante universo cultural do século XVII em seu primeiro romance focado em Vermeer, The Dance of Geometry (2002). Já a coletânea de contos sobre o Japão contemporâneo The Sound of White Ants (2004) recupera tanto a tradição do Japão pelo olhar estrangeiro de um Lafcadio Hearn quanto os trabalhos de Yukio Mishima. Em The Stream & The Torrent, Howell regressa ao mundo de artistas, cientistas, inventores, nobres, conspiradores e charlatões do século XVII, mas o foco deixa de ser um pintor amplamente conhecido. Pois Johannes Torrentius (1589-1644) – que latinizou modificando ligeiramente seu nome de batismo, Johannes Symonsz van der Beeck, tendo em vista que “Beeck” significa “riacho” – foi considerado um mestre na Natureza Morta já em seu tempo, mas esse reconhecimento não evitou que boa parte das obras de Torrentius fossem queimadas devido às acusações de que o pintor fosse membro da Ordem Rosa-Cruz, nutrindo crenças ateístas e satanistas. A reputação de Torrentius o precedia: era visto como “sedutor de burgueses, enganador do povo, violador de mulheres, esbanjador do próprio dinheiro e do dinheiro alheio”. Declarava que as tintas de suas obras eram “outras”, que suas pinturas eram fruto de algum tipo de magia, “não sou eu o responsável pela pintura”, afirmava. Excêntrico e arrogante, acabou preso, torturado e condenado à fogueira. Foi salvo pelo rei da Inglaterra, Carlos I, que o tornou seu protegido em 1630. Por algum tempo, Torrentius viveu em paz na Inglaterra, às expensas de seu novo e poderoso patrão. Mas, em 1642, teve de abandonar seu confortável exílio em Londres, talvez devido à percepção que a recém iniciada Guerra Civil Inglesa levaria seu mecenas, fatalmente, à decapitação. Voltou para a Holanda e foi preso por mais algum tempo; ao ser liberado definitivamente, se dirigiu para a casa da mãe para morrer, alguns dizem que devido a uma implacável infecção por sífilis. A 7 de fevereiro de 1644, foi enterrado em Nieuwe Kerk (Igreja Nova), algo notável em se considerando que tratava-se de alguém visto como ateu, herético, blasfemo e adepto do diabo. Suas obras desapareceram sem deixar vestígios: uma parte delas, quando do primeiro encarceramento. Seria possível imaginar que algumas obras de Torrentius poderiam ter sobrevivido com o exílio inglês: de fato, o inventário de Carlos I menciona várias pinturas de Torrentius mas nenhuma delas foi encontrada posteriormente. Apenas uma de suas obras sobreviveu para ser descoberta em pleno século XX: Natureza morta emblemática com jarra, copo, cântaro e brida (1614), uma extraordinária e complexa alegoria da moderação. O jogo entre os reflexos de cada superfície – o metal da jarra, o vidro do copo, a madeira do cântaro – parece construir um feérico e sombrio universo fantástico de sombras e estranhas formas indistintas, misteriosas. Essa espantosa pintura, a única criação de Torrentius que chegou aos nossos dias, torna-se um dos motivos centrais do romance de Howell. The Stream & The Torrent é dividido em três capítulos: “Vandike and I”, “Ex Anglia Reversus” (expressão sonora e poeticamente sugestiva foi por algum algum tempo o título provisório do livro), “Cornelis Drubelsius Alcmariensis”. Cada capítulo apresenta um fragmento da misteriosa vida e obra de Johannes Torrentius a partir de testemunhas privilegiadas. No primeiro capítulo, o próprio Johannes Torrentius, em uma espécie de diário, descreve seu exílio na Inglaterra e as tentativas de refazer seus processos artificiais para captura de imagens, sangrentos, complicados, situados entre a magia e a técnica. Em “Ex Anglia Reversus”, a testemunha é Constantijn Huygens (pai do cientista Chistiaan Huygens, inventor do dispositivo precursor do cinema denominado lanterna mágica segundo as pesquisas do historiador Laurent Mannoni no estudo A grande arte da luz e da sombra), o árbitro de um estranho duelo de naturezas mortas entre Torrentius e os de Gheyn, pai e filho. Por fim, no último capítulo, temos o testemunho de Cornelis Drebbel de Alcmar, famoso por inventar o termostato de forno e pela construção do primeiro submarino funcional; Drebbel relata seus experimentos ao lado de Jan Torrentius, em Londres e em Praga, até o poderoso gancho narrativo final. Como é possível perceber, diversos personagens históricos se cruzam em contextos não apenas verossímeis mas factíveis, jogos políticos, intrigas palacianas, discussões estéticas e bizarros/inúteis e cruéis (dependendo do ponto de vista) inventos. Trata-se de uma complexa urdidura narrativa, centrada no testemunho fragmentário: as incertezas possíveis da narrativa em primeira pessoa se multiplicam pelas distorções e manipulações possíveis dos autores, bem como da percepção dos leitores, de cada fragmento. Elaborada construção poética do fragmento dúbio, do testemunho que aparentemente só pode ser tomado como verídico após um processo de cotejo sistemático, exatamente o que nos restou de uma personalidade tão fascinante quanto a de Johannes Torrentius. Mas, acima de tudo, o romance The Stream & The Torrent é uma brilhante alegoria do cinema, do sonho humano (factível pela técnica) de capturar a vida em toda sua minúcia, como que através de um processo tenebroso de magia negra. Nesse sentido, Brian Howell se aproxima de Adolfo Bioy-Casares em um romance como La invención de Morel, mas ultrapassa o autor argentino ao trabalhar não com a pura invenção fantasiosa de uma máquina que captura substâncias e que as reproduz eternamente através de um mecanismo de perpetuum mobile. Maravilhoso, sem dúvida, mas convencional. As “tintas outras” e a camera obscura de Johannes Torrentius são dotadas de uma concretude movediça assegurada por testemunhos, memórias vagas e registros dúbios; trata-se simultaneamente de uma invenção possível (mas irrecuperável), de uma fraude, de uma mistificação, de uma prestidigitação, de um prodígio. O livro, fisicamente, segue o padrão dos editores Dan Ghetu e Jonas Ploeger: trata-se de um objeto de arte de indiscutível beleza. A impressão é magnífica e em um papel pesado e de tipografia equilibrada, que nos faz lembrar uma versão atualizada dos livros que Torrentius e seus amigos manipulavam no século XVII. As imagens internas do livro – curiosamente, nenhuma delas de Torrentius – são belíssimas naturezas mortas do século XVII, que garantem ao livro um ar de mistério totalmente adequado. Só nos resta desejar que o segundo volume possa ser lançado em breve, para que retomemos a deliciosa, turbulenta e atroz aventura de Johannes Torrentius na busca pela imagem absoluta enquanto atravessa as intrincadas conspirações de uma Ordem Rosa-Cruz imaginária. NOTA: Algumas das referências históricas – especialmente sobre Johannes Torrentius – vieram de uma série de artigos (dividida em três partes) bastante esclarecedora de Maaike Dirkx cujo título é “The remarkable case of Johannes Torrentius”, disponível em https://arthistoriesroom.wordpress.com/?s=Torrentius&submit=Search. Também nos foi útil a excelente resenha de Des Lewis, disponível em seu site: https://nullimmortalis.wordpress.com/2014/10/24/the-stream-the-torrent/.
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Estruturas gigantescas, infinitas como o Oceano ou Cosmo, a História e o Mito permanecem equidistantes, independentes, embora próximos. A densidade e a complexidade dessas duas formas que pairam acima da cabeça de cada ser humano, vivo ou morto, no planeta Terra pode sugerir que seja tarefa vã tentar aproximá-las, que haja perigo eminente no choque de ambas. Mas o ritual e a ficção fazem esse exatamente isso: aproximam Mito e História, de modo que haja confluências, mesclas, colisões. As narrativas únicas de Avalon Brantley – seja a releitura da tragédia e da ironia aristofânica em Aornos, os contos de Descended Suns Resuscitate ou a homenagem a Pessoa na coletânea Dreams of Ourselves – ao mesmo tempo ritual e literatura, retomada historiográfica minuciosa e reconfiguração pessoal de mitologias, testemunham os efeitos únicos da infinita e arriscada arte combinatória do Mito e da História.
Sua magnífica peça – ou talvez narrativa – teatral, Aornos, possui certa ressonância em As rãs de Aristófanes, coisa que fica clara a partir da epígrafe do livro (uma citação do grande comediógrafo grego que serve como referência premonitória ao nome do protagonista, Alektor), o tema da descida submundo dos mortos e o coro de cigarras que pontua a trama como o coro de rãs que acompanha a descida de Dioniso e Caronte em As rãs. Fale a respeito desse seu trabalho refinado, de ourives, empregado na invocação da tragédia e da comédia produzidas na Antiguidade grega. Bem, creio que Aornos deve ser considerada minha primeira publicação de fato, embora não seja nem de longe minha primeira composição. Para mim, contudo, trata-se definitivamente de um dos trabalhos mais pessoalmente satisfatórios que realizei. O que me surpreende ao dizer isso é que eu escrevi essa peça em uma semana, quando a história que eu pretendia que estivesse em minha primeira publicação de fato – uma coletânea de contos para a Ex Occidente [Press] – foi colocada em outra antologia. Pretendia preencher essa lacuna, mas não havia nada que, em minha percepção, se encaixava naquela coletânea, de modo que me apressei com minha ideia para Aornos. As sementes dessa obra estavam em um estado vago, em um ponto obscuro da minha mente por anos, aliás; penso que por vezes algumas obras amadurecem em adegas subterrâneas da mente com mais frequência do que seus criadores conseguem perceber antes de gerar a forma definitiva delas. A visão de mundo subterrâneo da Grécia Antiga influenciou a literatura e a poesia ocidentais, bem como várias etapa da teologia cristã. Nada parecido pode ser encontrado, por exemplo, na Bíblia (Sheol e Gehenna não são o mesmo que o inferno) até que surge a loucura anômala do Apocalipse de João, quando já estávamos contando quase cem anos de era cristã e tal livro quase descartado como apócrifo. Assim, todas as visões tradicionais do inferno usadas para aterrorizar os pecadores e tantalizar os poetas provavelmente procedem, em grande parte, das tradições pagãs. Trata-se de uma enorme porção de nossa herança literária e me fascinou como um plano de criação possível por anos; mas eu desejava recuperar algumas de nossas raízes culturais, de modo que iniciei a leitura de diversas obras comparativas e fui sugada através de outros materiais tanto literários quanto acadêmicos para que eu pudesse trabalhar com os aspectos mais sombrios, difíceis e esquecidos do Hades. Aristófanes certamente é um autor fascinante para mim, em parte porque, a despeito dele ser um dos primeiros satiristas do mundo antigo cuja obra sobreviveu, manteve profunda reverência a certos aspectos sacros de sua própria cultura, como em relação aos mistérios eleusinos (motivo pelo qual muitos críticos modernos o criticam diretamente, claro). Mas, tendo em vista seu universo e contexto, percebo que esse fato é notável, um traço cativante do trabalho e das intenções de Aristófanes. Como estudante de história, reconheci exemplos de escritores inescrupulosos e extremamente imaginativos cujos trabalhos dificultaram uma abordagem mais confiável do passado; ainda assim, por outro lado, existem aqueles que estão em uma espécie de caminho contra-racional e que auxiliam em trazer seus leitores até a mentalidade mais acertada para o seu tempo pelos mesmos meios não conformistas, um contexto de cultura e sua própria dinâmica, poética, cuja capacidade de drenagem a história não alcança. Não apenas Aristófanes, mas também no caso de “historiadores” como Heródoto e Plutarco. Eu apreciei bastante a leitura de Tucídides (incluindo a história que ele escreveu sobre o seu homônimo, Alcebiades) mas as histórias dele não desempenharam nenhuma papel importante na construção daquilo que podemos chamar, essencialmente, como cheguei a descrever em outro lugar, uma “peça teatral encenada na mente”, talvez uma representação poética de uma estrutura teatral, semelhante (como você astutamente indicou em sua próxima pergunta) Purgatory de Yeats. Descobri, todavia, que a história de Heródoto poderia ser diretamente útil – por exemplo, a Ponte de Medea a qual Alektor descobre, estranhamente, em meio à névoa das águas no local em que estava vagando veio direto de Heródoto. O ponto, na verdade, é o fato de que enquanto Heródoto é um dos nossos primeiros “historiadores”, e Aristófanes um de nossos primeiros “comediantes” (ao menos no que tange à influência subsequente que teve; há outros autores, mais antigos em cada um desses campos), ambos me auxiliaram na conexão com uma mentalidade extinta tempos atrás. Eu não abjuro completamente a Era da Razão ou o Iluminismo nesse sentido, mas a poesia e a literatura fantástica podem demarcar uma fronteira além dos fantasmas da assim chamada “realidade” e da razão tornam-se mais opacos e incertos. O trabalho de historiadores como Tucídides ou [Edward] Gibbon ainda será útil para mim, mas onde predomina o processo passivo, intelectual de leitura para o qual esses trabalhos foram imaginados, quando estamos aquém do revolutear dinâmico e criativo da poesia e da loucura. Os momentos finais de Aornos – notadamente após a aparição da extraordinária figura da Stettix – torna-se clara a intuição que o leitor deve ter percebido desde o início da leitura: sua peça é praticamente não representável. Como em certas peças de Ionesco (em O rinoceronte) e William Butler Yeats (Purgatory), as cenas descritas em Aornos dialogam melhor com a imaginação pelos delicados e sutis jogos e imagens sugeridas pelas palavras do que com a cenografia construída no cinema ou no teatro. Como você alcançou tal síntese imaginativa e visionária? Haveria alguma obra que você encara como precursora, nesse sentido? Não pude mencionar na pergunta anterior, mas sim, a Imaginação de fato é o teatro definitivo, ou deveria ser. Nesta era de filmes abarrotados de CGI [Computer Generated Imagery], efeitos de som Surround, animação computadorizada, vídeo-games hiperrealistas, onde todos almejam a realidade virtual de terceiros permanente, o que penso ser o mais trágico se concentra naquela parte de nossa cultura que se tornou tão imaginativamente preguiçosa que suplica as pedras de crack oferecidos pela alimentação forçada das mídias – gratificação imediata de todos os sentidos – a partir do exterior! – que é poderosa, de fato, mas fará com que a imaginação, que trazemos desde tanto tempo antes do despontar da literatura, dos sonhos e das incertezas diante da vastidão do universo que nos cerca, atrofie. Assim, para responder sua pergunta, eu devo dizer que para mim, aquilo que antecipou as minhas formas de escrita imaginativa está diretamente relacionado com todas as leituras de natureza fantástica que cultivei na infância, quando minha ensurdecida imaginação desempenhava seu papel com espontaneidade, agilidade e brilhante vivacidade, de modo que me viciei nesse aspecto imaginativo da leitura e do devaneio, que alimentava constantemente. Como adulto, em meio ao mundo empírico, tal atividade ficou bem mais difícil, como costuma ocorrer com os exercícios físicos – é necessário manter os músculos tonificados e as articulações flexíveis. Nem tudo o que escrevemos chegam rapidamente a esses termos, mas alguns costumam se abrir se nos aproximamos com a mentalidade correta, como uma canção que começa a fazer sentido dentro de você. Para mim, a música oferece uma experiência bastante similar – trata-se de uma inexprimível magia no fato de que uma série de ruídos estruturados podem resultar na explosão para a vida de mundos inteiros atrás de nossos olhos fechados. Ou então simplesmente se deixar ficar em um local no qual o genius loci começa a falar com você, quando certos lugares especiais podem subitamente e inexplicavelmente começar a sussurrar histórias – imagens engendradas em sua mente que parecem surgidas das pedras e dos aromas e do céu. Essas coisas devem vir de dentro inicialmente, não da sala de edição de um cineasta ou dos códigos de um programador, mas da própria psiquê. Ou, se o oposto for verdadeiro, seria possível manter o útero da psiquê pronto para receber tais transitórios gametas de inspiração. Tanto Aornos quanto os contos de Descended Suns Resuscitate trabalham um inusitado cruzamento entre Mito, História, Cotidiano e Ficção. Nesse sentido, há uma preocupação minuciosa com detalhes, que logo se desdobram em sofisticadas tramas de linguagem (o argot local, termos específicos, etc.) que evocam o passado (mesmo em seu pequeno detalhe cotidiano) ao mesmo tempo em que auxiliam na construção de efeitos narrativos, da ironia, do mistério da trama. Qual seria a origem de sua percepção dessas linhas de encontro entre Mito e História? Como solucionar ou relacionar essa combinação aparentemente contraditória? Mas não vivemos nossas vidas em um universo que aparenta ser contraditório? Qual percepção pode afirmar não ser ao menos em parte uma falsa percepção, parte de nossas mitologias contemporâneas? Ainda não temos uma Teoria da Grande Unificação na física, e não é verdade que muito do que admitimos nas bases epistemológica e ontológica é subjetivo? O que me fascina é como outras culturas, sem todos os nossos tabus e inibições intelectuais (ou, nesta geração em especial, nossa miopia tecnologizada), como esses outros conseguem interpretar o mistério que é estar aqui, que é interagir como esse poderoso, cruel, incrível e misterioso universo. O que eu tento fazer (e talvez seja uma tarefa fútil deste ponto de vista (ainda que, do ponto de vista poético, não acredito nisso, embora intelectualmente sim)) é colocar a maneira de um personagem em um tempo-espaço diferente. Ao menos esse é um dos aspectos de meu trabalho no qual pretendo me concentrar. Outro tempo, lugar e cultura, através dos olhos que enxergam desde o interior de um sistema de crenças, a maneira como o povo se expressa, como vivem suas vidas, todos esses elementos desempenham um papel em como um fenômeno pode ser interpretado. As mesmas limitações se projetam sobre nós, como os filhos de nossos filhos poderão ver com mais facilidade, uma vez que nós mal conseguimos interpretar o mundo através nossas limitações e preconceitos, tanto pessoais quanto culturais. O leitor deve se sentir algo deslocado no passado, pois como disse L. P. Hartley, “Eles agem de maneira diferente aqui”. É um mundo ainda mais diferente. Assim, considero o passado um terreno altamente fértil para a ficção imaginativa. Da mesma forma, ao menos poeticamente, não percebo o tempo como estritamente linear como tendemos a perceber na vida cotidiana, mantendo nossos compromissos e rotina de sono. Algumas vezes, tento a mediação (e o amálgama) entre nossas realidades e as realidades de algum outro de forma que seja possível alguma incursão no passado mas que, também, mantenha as conexões e talvez desperte certas fagulhas no quadro de referência do leitor, uma espécie de efeito deja-vu literário. Por isso, a resposta de Alektor à repentina aparição da Stettix surge antes do retorno do barco é um fala parcialmente emprestada da resposta de Lúcifer ao encontrar a monstruosidade da Morte no submundo de Milton. Isto para mim é novamente o tempo poético, que se torna não-linear. As palavras de Milton podem sair da boca de um personagem ambientado na Grécia Antiga uma vez que elas chegaram na pena de Milton a partir de um local sem forma e sem tempo de onde a voz de um demônio pessoal (na forma de um sapo rastejante, talvez?) sussurrou-as no ouvido daquele autor. O escritor japonês Ueda Akinari, em Contos da chuva e da lua – adaptados para o cinema de maneira bastante inteligente e sensível por Kenji Mizoguchi no filme Ugetsu Monogatari (1953) –, trabalha constantemente com a decepção, a percepção enganadora que desenvolvemos a partir daquilo que percebemos como realidade (que inclui, em todo o caso, o sobrenatural). Muitos de seus protagonistas trabalham com essa percepção falsa do universo que os cerca. Qual seria sua trajetória até essa poética da decepção, bastante sofisticada em suas narrativas? O universo é circular, um cíclico e emaranhado imenso de logros sem fim. Acredito que meus caracteres, como nós, precisam reunir muitas peças de um quebra-cabeça conforme elas surgem no caminho, perdendo algumas, rearranjando outras, conforme cambaleamos para qualquer direção que tenhamos tomado. Não pretendo julgar todos aqueles que sejam mais enganados ou equivocados que eu (ou, eu poderia arriscar, nós?), ao menos em termos. Cognição, sentidos, percepção – são apenas meios aproximativos e falíveis, afinal. Mas todos nós nos excedemos e, a despeito dos horrores, algumas vezes alcançamos vislumbres de beleza nesse arranjo. Então, quando os horrores são belos… Um dos contos de Descended Suns Resuscitate que mais me agradou foi “The Last Sheaf”. Existe nessa trama uma curiosa e complex relação entre efeitos alegóricos (os camponeses que scything the crops, as noções conflitantes de sacrifício), prosaicos (a viagem turística dos dois estudantes) e mesmo caricaturais ou grotescos (as páginas do livro, empregadas para limpar uma diarréia causada pela abstinência de láudano). O desfecho me trouxe à mente o conto “El Sur” (“The South”), o último da coleção Ficciones (1956) de Jorge Luis Borges. Quais procedimentos você empregou na construção desse conto? Existe algum método usual ou cada narrativa possui sua própria gênese e construção? Penso que cada narrativa efetua um acúmulo de uma maneira própria. Algumas vezes, como no caso de “The Last Sheaf”, uma narrativa pode surgir diretamente de certos materiais que envolvem aquilo que estou lendo, algumas vezes enquanto meus olhos estão em uma determinada página, algumas vezes logo após o livro já estar fechado, luzes apagadas e olhos fechados… Outras histórias aparentemente surgem espontaneamente de uma contemplação da paisagem vista da janela, ao ouvir uma música, visitar um local desconhecido… Fragmentos de histórias surgem constantemente, em todos os lugares – nas ruínas de uma velha casa no meio de uma planície que provavelmente foi no passado distante a casa de sonhos de alguém; em velhas roupas ou fotos, ou em objetos em lojas de segunda mão. Escutar essas histórias à espreita é tanto algo de ativo/criativo quanto um processo passivo. É necessário trabalho para construir a coesão decisiva para elementos que são apenas fragmentos e ideias vagas, mas nesse processo as ideias mais poderosas muitas vezes amadurecem e se desenvolvem quase que por si mesmas. Suas narrativas – é o caso por exemplo de "The Way of Flames” e "Kali-Yuga: This Dark and Present Age” em Descended Suns Resuscitate – abordam pequenos e grandes apocalipses, instantâneos de decadência e de esgotamento, sacrifícios voluntários e compulsórios. Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que sua visão se aproxime daquela de James Joyce em Ulysses, de que a História “is a nightmare from which I am trying to awake”. A questão da decadência, em suas narrativas, seria alimentada por reflexões filosóficas? Ou sua preocupação situa-se de modo mais significativo no campo estético? Ambas, provavelmente na mesma medida, dependendo do contexto. Sempre fui fascinada pelo terrível caráter cíclico da existência, da história, da natureza humana. Aquilo que consideramos usual em países desenvolvidos é bastante frágil e não se configura como norma na maioria dos lugares e temporalidades. As preocupações da literatura decadente me parecem um consistente à propos, e espero que continuem a ser reconhecidas de modo intermitente, conforme o pêndulo da história persiste em seu movimento oscilante e caprichoso… A música ocupa, de maneira mais evidente, um espaço primordial na própria construção narrativa em Aornos e também no conto “Hognissaga” (embora o mesmo possa ser dito de todas as suas narrativas). Qual sua relação com a música no que tange à construção de suas tramas? Existe algum compositor ou estilo que lhe seja mais sugestivo, nesse sentido? Novamente, tudo depende do contexto (uma vez que cada história se desenvolve de forma própria, separada) mas há momentos em que a música é o cofator primário no processo catalítico no qual a história procede seu desenvolvimento. Em outros momentos, a música se encarrega de injetar suas próprias influências e ideias de maneiras que eu não conseguiria imaginar ou prever. O ecletismo domina meus gostos e aprecio uma ampla variedade de estilos musicais, e reconheço que algumas vezes certas canções e estilos que considero repugnantes podem de uma forma irônica me fornecer auxílio no que tange à inspiração ou intuição. Tendo em vista que você já teve uma narrativa em formato dramático e contos publicados, seria possível adiantar algum de seus projetos futuros? Está trabalhando em uma narrativa mais extensa ou mesmo, com toda a poderosa carga visionária de suas histórias, alguma criação visual e/ou audiovisual? Trabalhei em diversas coisas que ainda não foram publicadas, algumas poderão não ser lançadas nunca por razões pessoais (nem tudo o que escrevo é direcionado para publicação; algumas vezes é apenas algo que devo fazer) e outras ainda preciso finalizar. Tendo a ser relapso com o prazo de envio de meus trabalhos – trata-se da parte que considero menos agradável de todo o processo. Escrevi um romance extenso, uma espécie de resposta em forma de tríptico ao House on the Borderland e The Night Land de William Hope Hodgson. Também trabalho com ideias e esboços para diversos projetos, embora no momento esteja focada em uma novela breve, uma peça estranha e de grande amplitude, ambientada em diferentes momentos e regiões da Rússia, embora o centro predominante seja os Grandes Expurgos realizados por Stalin no final dos anos 1930. Quando eu finalmente terminar esse trabalho (não tenho ideia de que quando exatamente isso ocorrerá), há muitas outras áreas as quais desejo me dedicar, resultando provavelmente em coletâneas de contos – uma envolvendo os povos celtas das Ilhas Britânicas (um assunto e universo no qual já me dediquei por algum tempo durante a composição da homenagem a Hodgson) e outra ambientada na Nova Inglaterra nos tempos coloniais. Se existe algo que faz da narrativa algo próximo de um sortilégio, de um gesto que pertence menos aos domínios humanos e mais a uma esfera sobrenatural, metafísica, é o mistério. E as narrativas de Jonathan Wood (como na participação que fez no volume em homenagem a Fernando Pessoa, Dreams of Ourselves, lançado pela Ex Occidente/Zagava Press) transbordam de mistério, um mistério fundamental e transcendente que transtorna a própria realidade, não apenas a percepção dela. Na entrevista a seguir, nos propomos não a decifração do mistério, atividade vã e destrutiva, mas em contextualizar a mente criadora de Wood. Entre as obras já lançadas de Jonathan Wood (um autor do qual temos limitadas informações biográficas), podemos enumerar: os contos “White Souls against a Dark Background” (publicado na coletânea Cinnabar’s Gnosis – A Homage to Gustav Meyrink, editada por Dan Ghetu, Bucharest: Ex Occidente Press, 2009), “Beloved Chaos that Comes by Night” (publicado na coletânea The Master in Café Morphine – A Homage to Mikhail Bulgakov, editada por Dan Ghetu, Bucharest: Ex Occidente Press, 2011), “Pray to the God of Flux” (conto publicado na coletânea Transactions of the Flesh – A Homage to Joris-Karl Huysmans (editada por Dan Watt e Peter Holman, Bucharest: Ex Occidente Press, 2013), “Vale of Gold” (na coletânea Sorcery and Sanctity: A Homage to Arthur Machen, Hieroglyphic Press, 2013), além da novela The New Fate, Bucharest: Ex Occidente Press, 2013.
Um aspecto de sua ficção que salta aos olhos e que sempre ressurge, em novos e complexos formatos, é o logro, o engano, a de decepção. Em The New Fate, por exemplo, há o logro do protagonista, que precipita o espantoso desfecho. Não se trata de um truque literário mais ou menos ingênuo, é bom frisar: o logro (deliberado ou voluntário), em suas tramas, se aproxima da Hamartia, a falha trágica, tão essencial na tragédia para a obtenção do terapêutico efeito de catarse. Como você chegou a essa noção de Logro? Haveria, nesse caso, alguma influência? O logro domina meu silencioso pensamento literário pois estou, continuamente, refletindo a respeito das qualidades da verdade e daquelas que definem a realidade; como ao redor de cada esquina a harmatia surge caminhando ou é vista nos reflexos das poças de água. O ato de escrever, os processos do pensamento que estão por trás dele e o jogo de personagens, tudo isso respira o oxigênio do logro e as percepções que acompanham o ato de escrever surgem de um complexo espectro de ilusões e enganos. Por exemplo, é possível aplicar o conceito sintético de logro a amplo espectro de pensamento e, para mim, isso é central, uma ponto de partida natural ao tentar discutir ou explorar questões morais, temporais ou espirituais, ou até mesmo para criar personagens do nada. A evolução e o jogo entre personagens surge da interação complexa de ações e significados ou o contrário de tudo isso e o logro pode ser observado naquilo que definimos sem muito rigor de “vida real”, observando de uma distância nada segura as nuances de conversão e linguagem e expressão. A identidade sutil de um personagem é resultado do que talvez seja um reconhecimento despercebido de algo que não é “direto” mas que possui um número singular de cantos e curvas. Não construo ou observo o logro ou o engano como resultado de uma observação deliberada, mas algo que está bem além de ser uma marca dentro do personagem e da narrativa; uma tendência natural como o clima, se preferir. É a representação normal daquilo que gostaríamos de pensar e de experimentar. Quando alguém estabelece uma conversação com você, isso acontece contra um pano de fundo de verdade ou com um segundo plano de nuance e significado e comportamento simbólico que leva a um espelho secreto, no qual você consegue ver apenas a parte de trás de sua cabeça? Quando olho para a tela de Rene Magritte, La Reproduction Interdite [1937], eu acredito que tenho tudo o que preciso saber… E isso, claro, é uma mentira. Existe algo de paradoxal em suas tramas: de um lado, temos complexas construções metafóricas amparadas por noções e princípios filosóficos quase abstratos; de outro, uma forte tendência de recuperação de contextos históricos. Assim, Por exemplo o universo do nazismo em The New Fate é ao mesmo tempo uma evocação e uma construção imagética sólida, o mesmo valendo para o universo que se configurou após a Primeira Guerra Mundial em "White Souls Against Dark Background". Haveria alguma metodologia para esse paradoxo? Você poderia descrever algo de seu processo de criação? Não utilizo o contexto histórico para necessariamente “escorar” uma narrativa em um quadro temporal ou período reconhecível, mas como uma tentativa de esboçar o contexto e a cor, algum elemento particular que pode ser algo oblíquo ou evasivo ou ilusório, quase como os pensamentos ou arrebatamentos de uma conversão em passantes que possua alguma qualidade real para eles; um menear de cabeça ou uma expressão furtiva que possua uma história própria passível de desenvolvimento em seu sentido próprio de periodização dentro do reconhecível. O contexto histórico central de White Souls se concentra na perda e na angústia com a Grande Guerra e examina os mecanismos empregados para mitigar o imenso talho que seccionou a mente, o corpo e o espírito de toda uma geração. Há a ambiguidade das vozes distantes no campo de batalha e os impulsos febris de Grovelock, além da desprezível ressonância do padre Bankman e da sala da sessão espírita mas, mesmo assim, o que se torna importante na minha concepção seria o exame dos personagens que estão “fora”, se você preferir dessa forma, do amplo conceito histórico reconhecível, no qual a linguagem pode vir repousar trazendo consigo o sabor de uma época. Meu desejo era me concentrar nesse conflito interno do pós-guerra em Londres. Em The New Fate, deseja me distanciar do contexto histórico significante – aquele que todos podemos identificar – de modo que a experiência descrita se torne mais rarefeita e altamente localizada, transformando o tema central e os personagens em [se preferir] manchas no Sol prontas para desaparecer até o momento da conclusão, quando o contexto histórico entra aos solavancos com aquilo que poderíamos chamar vingança adicional. É a chamada para despertar na amarga realidade histórica. O cultivo do contexto diz muito a respeito do exame efetuado nas sobras da memória, da tristeza mais profunda e do desespero da mesma forma que da ficção precisa, refletindo aquilo que é conhecido e compreendido. Desejo uma viagem descendente pelo orifício do deslocamento da sensibilidade que nos conduz ao desespero lógico, racionalizado, e ao distanciamento. Também desejo garantir que os personagens em White Souls e The New Fate estejam o mais desconfortáveis o possível, mas também levemente deslocados nos termos de um meio social conhecido. Provavelmente há algo da esquizofrenia no interior do princípio central que rege o contexto e a caracterização que será examinada em um trabalho futuro. Em Pray to the God of Flux, o contexto histórico talvez tenha se revelado através de costumes e maneirismos dos dois personagens centrais que foram pegos em meio ao conflito entre aderir à vida “normal” estultificada das classes médias comerciais e a ronda diária, a alternativa em experimentar os lúridos e proibidos frutos de Bruxelas, apenas para serem impelidos de volta à vida “normal”. Aqui, tinha em minha mente a evocação daquela grande massa de pessoas arrastadas dos subúrbios, transportadas por trens até o miasma espesso que era Londres no início do século XX, mas seria uma atitude pautada no logro da minha parte confirmar isso para você! Não desejo que esses personagens centrais sejam livres, antes que sejam cegos em relação aos próprios impulsos e às linhas borradas do período, do tempo e do local no qual estão inseridos. Há muita coerência nos grandes romances do início do século XX que seguem as trilhas do homem de comércio até as portas com um ponto de interrogação impresso! Huysmans trabalhou com isso primeiro, antes de todos no século que morreu a seguir! E talvez Poe. Percebo em suas narrativas certa instabilidade do tempo: o passado, o presente e mesmo o futuro de seus personagens, o tempo virtual e real, todos esses elementos temporais parecem colidir e confluir – processo levado às últimas consequências no conto “Pray to the God of Flux”. Essa forma de elaborar o tempo narrativo, de modo simultâneo ou como um fluxo, surgiu de alguma concepção filosófica específica? Ou teria sido fruto de alguma experiência empírica? Penso que sua observação é bastante perspicaz e gostaria de dizer que minha resposta surge do ato de ponderar entre a reação diante da consciência e da vida em geral, do ponto em que os limites e as distinções lógicas entre experiência e existência transbordam uns nos outros. Pray to the God of Flux é uma resoluta recuperação minha da vingança, na qual eu meramente ocupei o papel de “imaginar” a partir do meu presunçoso ponto de vista de um assim chamado “autor” a experiência dos “macacos sonâmbulos” que marchavam pela London Bridge na forma de um terrível pesadelo modernista, e que se tornou meu próprio destino uma vez que eu continuo a ganhar meu sustento diário do comércio, mas agora em novo endereço! A vida imita a arte de uma forma desprezível e merecida! Imagino que deva haver igualmente um elemento filosófico no ponto em que o Tempo se torna muito preciso e compacto e febril em minhas histórias, algo que se combina com as experiências dos protagonistas. Eu aprecio experimentar com a fluidez de ideias e tempo e experiência, como se houvesse um diálogo unificado em minha cabeça com tudo o que deverá acontecer. Penso que a mente está em “fluxo constante”, como você mencionou acima, e do centro da mente se configura uma espiral de pensamento e experiência completamente paradoxal em todos os seus detalhes. Em Pray to the God of Flux, eu desejava prospectar em profundidade esse conjunto paradoxal de impulsos descrito de modo tão rico por Huysmans com seu Des Esseintes, que percebia atentamente e fazia as vezes de servo do mundano e do excitante. Quem sabe tudo isso também não apareça em alguma ficção futura. Os personagens, assim, parecem estar sempre em trânsito, servindo ao Deus do Fluxo; a compulsão definitiva e uma variação da mola mestra retesada em The New Fate. Sou bastante interessado nessa noção de um trânsito interior contínuo, da jornada de ideias e noções e personagens para a Terra e além, para o interior de si mesmo. Em Beloved Chaos that comes by Night, as meditações interiores nos abismos do personagem principal – um receptáculo, se preferir, pronto para ser preenchido –, os pensamentos que pretendem se deslocar para além de seu contexto, para novos lugares, para seu destino final. Os personagens se tornam hospedeiros de algo profundo e em seu fluir transformam-se em abstrações. Existe em suas narrativas a elaborada construção imagética de objetos, ao mesmo tempo belos e simbolicamente relevantes – os cálices em “Pray to the God of Flux”, o passeio dos irmãos em The New Fate, o sonhador cartógrafo em “White Souls Against a Dark Background”. Tais imagens são construídas dentro do continuum da narrativa ou surgem à parte? Como você as visualiza e insere na trama? Não consigo separar a captura da construção de objetos pelo imaginário da continuidade oferecida pela escrita de modo geral. Os elementos visuais e simbólicos parecem despertar tão logo coloco a caneta no pape. Sou afligido por uma mente que recorda imagens e símbolos de modo que esses elementos são catalogados em um arquivo mental, para futura referência. Carrego um caderno de anotações comigo tanto nos dias bons quanto ruins, carrego fragmentos de papel para registrar todos os tipos de impressão que poderão alimentar posteriormente a construção de imagens. Minha tendência é meditar a partir de imagens visuais – indo e vindo, indo e vindo – em minha mente por um tempo que parece ser a eternidade e assim essas imagens, além de algumas novas, surgem em muitos de meus sonhos. Ao sonhar, parece que estou apto a tocar no passado com facilidade, de modo que experimento uma realidade altamente retrospectiva – o que constitui, talvez, uma noção com a qual posso trabalhar em minha ficção. Sinto que minha mente captura coisas “antiquadas” e sempre foi assim desde que eu era bem jovem, de modo que consigo recordar com precisão imagens com mais de quarenta anos de idade que talvez estivessem perdidas em minha mente de modo definitivo. Posso dar um exemplo – uma velha lareira de pedra em um castelo arruinado, situado na extremidade de uma famosa paisagem de dunas arenosas, visto quando eu era uma criança. O piso decaiu com os anos graças às intempéries do tempo e da história, mas a lareira ainda está de pé, a meio caminho da antiga fachada, na verdade não se trata mais de uma lareira mas de uma espécie de portal fabuloso que espera para ser atravessado. Da mesma forma, na esquina da Rua Sclater no East End de Londres, há um local similar. Percebo que é difícil distinguir entre escrita e o constante exame e utilidade do imaginário. Assim, penso que tenho um grande débito para com meu interesse precoce nos trabalhos de Edgar Allen Poe por isso! Mas precisamos ser cuidadosos, contudo, com o que concebemos a partir da realidade e da fantasia. Certa vez em Palermo, Sicília, nos anos 1980, eu caminhava diante da vitrine de uma loja em um beco abandonado que exibia um imenso vestuário ritual com o selo do Mega Therion de Aleister Crowley bordado no feitio de um brasão. Mas, ao analisar os detalhes daquela rua logo no dia seguinte, percebi apenas uma vitrine extremamente banal sem qualquer tipo de vestimenta ritualística. Experimentei essa segunda descoberta como uma perda e a imagem inicial ainda está em minha mente e foi usada em uma distante ficção de juventude. O uso da imagerie também é um portal apropriado para expandir ou estreitar os limites de uma história, de modo que pode automaticamente crescer em uma vida artificial de feitio próprio. Me interesso, igualmente, por aquilo que os personagens percebem como imagens importantes dentro do quadro da narrativa – talvez isso seja mais aparente em White Souls [espelhos, parélios, símbolos ocultos] e Pray to the God of Flux [visões que não são visões mas compulsões que ocorrem no interior da busca por satisfações iníquas de personagens que nelas se enredam como alguém atingido por uma droga]? E depois existem as imagens captadas da própria existência. As taças entram nesse caso e vou deixá-las por isso mesmo. A novela The New Fate é notável em mais de um ponto de vista: a abordagem do tema do duplo, o imaginativo retrato da Alemanha durante o nazismo, por exemplo. Em minha opinião, trata-se de uma narrativa poderosíssima, no mesmo patamar de narrativas no mesmo formato como Morte em Veneza de Thomas Mann ou The Day of the Locust de Nathanael West. Fale um pouco sobre o processo de construção desse magnífico livro. Estou prostrado diante de suas palavras e mesmo assim não sei por onde começar. A escrita de The New Fate deixou uma enorme sensação na boca do estômago e seu desfecho ainda me assombra, uma vez que ela foi escrita antes que eu tivesse consciência de tê-la escrito; como se alguma coisa se alojasse e ainda que eu percebesse que falhara na construção desse desfecho, notando isso instantaneamente, ele já estava no papel. Se podemos afirmar a existência de algo chamado “escrita automática”, então certas partes de minha novela caberiam em tal conceito. Pois não se tratou de evasivas ou de distanciamento diante das responsabilidades do escritor como parteiro universal, mas a compreensão de que existem elementos no processo criativo que são indefiníveis e alarmantes de forma singular. The New Fate caiu do céu como um Ícaro maligno após um período de significativa meditação silenciosa; eu estava em certo sentido concentrado na meditação daquilo que poderia ser descrito como o definitivo niilismo da “nadificação” e sobre quão vazio o “homem interior” poderia ser. Eu sabia que meu desejo era escrever sobre certos traços do Nacional Socialismo – quando Dan Ghetu [editor] me descreveu a noção principal por trás da série de livros The Last Thinkers [“os últimos pensadores”] – e ainda assim meu desafio era captar as sutis tendências ocultas que estavam em jogo criadas pela miríade de imagens históricas que eram extremamente familiares devido aos noticiários, mas de forma que minha representação cessasse de pertencer ao documental, que ao contrário desdobrasse uma narrativa a respeito de si mesma vinda de si mesma, testando os limites da história e do ser, alterando a certeza de reconhecer o nazismo em algo antecipatório mas sem nome. Desejo escavar algo que possuísse certa opacidade, algo bruto e indefinido, mas que possuísse ao mesmo tempo a distorcida dinâmica que conduz à compulsão nacionalista irrefreável e dessa forma, por esse método, o construto obtido se tornaria a mania acontecida e que era, de fato, cega. O que me ajudou na tarefa foi o fato de que essa palete em segundo plano parecia fertilizar por si mesma, naturalmente, as palavras. Sem retorno, diversas vezes, em minha mente às associações Studentenverbindung da Alemanha do século XIX como a “Terra” central da novela porque desejo descrever e trabalhar com esse tipo de atmosfera febril em que o pensamento filosófico e a discussão fossem irrestritos; mas essa ideia ou noção de fraternidade me conduziu apenas ao conceito localizado dos dois irmãos, Karl e Pieter, uma significação que eu pude articular apenas de forma indefinida, aqui e ali, de onde surgiu o pareamento de mentes e ideias que caminhavam do fertilidade e afirmação da vida para o vazio, ecoando contra o pano de fundo de muitos emblemas, de uma cacofonia, da confusão caótica. Depois, peguei essas ideias sobre os irmãos e na tentativa de escrever um “livro de histórias” mundial sobre a tradição Volkish e aprisionamento cotidiano e destino, acabei por construir algo que funciona como a meada central da compulsão. Sem dúvida, eu estava dominado pela tradição do conto de fadas e pela noção de que dentro de cada um de nós haveria certo número de personalidades que estariam sintonizadas com os noturnos e sombras da “outridade”, uma separação se preferir, que nos envia cada vez mais profundamente do reconhecimento sadio para as capelas profundas da irracionalidade e do encantamento. Eu desejava personagens que pudessem ser entendidos como possíveis de aparecer em uma estrada solitária, fora da página. E na impressionante permanência em minha memória dos contos de fada tradicionais que amo, isso se tornou realidade. O que eu desejo em certo sentido é ser cruel com e dentro da narrativa, comas figuras em sua paisagem de modo que não existisse conforto em suas expectativas, nenhum reconhecimento através dos meios de seu Doppelganger, apenas o mais elevado retesamento da espiral de iniquidade e o destino refletido do que foi inflingido a tantos. Senti poderosamente as diversas percepções e preceitos de certos tipos de filosofia da época, como todos esses elementos foram coletados e injetados na alma pelo protagonista[s] e também o conceito de compaixão e como, sob determinadas circunstâncias, ele pode ser esticado até os pontos extremos da experiência humana, como se de alguma forma fosse filtrado através do reflexo em um espelho fragmentado. The New Fate é algo bem ordinário, habitado e infectado pelas mentes cotidianas de pessoas ordinárias que alimentam a irrefreável corrente de desaparecimento que corre na secura em direção às cinzas. Tenho percepções muito claras a respeito do relacionamento entre arte e literatura e os temas – que poderiam ser determinados como uma forma de “abstração”, na qual o que é certo sangraria sem parar naquilo que é incerto, irreconhecível e que se torna mortal e retorcido quando antes foi tão ordinário. Observar as operações do Doppelganger na página se tornou a parte alarmante de trabalho noturno e ainda não a entendo por completo. Nós nunca podemos estar certos a respeito de quem também está presente em nossa natureza. Devo considerar que você e D. F. Lewis conseguiram captar com precisão a essência de The New Fate nos raios de Sol. Quanto isso, posso apenas agradecer imensamente ao tratamento editorial exemplar dado por Dan Ghetu… sei que isso é um fato. O componente imagético e visual de suas tramas possuiria alguma relação com o cinema, talvez como algumas das criações de Jean Cocteau? Pois as imagens sistematicamente construídas em suas tramas não parecem ter uma ressonância cinemática tão poderosa como outras narrativas que buscam se aproximar da linguagem cinematográfica. Haveria algum filme, diretor ou estilo cinematográfico no qual você reconheceria uma influência? Desde minha infância, sempre fui tão influenciado pelo cinema e pela linguagem do filme quanto pela literatura. Eu era assombrado, e ainda sou, pelo cinema alemão antigo e pelo expressionismo alemão – Lang, Wiene, Wegener/Galeen, etc. – e em particular pela maneira como narrativas simples se desdobram seguindo a habilidade da imaginação do espectador em permitir tal desdobramento de modo que elas se implantam em nossa mente e nunca mais nos deixam. Há perfeitos contos de fada populares para o lado mais aconchegante da minha mente. Filmes com legendas e intertítulos, nos quais a noção de narrativa vivenciada e capacidade da imaginação em contar históricas estavam fundidas no limite em que o espectador se tornava e permanecia obcecado porque ele ou ela caminhava pela história do filme da mesma maneira que um romance significativo se imprime em nossa mente filosófica. Não há escapatória. Penso, em particular, no trabalho de Ingmar Bergman – especialmente O Sétimo Selo, Persona, Silêncio, A hora do lobo, etc. – nos quais as lutas dos personagens são tão internas quanto universais em sua anatomia filosófica. Também penso em epifanias pessoais [talvez essa palavra tenha sido excessivamente utilizada] quando vi pela primeira vez Espelho do grande diretor russo Andrei Tarkovksy – a poesia visual das imagens e o sentido narrativo do passado e do presente chegam a ultrapassar as possibilidades de descrição, uma vez que foram capturados em um crisol com todos os elementos brutos da vida – luz e escuridão, natureza, juventude, velhice, tradição, história, dor e beleza e alegria espiritual para além de qualquer descrição. É a cascata bruta da vida e do pensamento que atinge o clímax com a avó retornando através de campos balouçantes. Nada poderia ser melhor. Eu poderia mencionar Alfred Hitchcock, o diálogo interior de Janet Leigh e Anthony Perkins em Psicose e o perfeito caminho de sonho de Du Maurier conduzindo Manderley em Rebeca; Derek Jarman e sua desconstrutiva obra-prima Jubilee; Luchino Visconti – o mestre dos grandes temas entrelaçados com decadência moral em Morte em Veneza e Os deuses malditos [um nazismo oblíquo e finamente sintonizado, muito superior às noções de [Liliana] Cavani em O porteiro da noite, que não conseguiram tirar minha frieza] – e o excepcional ofertório canônico de Roman Polanski, no qual a capacidade narrativa, vulnerabilidade pessoal e destino são fundidos de forma única. No cinema, existem camadas de existência simbólica que são capturadas como poeira nos raios da luz solar em uma única sequência de fotogramas, da mesma forma que uma frase dentro de um romance – o filme como um único fotograma, ou seja, como uma única imagem escrita ou passagem ou capítulo. Nos meus primeiros anos em Londres, lá pelos idos de 1978-81, estive obcecado com o Magick Lantern Cycle de Kenneth Anger – pois essas breves e peculiares obras-primas são os equivalentes visuais das fábulas, histórias curtas, parábolas, poemas e sonhos esquecidos ou fragmentos de sonhos induzidos pelo ópio que se perderam antes do clímax do REM. Assistir os filmes de Kenneth Anger permite a abertura de um sentido questionador da articula o estado de sonho em uma narrativa, na qual a lucidez comatosa é o passaporte para oportunidades infinitas da caneta no papel. Eu poderia dizer que se trata de uma influência chave. Imagine a força da imagem de um pé de elefante pisando em uma cobra, visto por apenas um segundo como se não existisse. Se foi… mas não de nossa cabeça… estará para sempre. Veja Lucifer’s Rising e veja por si mesmo. Tendo em vista o material que você já publicou, há de sua parte uma aparente preferência pela narrativa curta – o conto ou a novela. É uma escolha deliberada? Você pensa em publicar um romance no futuro? Tive o privilégio de ser agraciado com oportunidades significativas para desenvolver o conto até o formato da novela e devo isso a Mark Valentine e Dan Ghetu pelo encorajamento e fé em meu trabalho. Eu diria que tal trabalho não foi assim deliberado, como uma previsão, uma transição altamente instrutiva para o processo de formatação de ideias, noções e sombras de personagens a partir do éter; quase um “deixe acontecer”, se preferir. Eu acredito que a forma da novela é um mecanismo bastante preciso para o desdobramento e exame de noções e ideias. Trata-se de um formato desafiador, mas que traz mas que traz consigo vantagens em seus próprios limites, especialmente úteis quando o construto central dentro da novela está encubado, inculcando a si mesmo como em um automático e distanciado processo. Tais recursos se manifestaram em um recente material que enviei para Mark Beech [editor] da Egaeus Press e também, parcialmente, no trabalho que fiz para Dan Ghetu sobre Fernando Pessoa. Me senti, nesses casos, profundamente perturbado e profundamente excitado porque aparentemente significava que havia outras forças trabalhando, forças bastante cruas e profundamente independentes da idealizada personalidade de um escritor. Talvez eu desenvolva essa percepção posteriormente, talvez eu apenas termine com isso para o mundo ver os resultados. Eu adoro a pergunta: “existe um romance em você?” – meu pai me perguntou isso – e minha resposta seria “sim, provavelmente”. Tenho dois projetos em desenvolvimento atualmente – espero que os deuses permitam que eu posso fundi-los em um romance – que jogarão alguma luz nas Sombras de Londres [conheço uma pessoa que vai reconhecer essa ideia] juntamente com algo chamado O livro das bruxas de Londres – mas não espere bruxaria aqui, mas sim uma insidiosa e incerta filtragem de certo espectro de Londres que se acumula no fundo da ampulheta acompanhando minhas perambulações pela Alameda da Memória, torcendo para que aquilo que eu recupero faça algum sentido. Mergulharei nessa fusão a primeiro de janeiro de 2015, como uma defesa contra o tédio e os rituais de final de ano, de uma transição que é como a face de Jano e por que não? Muitos fragmentos foram escritos e agora devem ser arranjados. Contudo, não sou corajoso o suficiente diante da ideia de um romance. É uma perspectiva apavorante, a expansão do regime e da paisagem da novela em uma nova e cultivada terra. Há o conflito no romance – entre o equilíbrio e a confiança na narrativa, a constância e a credibilidade dos personagens e a nobreza e grandiosidade da situação; e se essa “grandeza” for confinada aos pensamentos íntimos de um velho misantropo, então é necessário apressar um estudo e mais tinteiros antes da chegada do destino. Não sou tolo o suficiente para pensar que algo assim seria fácil. O medo de um escritor é pior que qualquer bloqueio criativo. Entrevista conduzida com apoio do programa PNAP-R, da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Richard P. Martin em sua apresentação da Odisséia de Homero na tradução de Edward McCrorie (e que aparece como introdução da excelente edição do poema homérico lançada pela Cosac Naify) menciona como certa variação nos manuscritos remanescentes do poema épico grego abre a possibilidade de uma outra versão da Odisséia. Pois Atena, no primeiro canto, deixa clara sua intenção de inspirar o jovem Telêmaco, filho do Odisseu, a buscar informações do paradeiro do pai entre os reis e chefes militares gregos que já haviam retornado de Tróia. Os pontos cardeais dessa busca, a “telemaquia”, são bem conhecidos: Esparta e Pilos, cujos reis que deram depoimentos eram, respectivamente, Menelau e Nestor. Ocorre que alguns manuscritos remanescentes informam que Atena instruiria Telêmaco a visitar ao menos mais uma cidade, Creta, regida por Idomeneu. Martin, então, especula se não haveria uma versão mais longa da Odisséia, que se perdeu no limbo da História em algum obscuro processo de revisão textual provocado ou não por oscilação tenebrosa na qual uma porção – impossível determinar se considerável ou irrelevante – do poema desapareceu, provavelmente para sempre. É bem verdade que essa perda sobrevive em margens, em interstícios mais ou menos perceptíveis, em vestígios evocados pelo rigor arqueológico. Mas, como Martin afirma, existe sempre algo como “uma provocação” de que esse texto perdido ressurja, de alguma forma, em algum lugar, que essa parte seccionada e desconhecida nos revele algo da Odisséia, nos permita perceber o poema homérico de uma maneira nova. O texto perdido atiça nossa curiosidade e abre uma brecha na percepção estável que temos da Literatura, da História, do Conhecimento, do Universo. O livro perdido, ignorado, aniquilado – em uma palavra, possível – parece conter, ao menos para seu leitor potencial, uma parcela da revelação divina.
Curiosamente a mesma sensação extasiante diante da descoberta de uma obra de arte perdida, de uma narrativa truncada por espaços em branco, é frequente nas pesquisas e restaurações realizadas por historiadores do cinema. Talvez a proximidade narrativa com a literatura, a necessidade de reconstrução de uma história completa, torne os esforços de restauro cinematográfico dramáticos. Cópias raras de filmes quase extintos são encontradas em porões, trens militares abandonados e outros locais ainda mais improváveis. Matrizes tão desgastadas que exigem novos procedimentos, tecnologias e abordagens de um material fragilíssimo e, em alguns casos, inflamável. Um filme como Metropolis (idem, 1926) de Fritz Lang, por exemplo, apresenta uma história tão longa e complexa de restaurações, descobertas e recuperações desde seu lançamento até os dias de hoje (pois uma versão ainda mais completa do filme de Lang foi encontrada no ano de 2008 em Buenos Aires) que transforma-se em uma espécie de lenda contemporânea e a busca dos pedaços desse filme espalhados pelo mundo para que possam constituir uma totalidade possível, a moderna busca pelo Santo Graal. Outros filmes, que sobreviveram na forma de sequências de fotogramas como O Prado de Bejin (Bezhin lug, 1935) de Sergei Eisenstein excitam a imaginação do espectador da mesma forma como os registros de uma “telemaquia” mais longa excitam leitores de Homero: imaginamos o que seria possível a partir daquele fragmento de arquivo sobrevivente, excitamos nosso imaginário para as consequências de uma tal descoberta impossível. Um sentido de busca por uma utópica descoberta, pelo restabelecimento definitivo de um fragmento do passado – ou, ao menos, pela evocação daquilo que foi perdido – move os exploradores de arquivos que buscam recuperar, arrancar dos destroços de sucessivas tormentas históricas documentos de inegável beleza. Nesse processo, se deparam com alusões tão obscuras e esotéricas, evidências tão desconexas e difíceis de precisar que aparentemente abandonaram o terreno da pesquisa histórica e mergulharam nos fragmentos de algum sonho (ou pesadelo) coletivo da humanidade, materializado em uma obra artística. Poderíamos denominar os resultados das infindáveis investigações – para sempre incompletas pois a completude de pesquisas que possuam tal magnitude seria a recuperação completa e absoluta do passado – de tais exploradores ficções de arquivo. A ficção, aqui, não é apenas uma extrapolação de dada realidade histórica por meios narrativos e miméticos. Para autores como Jorge Luis Borges, por exemplo, ficcionalizar é construir um universo coerente, autoexplicativo e ordenado por leis peculiares complexas, que podem ser compartilhadas com a realidade por assim dizer “corrente”. Assim, no Manual de zoología fantástica, Borges tece uma interessante reflexão a respeito de como trabalhamos os dados da realidade ao questionar como a visão de animais selvagens no zoológico não provoca em um espectador infantil absoluto terror mas, antes, admiração e até mesmo terno carinho, de modo que o passeio ao zoológico costuma figurar entre as diversões da infância. Borges nos oferece então sucessivas explicações imaginativas para a situação por ele descrita, todas eventualmente válidas ou falsas, vinculadas ao senso comum ou a grandes tradições do pensamento filosófico como a de Platão ou Schopenhauer. A ficção, nesse sentido, ganha o curioso estatuto de uma possibilidade interpretativa funcional dos dados factuais, captados por nossos sentidos e/ou por nossa consciência e que, brutos, nada significariam sem nossa atividade interpretativa. O pesquisador cujo trabalho se relaciona com o que aqui definimos como ficção de arquivo, portanto, trabalha nas margens e nos limites entre realidade, registro histórico, memória e ficção, especialmente quando precisa descrever ou reconstruir elementos de obras perdidas, como biografias, trajetórias, possíveis destinos. Da mesma forma, o ficcionista de arquivo precisa ultrapassar os limites usuais e demarcados dos discursos literários: o ensaio especulativo atravessa as fronteiras da narrativa, a rememoração se aproxima da reflexão histórica, a descrição torna-se, sem aviso, uma projeção poética. Uma história arqueológica da ficção de arquivo é tarefa que ainda necessita ser realizada, mas podemos afirmar que um de seus patronos é o já citado Jorge Luis Borges. As criações de Borges colocavam instâncias do discurso literário em conflito, deslocava-as para o campo do paradoxo. Assim, há fabulações imaginativas que poderiam ser estudos literários (como no conto “Pierre Menard, autor del Quijote” da seção El Jardín de senderos que se bifurcan que está em Ficciones), ensaios filosóficos com certa ressonância poética e narrativa (Historia de la eternidad), estudos literários que mergulham nas profundezas do imaginário em busca de novas interações e formas (o já mencionado Manual de zoología fantástica). Mais atualmente, alguns autores que transitam por esse universo equívoco merecem destaque. Luiz Nazario, no Brasil, trabalha com os arquivos fornecidos pelo imaginário cinematográfico, literário e filosófico, especialmente quando abandonados, deixados de lado ou relegados ao injusto esquecimento. Na Europa, autores como Mark Valentine (em Wraiths e And I’d Be the King of China) e Andrew Condous (Letters from Oblivion) – cujos focos são, respectivamente, a produção literária inglesa na última década do século XIX e o grupo surrealista romeno Infra-noir – realizam minuciosa recuperação de obscuros momentos da literatura, inclusive emulando o estilo e perspectiva de seu objeto, buscando quase a reprodução das obras perdidas, dos projetos abortados. Trata-se de uma impressionante demonstração do poder sugestivo da ficção de arquivo, ao explorar a imaginação e o desejo humanos realizados nos livros, especialmente aqueles desaparecidos no horizonte da História. ••• A coletânea de contos Signos, de Nestor Vítor, teve um curioso, estranho destino. Impresso pela Typographia Correia, Neves em 1897, teve recepção calorosa à época, incluindo imponente resenha de Cruz e Sousa, publicada na revista República a 23 de agosto de 1897 que dizia: "O surpreendente e curiosíssimo artista dos Signos, que agora tão soberbamente se manifesta nas páginas deste livro de uma alta significação estética, tão anunciante de segredos, tão revelador de mistérios e tão sugestivo de majestade, é um dos raros poderosos que têm o dom magnífico e mágico de violentamente arrebatar, a nossa alma, de a fazer tremer e soluçar de comoção diante da sua.” Mesmo assim, o livro de tiragem limitada nunca teve uma segunda edição. Uma vez que o papel do próprio Nestor Vítor no quadro geral do simbolismo brasileiro acabou deslocado ao de colaborador crítico de Cruz e Sousa, além de poeta/prosador menor nas horas vagas, a reedição de uma obra como essa deixou de ter qualquer prioridade. Esgotado, o livro acabou desaparecendo de vista, não tendo espaço sequer nas coleções particulares de bibliófilos ou de pesquisadores do simbolismo. O estudioso Marcelo José Fonseca Fernandes, em sua tese de doutorado apresentada na UFRJ com o título O conto simbolista no Brasil seguido de antologia comentada, menciona a dificuldade em ter acesso ao livro, pois os contos que nele figuram sequer chegaram a ser transcritos em outra coletânea. Segundo Fernandes, há apenas um único exemplar nos grandes acervos nacionais – que incluiriam a Fundação Biblioteca Nacional e a Coleção Brasiliana, da USP – passível de consulta, mediante prévia solicitação e agendamento, na Fundação Casa de Ruy Barbosa. A tese de Fernandes, aliás, é um dos poucos locais em que podemos encontrar a reprodução de contos do livro Signos. Como se deu tal fenômeno, de uma obra de inegável valor – histórico e artístico – reconhecido pelos contemporâneos ser praticamente ignorada como se sequer tivesse existido? Uma hipótese que poderíamos formular é que a avalanche crítica detonada pelo modernismo aniquilou a proposta estética e o sentido literário da literatura simbolista. É bem verdade que algo dessa avalanche exista em tradições literárias pelo mundo, mas no Brasil a eficácia do turbilhão de julgamento crítico do modernismo, notadamente com as escolas literárias que surgiam como concorrentes, foi muito mais sistemático, atingindo também a pesquisa acadêmica. É necessário destacar que a estética simbolista em certos enclaves do Brasil – como o Paraná, estado natal de Nestor Vítor – tornara-se algo como uma estética oficial e autores modernistas locais após a Segunda Guerra Mundial, como Dalton Trevisan, lutavam diretamente contra esse simbolismo canônico regional. Assim, críticos como Alfredo Bosi em seu História concisa da literatura brasileira, serão impiedosos na avaliação da prosa simbolista – ainda que o próprio Bosi conceda que Signos era, de fato, obra original –, uma ficção cujo lugar comum seria o fácil elogio da loucura, um resoluto dar de costas para o cotidiano e o terra-a-terra. Esse criticismo que se define pela percepção realista da narrativa – elencada como parâmetro qualitativo em termos estéticos – relegaria à vala comum empreendimentos literários, poéticos e narrativos produzidos no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX, material que mesmo pesquisas sistemáticas e importantes panoramas, como os de Andrade Muricy e Massaud Moisés, não foram capazes de resgatar. O já mencionado pesquisador Marcelo José Fonseca Fernandes destaca como o ostracismo que atingiu os simbolistas (notadamente em suas experiências no campo da prosa narrativa) os marginalizou de tal forma que sequer tiveram acesso às notas de rodapé da história da literatura brasileira. Autores como Nestor Vítor, Lima Campos, Rocha Pombo, Medeiros e Albuquerque, entre outros, tiveram algumas de suas obras limitadas às primeiras edições, algumas eventualmente preservadas em arquivos espalhados pelo Brasil ou praticamente invisíveis mesmo para o leitor especializado. As possibilidades dessas obras serem resgatadas de seus abismos de esquecimento estão nas mãos de editores independentes como Camilo Prado, a frente da Edições Nephelibata, repetindo ironicamente os padrões do passado: edições em tiragens pequenas, destinadas a connoisseurs. Os críticos que tiveram contato com Signos são unânimes em destacar a originalidade da prosa de Nestor Vítor. Ao menos uma das narrativas, a novela “Sapo” com suas 79 páginas, em que a degradação e o isolamento transformam seu protagonista em batráquio humano, uma premonitória antecipação de A metamorfose de Franz Kafka. Nas poucas páginas de Signos reproduzidas na tese de Marcelo José Fonseca Fernandes, é possível perceber que Nestor Vítor, aprofundando matizes do simbolismo e do decadentismo, encontrou fórmulas narrativas que dialogavam com a fábula, o poema em prosa, a narrativa evocada por imagens obscuras e simbólicas, não por encadeamentos lógicos ou referências imediatas. Trata-se de um processo de estilização que se comunica com a obsessão descritiva e ornamental de autores do Nouveau Roman, como Alain Robbe-Grillet, da mesma forma que com a literatura plena de artifícios de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy-Casares. Essa prosa ornamental, descritiva e “obscura”, que opta por encadeamentos imagéticos e não sequenciais, violava certas convenções estabelecidas desde antes da modernidade literária no Brasil – mas adotados por tal modernidade –, notadamente a necessidade referencial, realista ou irônica. De fato, uma ficção que se desdobrava em torno de imagens imaginativas, extremamente elaboradas, seria intolerável para setores reacionários da crítica literária, representados por José Veríssimo que afirmava ser o simbolismo como “mero produto de importação”. Contudo, mesmo críticos surgidos após o modernismo, como Alfredo Bosi, reforçariam a imagem de um movimento alienígena, “surto epidêmico”, corpo estranho na ordenada constelação literária brasileira. O chauvinismo aberto ou velado do modernismo e da crítica literária brasileira, tanto anterior quanto posterior a 1922, não perdoariam a percepção internacionalista e anti-patriótica do simbolismo/decadentismo, a disposição em abandonar a gaiola de ferro da referência na realidade histórico-social brasileira. A verdade é que obras como Signos, exiladas da literatura brasileira em uma espécie de limbo do esquecimento, só podem ser resgatadas através da coragem de editores visionários como Camilo Prado ou pela ficção de arquivo, que possibilitaria ao menos a evocação da obra que reverberaria na imaginação do leitor e manteria viva a memória do livro. Pois, em alguns casos trágicos, será essa memória o único testemunho da existência daquilo que foi definitivamente perdido, esquecido. Artigo realizado com o apoio do programa PNAP-R da Fundação Biblioteca Nacional. Abaixo, descrição do livro Signos pelos Anais da Biblioteca Nacional (vol. 87, 1967) e frontispício da obra, em imagem retirada de leilão de livros raros que ocorreu no ano de 2013. O poeta William Blake acreditava que o Criador, ao forjar nosso universo, trabalhou como um impressor ao confeccionar um livro. A Natureza, o Homem e o Cosmo surgem, dentro da poesia blakeana, mediados pelo ruído tenso das prensas, pela escolha frenética dos tipos móveis, pelas chapas de cobre das matrizes crispadas devido à ação do ácido, pelas tintas que correm na superfície irregular e caprichosa do papel. Segundo pesquisadores como Joseph Viscomi (em seus estudos sobre as técnicas de gravura de William Blake) ou Manuel Portella (na introdução para a edição portuguesa Sete Livros Iluminados do poeta inglês), Blake, ao contrário do que se acreditava, não trabalhava com a transferência de um rascunho/modelo executado em papel, mas diretamente nas placas de cobre que seriam impressas, harmonizando texto e ilustração, conjugando invenção (invenire) e execução (facire) em um gesto criador único, texto e imagem simultaneamente marcados na superfície bidimensional da chapa de cobre que logo ganharia sua configuração definitiva em papel, tão rica quanto uma galáxia.
O poeta, assim, mimetizava o criador ao trabalhar em sua oficina de impressão, forjando mitos e projetando criaturas novas em fluxos criadores que não se esgotavam na estreita mancha de impressão da página, mas que explodiam em possibilidades novas que migravam da palavra para a imagem e vice-versa. A concepção demiúrgica de Blake de universo-livro renovou as concepções passadas da Criação codificada em um livro especial como serviria de inspiração para novas atualizações dessa imagem definitiva, como a de Mallarmé, já durante o simbolismo, que afirmava que o mundo existia apenas para terminar como um livro. Nesse sentido, o livro Segredos, de Luiz Nazario, também nos oferece universos que surgem e se desintegram ao sabor das tempestades de Mito e História. Poder-se-ia afirmar que o autor de Segredos compartilha algo mais com Blake além do gosto pelo universo gráfico, pela mística do apocalipse, pela ironia, pelo discurso múltiplo – Nazario é um poeta bissexto, dividindo seu tempo entre a reflexão filosófica, a crítica cinematográfica e a pesquisa histórica. Da mesma forma William Blake, gravurista de profissão que descobriu no labor poético uma expressão mais complexa das visões que continuamente o assaltavam. O destino do poeta eventual é difícil: por não ser um funcionário da palavra, o artífice em tempo integral que trabalha burilando seus versos, pode ser visto como superficial, inconsistente, frívolo. Pasolini sofreu o mesmo destino, em sentido inverso: sempre que escrevia algo que não fosse poesia, era ridicularizado pelos experts de plantão, que viam no denso e complexo pensamento pasoliniano algo como a intromissão intolerável de um diletante na sociedade secreta dos especialistas. Talvez por isso, Nazario tenha optado em seu début poético pela fusão discursiva, pela instabilidade do formato poético, oscilando entre prosa, poesia, narrativa, ensaio, aforismo, pensamentos pascalinos, raccord cinematográfico. Pois o território de Nazario é ambíguo e a forma poética, terreno fluído para as mais diversas experiências. Tal instabilidade, longe de ser o signo da inconsistência, indica antes uma infinita angústia existencial que ultrapassa o véu seguro e tranquilo do “eu poético”, atingindo a intensidade da percepção do sofrimento humano que unifica nosso destino em uma ruinosa continuidade, da criação à aniquilação. De fato, o livro de Luiz Nazario principia com um texto sobre a criação: imagens da barbárie histórica, continuamente recombinadas, fornecem a visão vertiginosa que a mentalidade mítica nos garante através da repetição da destrutividade em ciclos crescentes, que tendem ao absoluto. Mas o discurso apocalíptico de Nazario é ardiloso, pois não se apresenta como uma narrativa de origem, um poema de evocação tenebrosa, mas antes como um texto programático, o “Manifesto dos cogumelos gigantes” –segundo o autor, uma reescritura do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, atualizado à luz de autores que souberam dimensionar o apocalipse: Wells, Orwell, Ionesco. Na única resenha escrita sobre Segredos, a autora, Susana Scramim, disserta a respeito dessa natureza demiúrgica da poesia de Nazario, que surge resplandecente logo nesse primeiro poema – percebendo o quanto há de dantesco nas paisagens nazarianas. Contudo, o foco de Scramim se perde na superfície dos poemas, imaginando serem os EUA o grande artífice dos concêntricos círculos infernais da modernidade, alvo da poesia (da prosa, da ensaística e da tratadística) de Luiz Nazario. Mas ele não pretende ser mais um a vilanizar o “grande satã” – como dizia Aiatolá Khomeini – uma vez que a poesia que vemos em Segredos é vibrantemente cinematográfica, em um sentido profundamente hollywoodiano. O irônico “O fim da humanidade” parece evocar personagens e cenas de Hitchcock, Chaplin, Welles. Enquanto “A orquestra minúscula” é um pequeno e perfeito conto fantástico em forma de poesia, uma animação que se desabrocha através de versos e que poderia ter sido visualmente concebida por Walt Disney ou por Chuck Jones. As reminiscências de cidades como Weimar, Roma e Karnack aproximam Nazario das percepções da chamada “psico-geografia” dos situacionistas (embora bem mais interessante e complexa), ou seja, são aproximações e novos sentidos a partir de coordenadas geográficas bem conhecidas. Já a série de poemas “As ruínas da modernidade” – concebida originalmente para integrar um trabalho reflexivo multimídia, espécie de arqueologia desse fenômeno tenebroso da modernidade que é o terrorismo, projeto vetado à época pelo filósofo de esquerda que organizava o evento – sintetiza as diversas tendências e percepções poéticas do livro em uma sequência vertiginosa de horror e caos, que nós (espectadores e cúmplices) optamos por ocultar empregando o conforto malsão da cegueira, que denominamos esperança. Diante da pavorosa ascensão de grupos como o ISIS e seu califado medieval-tecnológico, a percepção de Nazario, gestada ainda no século passado, surge espantosamente atual. Poderíamos, na verdade, arriscar um outro paralelo entre Segredos e a produção de William Blake: a beleza das ilustrações, a natureza manual da composição tipográfica, o elemento visual e gráfico cuidadosamente pensado, a forma elaborada com que as imagens dialogam com o texto. Oswaldo Medeiros, artista já falecido, foi o responsável por tal primor em termos de projeto gráfico. Logo no colófon, somos informados que o projeto surgiu de uma bela proposta de Medeiros concretizada no projeto Memória Gráfica, responsável pela edição de Segredos: a reabilitação de menores infratores, que teriam contato com a estranha, simultaneamente moderna e ancestral, arte da tipografia/impressão. Ignoro se o projeto gerou outros frutos, mas creio que um livro como Segredos, de um autor como Luiz Nazario, materializa bem a proposta do projeto através de paradoxos sobre a modernidade. Pois a construção e a manutenção da Liberdade, refletida na criação artística, pode ser dolorosa, imaginativa e cruel, mas sempre será imprescindível. Há alguns exemplos conhecidos de obras literárias que utilizam sistemas de divinação como um tipo de estrutura essencial em termos narrativos ou poéticos. Esse é o caso de O castelo dos destinos cruzados (1973) de Italo Calvino, elaborado a partir de interpretações possíveis das sequências de cartas que ilustram cada narrativa – algumas das quais surgiram, inicialmente, em uma edição da Franco Maria Ricci com esplêndidas reproduções de baralho pintado, ao século XV, por Bonifácio Bembo para os duques de Milão. Outro exemplo: O homem do castelo alto (1962) de Philip K. Dick, em que o clássico texto oracular chinês não apenas surge como dispositivo narrativo mas como recurso para solução de imbroglios narrativos empregado pelo próprio autor. Mais raros, contudo, são os casos em que uma obra narrativa ou poética torna-se ela própria um oráculo, absorvendo algo das propriedades sugestivas dos textos, imagens e simbologia da arte divinatória. Esse é o caso de Los San Signos do polígrafo argentino Xul Solar, espécie de tradução imagética/interpretativa do I Ching para o idioma inventado por Solar, o neocriollo, matizada por imagens retiradas de fontes como a Divina Comédia de Dante. Esse também é o caso de Dada Gnosis, trabalho do escritor e editor romeno Dan T. Ghetu, cuja ressonância oracular foi percebida por outro autor extraordinário, Damian Murphy, em uma resenha (outra interessante resenha/experimento, uma apreciação sem palavras, foi publicada por Des Lewis em seu site).
Do ponto de vista físico, Dada Gnosis lembra menos um livro e mais uma caixa de fósforos entulhada de escritos, sem ordem aparente – são, na verdade, seis folhas coloridas dobradas na forma de mini-livretos. Esse curioso formato remete, simultaneamente, a um estranho baralho de tarô e a uma provável metodologia para a difusão de textos clandestinos, cuidadosamente dobrados e ocultos em locais insuspeitos. Cada um dos livretos contêm poemas que fazem referência a poetas vitimados pelas terríveis tempestades históricas que acossaram a Romênia no século XX. Como o título do conjunto sugere, estamos diante de uma espécie de gnose contemporânea e iconoclasta, a possibilidade de descoberta pelo poder do acaso e da negatividade, que pulsam de cada um dos poemas de Ghetu. Esses vertiginosos e breves textos em prosa poética abordam o exílio, a solidão, a guerra, o isolamento, a perseguição. Os poetas de Ghetu se juntam aos judeus como minoria perseguida, uma compreensão direta do destino de um povo que quase nunca encontra um local em que possa repousar por muito tempo, antes de retomar seu exílio, sua fuga ou sua morte. Assim, os vaticínios evocados por esse curioso oráculo não são como os horóscopos projetados no mass media: são possibilidades que se projetam a partir das ruínas, tendência inescapável como bem demonstra a História, o pano de fundo de cada um dos hexagramas desse novo I Ching. De fato, há algo de irônico e enigmático em se conceber reflexos dos frenéticos e titânicos conflitos históricos em pequenos textos dobrados, enfiados dentro de uma pequena caixa. Esses dois atributos – a ironia e o enigma – fazem de Ghetu, um editor de imenso talento à frente da Ex Occidente Press, um legítimo herdeiro dos vanguardistas romenos que formaram o grupo surrealista de Bucareste, o “Infra-Noir”, que cultuavam o mistério, a clandestinidade, o mito renovado como uma estranha forma de revolução, necessária para subverter/destruir tanto a extrema direita quanto a esquerda autoritária, ambas unidas nos mesmos preconceitos, no mesmo ódio à liberdade, na mesma construção de uma mitologia postiça e ridícula. No poema dedicado a Mehmet Niyazi, uma das estrofes nos diz: “Os anjos vieram, afinal. A longa estrada do poeta está para começar.” A dor do exílio, da fuga, da perseguição, da morte, para o poeta, ganha a configuração de uma estrada aberta, de um road movie sem fim. A felicidade oracular em Dada Gnosis surge não da falsa esperança ou da irrealidade trivial cotidiana, mas da percepção poética de um mundo mergulhado em sangue, mas ainda aberto e possível. ualquer autor brasileiro sabe como é difícil publicar um livro no Brasil – de poesia, ficção, ensaio, estudo, história em quadrinhos, romance policial, o que for. Com um publico leitor pequeno e questões complexas de distribuição e visibilidade, muitas editoras trabalham em excelentes títulos que acabam perdidos em produções regionais ou ignorados graças à massa de traduções e de best sellers que inunda as grandes livrarias que, hoje, funcionam como lojas de departamentos de produtos culturais. O fato é que esses livros dispersos e injustamente relegados a papel de fundo necessitariam de um Andrade Muricy, crítico pioneiro que trouxe à tona a realidade complexa do nosso simbolismo em seu trabalho Panorama do simbolismo brasileiro, dois volumes que sumarizavam imensa produção regional e limitada. Mas não há tantos críticos desse calibre para tal trabalho, embora algumas pequenas editoras consigam uma espantosa, imprevista visibilidade. A qualidade de um catálogo, somada ao risco de publicar autores novos, a qualidade do design e a valorização do trabalho de artistas gráficos de talento em capas e ilustrações internas, o trabalho delicado e belo de diagramação e tipografia.
Esses elementos, cultivados à perfeição e à margem do poderio de enormes conglomerados editoriais, foi o que transformou o editor Massao Ohno (1936-2010) em uma figura única no cenário editorial brasileiro. Esse dentista de formação, filho de pais japoneses, iniciou sua carreira editorial na década de 1950, trabalhando com apostilas para cursinhos pré-vestibulares. Depois, mergulhou na publicação de literatura, trabalhando com autores novos e pouco conhecidos, em um catálogo vasto constituído por cerca de 800 títulos. Poetas como Claudio Willer e Antonio Gomes de Franceschi tiveram trabalhos iniciais importantes publicados por Massao – na verdade, toda uma geração de poetas que despontava nos anos 1960 teve com ele sua primeira experiência editorial. Leitor refinado e afiado – qualidade essencial a um bom editor – Massao, contudo, soube diversificar bastante seu catálogo. Talvez por isso tenha criado séries como a “Clássicos Orientais”, dirigida por Antonio Nojiri e Ricardo Mário (João K. Suzuki e Manabu Mabe eram os diretores artísticos), que estreou com aquela que deve ser a primeira tradução dos contos do escritor japonês Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927) editada no Brasil. Akutagawa foi um escritor marginal, talvez – como Mishima, algumas décadas depois – pela mescla complexa e sofisticada que o autor realizou da visão de mundo ocidental e oriental, em termos culturais, políticos, religiosos. Como explicitou Jorge Luis Borges, com Akutagawa percebemos como o Oriente absorveu o Ocidente. Estudioso da melhor literatura européia – sua tese de doutorado era sobre William Morris – e comparado frequentemente a August Strindberg, Akutagawa abraçou uma visão mística torturada, retomando a história de mártires cristãos no Japão em versões orientais da “Lenda Áurea” medieval, ao mesmo tempo que inventava alegorias em territórios fantásticos e desmontava a fábula empregando procedimentos de Robert Browning e Marcel Schwob (como nos dois mais famosos contos de Akutagawa, os espantosos “Rashomon” e “Dentro do bosque", ambos fundidos no lendário filme de Akira Kurosawa). Cometeu suicídio aos 35 anos de idade. As histórias desse autor ousado e complexo foram a escolha de Massao para o primeiro volume da coleção, Rashomon e outros contos, uma edição rara, belíssima, artesanal, na qual sequer consta a data de publicação. Impossível saber se a coleção seguiu adiante com outros lançamentos, mas a notável beleza desse primeiro volume é algo a se destacar: a capa, de João Suzuki, apresenta a ilustração de um rosto feminino e fantasmagórico graças ao uso de contrastes entre branco, cinza e preto, uma prévia para as lindas ilustrações internas, a cargo de Manabu Mabe. Mabe empregou caligrafismos em densas pinceladas que tanto lembram ideogramas possíveis de um japonês real (ou imaginário) quanto personagens tão esboçados e distorcidos quanto os que vemos em cada uma das narrativas (além de “Rashomon”, temos outras três: “Dentro do bosque”, “Kappá” e “O Cristo de Nanquim”). A tradução, de Antonio Nojiri e Ricardo Mario Gonçalves, é delicada, aparentemente realizada a partir do original em japonês e estruturada tendo em vista os efeitos de ironia e de espanto/reviravolta valorizados por Akutagawa. As narrativas, em pouco menos de 100 páginas, praticamente cobrem toda a produção de Akutagawa de forma prototípica: da ruptura formal com a lenda japonesa e busca de fontes ocidentais para estrutura da trama em “Rashomon” e “Dentro do bosque” à recuperação da narrativa fabular cristã dentro de um contexto histórico oriental, que é o caso de “O Cristo de Nanquim”. Já “Kappá”, um conto mais extenso e um dos últimos escritos por Akutagawa, constitui uma narrativa única. A intenção inicial é satírica: Akutagawa criou uma espécie fantástica, a partir de um animal imaginário conhecido do bestiário nipônico tradicional, para falar sobre as mazelas humanas. Mas, conforme a trama se desenrola – como Borges bem percebe – o autor parece se esquecer das convenções usuais da narrativa satírica, do bestiário, da fábula convencional desde Esopo: seus kappás, antecipando Karel Capek no romance apocalíptico A guerra das salamandras, transformam-se em homens, falando diretamente dos problemas e das angústias da época. Ainda segundo Jorge Luis Borges, essa indesculpável “falha literária”, por assim dizer, que é esquecer ou ignorar as convenções canônicas de gênero e função narrativas, mergulha o leitor na mais absoluta e desesperada melancolia, provavelmente a mesma experimentada por Akutagawa em seus últimos anos de vida – sentimos que sua prodigiosa imaginação, da mesma forma que os sonhos de sua arte, entram em colapso, pois o mundo, seja ele habitado por kappás ou homens, surge nessas (e em outras) páginas do autor como vazio e desprezível. Maravilhosa edição, resultado de um cuidadoso trabalho artesanal que trata o livro, seu autor e leitor com o respeito devido. Uma pena que já sejam raros editores como Massao, dispostos ao risco e ao novo, à valorização do inédito e à busca da ruptura. Uma pena que o livro seja raro e que as novas traduções de Akutagawa, embora de ótima qualidade, sejam publicadas em edições bem menos belas e memoráveis. Oxalá a recuperação dessas edições “perdidas”, ainda que em escala limitada – através de comentários, fotos e vídeos na Internet ou em outros meios de divulgação –, não seja o suficiente para inflamar alguma sugestionável imaginação editorial. Existe uma infinidade de possibilidades para a criação poética – uma delas, a de evocar. Ou seja, aproximar algo distante daquilo que está próximo, o usual daquilo que se perdeu, o conhecido do desconhecido. Trata-se de um processo de transformação que envolve uma dose razoável de mistério, pois a forma poética se aproxima da prece, da fórmula de encantamento, da música, do fluxo vago do pensamento reflexivo, da imaginação desenfreada próxima tanto do delírio quanto da inspiração divina. O saudoso filólogo e professor Segismundo Spina menciona como, para Isidoro de Sevilha em sua obra Etymologiae – a partir de Suetônio – a poesia, de origem semidivina, estaria subordinada ao culto, consagrada à exaltação dos deuses primitivos. Eram os “vates” que, arrebatados por um furor inumano, a “vesania" pronunciavam oráculos e vaticínios. A linguagem na boca desses indivíduos tornava-se uma estranha forma de comunhão, uma continuidade explosiva entre a Natureza, o universo abstrato e reflexivo e o mundo como entendido usualmente pela sociedade organizada, construindo a paisagem na qual os deuses ganhavam seu corpo e sua alma. O tempo passou e a possibilidade mágica da linguagem foi se tornando mais limitada – a utilização prosaica da linguagem parece, constantemente, soterrar suas possibilidades visionárias. Contudo, a poesia ainda existe: a duras penas é bem verdade, mas ela explode de forma especialmente deliciosa quando encontramos (ou reencontramos) um grande poeta – e é essa a sensação que temos, de encontro e de reencontro, quando lemos A agonia dos pássaros de Fernando Naporano, livro publicado com esmero e arte pela editora Selo Demônio Negro.
Os poemas de Naporano se alinham à tradição da melhor poesia vanguardista em língua portuguesa, imaginista e visionária, de poetas como Fernando Pessoa, Mario de Sá-Carneiro ou Herberto Helder. Mas as criações de Naporano, apesar dessa filiação, estão longe de ser qualquer coisa derivada, uma homenagem convencional, construções pedestres que possam ser catalogadas em gavetas cuidadosamente ordenadas. Uma dicção bastante pessoal anima os poemas do autor, uma tensão paradoxal entre mudança e permanência, materializada nas imagens constantes que o autor faz do reino mineral – pedras, águas, lâmpadas, traquitanas, animais leves, objetos estáticos que se transfiguram em metamorfoses com a subjetividade do poeta que os observa, cujo desejo de se perder nesse mundo de formas lentamente golpeadas pela Natureza provoca pequenos e sentidos cataclismos. A intensidade desses cataclismos em miniatura, contudo, demonstra que não estamos diante de qualquer tipo de lamúria em tom menor, de reclamações diante das necessárias limitações nas medidas do Homem, nas possibilidades da Natureza, na memória dos deuses – estamos diante de uma refinada percepção da catástrofe, uma catástrofe que se realiza de inúmeras formas em nosso cotidiano, mas que é peculiarmente insidiosa em nossa esfera individual, quando nos devora por dentro. Já os títulos dos poemas naporanianos parecem aludir a imaginários tratados existencialistas, escritos por Kierkegaard e perdidos entre a infinidade de pseudônimos que aquele filósofo dinamarquês utilizava: “Na sórdida periferia da claridade”, “Ocupação do ódio, quase sem conclusão”, “Trilhas surdas do insondável”, “O fulgor na desarticulação do presente”, “Obra levada a exaustão”. Contudo, apesar dos nomes lembrarem livros de filosofia, tais poemas estão longe de qualquer traço de pretensão gratuita, de abstração fria e livresca. São frutos da subjetividade em carne viva e explodem em imagens metamorfoseadas, em evocações constantes – de momentos, de formas sensuais, de maneiras de viver, de esperança na imobilidade e no movimento – construídas com imenso requinte de linguagem de forma que a liberdade pode ser um puma, as recordações são formigas douradas e carismáticas e o Longe, um beija-flor ferido. Como escreve Luiz Nazario, no excelente ensaio introdutório, há algo de cinemático nessas imagens metamorfoseantes, que provavelmente foi “editado”, redimensionado e estruturado pelas ricas experiências, pessoais e estéticas, do autor. Essa percepção cinematográfica da realidade torna-se aplicável em um nível ainda mais profundo, pois concretiza a tensão entre imóvel/inanimado e cambiante/movente, que marca os poemas de Naporano, pois a imagem no cinema é tecnicamente as duas coisas ao mesmo tempo. Ou, colocando de outra forma, até mesmo as pedras escondem uma vida rica em transformações e Naporano retoma o caminho estabelecido por Roger Caillois em seu L'ecriture dês pierres: “Cada espaço está preenchido e cada interstício, ocupado. Mesmo o metal se insinuou em células e canais onde a vida há muito desapareceu.” O livro A agonia dos pássaros foi lançado pelo Selo Demônio Negro, sob os cuidados de Vanderley Mendonça. A Selo Negro investe em autores menos conhecidos, em criações marginais, na valorização eclética da criação ampla, multifacetada, em livros que possuem um irresistível apelo como objetos estéticos. Como usual, o labor editorial de Mendonça no livro de Naporano é notável: uma mescla de tecnologia digital e acabamento manual, de argúcia na utilização dos recursos tecnológicos disponíveis e de preservação da essência artesanal, que traz ao livro de poesia um sentido bastante significativo. Assim, ficamos na torcida para que Naporano publique, de preferência por uma editora como a Selo Negro, mais livros com suas visões únicas, seus devaneios devastadores, cuja leitura será sempre um privilégio e um prazer. Em 1975, Jorge Luis Borges publicaria um conto que seria materialização do sonho de todo o bibliófilo: “El Libro de Arena”, o livro cujas páginas são infinitas (ou ao menos incontáveis) como os grãos de areia que existem em uma praia. O protagonista do conto adquire o fantástico volume de um vendedor de Bíblias escocês que surge em sua casa mas acaba prisioneiro do “livro monstruoso” e “diabólico”. Objeto impossível e fascinante – alimentou mesmo uma releitura apocalíptica de Rhys Hughes, em um conto de sua Nova história universal da infâmia – símbolo daquilo que desejamos e que alimenta nossos piores pesadelos, que apenas podemos abandonar em um local onde se perca definitivamente, assombrando-nos assim apenas como uma provável ilusão dos sentidos. É curioso que o volume monstruoso de Borges não é incomum: a capa demonstrava que o livro passara por muitas mãos, o idioma no qual fora escrito talvez fosse estranho, mas a tipografia era medíocre, as páginas estavam gastas, as ilustrações eram torpes e de feitio mediano.
De certa forma, Borges era sensível a um fenômeno curioso: muitos livros cotidianos, de forma limitada, reproduzem a sensação do livro de areia graças a curiosas disposições na Natureza. O tempo, por exemplo, pode desgastar um volume de tal forma que as páginas, antes vistosas, surgem quebradiças em nossos espantados dedos (que talvez não tocaram essas páginas por alguns anos). Já a memória produz o efeito de espanto diante de um livro que imaginamos conhecer (e que nos surpreende, o que indica que provavelmente não o conhecíamos) quando passagens que temos a certeza estarem em tal e qual página desaparecem, quando novas ilustrações ou sentidos surgem mesmo que de uma leitura breve, superficial. Por outro lado, certos formatos sempre buscaram emular, de forma evidentemente imperfeita, a infinitude: os almanaques e as coletâneas, que possibilitavam a (re)descoberta, o frisson inesperado na leitura do volume. Mas nenhuma dessas formas de aproximação ao “livro de areia”, objeto não natural mas possível (como tantos objetos não naturais) é como esse estranho artefato publicado pela Zagava/Ex Occidente Press: Infra-Noir, compêndio multifacetado e único, o mais próximo possível do livro de areia. O título, que poderíamos traduzir como “infranegro”, parece aludir aos manifestos e séries de opúsculos do grupo surrealista romeno, que congregou nos anos 1940 nomes como Gherasim Luca, Dolfi Trost, Paul Păun e outros. Essa relação com o rico e complexo veio do surrealismo romeno é acentuada pelo trecho do poema de Virgil Teodorescu (ilustrado por stilamancies de Dolfi Trost), Poem in Leoparda (1940), que ilustra a sobrecapa, escrito no idioma dos leopardos, ferocidade fonética inventada por Teodorescu como “idioma” de seu poema, moldada a partir – como destaca Andrew Condous – das experiências dadaístas de Tristan Tzara em torno dos chamados “poemas simultâneos” e do “letrismo” de Isidore Isou. O original do estranho poema de Teodorescu e Trost foi confiscado pelas autoridades romenas em 1959 e imaginava-se destruído. De fato estava, mas não inteiramente: quatro páginas foram secretamente guardadas pela esposa de Virgil, Helene – nessas páginas, podemos ler o trecho que está na capa de Infra-Noir: “Sobroe vinwid tidiv toe”. A linguagem estranhamente irreal e poderosamente sugestiva do poema aparece impresso em letras de tipografia impecável, negro sobre o negro da sobrecapa, um verso primoroso em uma língua desconhecida da humanidade, mas por ela percebida. Na lombada, a indicação evidente de negrura, obscuridade, clandestinidade, ameaça de esquecimento: “Infra-Noir”. Mergulhamos em um universo negro, inacreditavelmente significativo e complexo, mas apesar de tudo ainda estamos na sobrecapa que, a despeito de sua imponência, não é preparação suficiente para o impacto do conteúdo do volume: são seis livros completos, uma gama variada de poesia, prosa poética e ficção em diversos formatos e tipografia, cada um deles acabamento luxuoso que inclui uma ampla gama de ilustrações e fotografia. A abertura de Infra-Noir é “Smoke”, livro de poemas de Mark Valentine. Um amplo espectro da composição poética da vanguarda do início do século XX – notadamente o surrealismo, o hermetismo, o dadaísmo, o expressionismo – informa os poemas de “Smoke” que, por outro lado, possuem uma dicção muito própria. Os focos mais evidentes da poesia de Valentine são o exílio e a dispersão, fatos singulares cuja ocorrência se dá tanto na dimensão do cotidiano e quanto do exótico, a projeção constante de outros universos no universo mesmo que percebemos usualmente. Imagens de fontes, objetos de mármore, templos obscuros, espelhos, coisas perdidas ou esquecidas – esse á a imagerie desenvolvida por Valentine em poemas soberbos que em alguns casos transformam-se em pequenas obras-primas da fusão entre poesia e ficção fantástica como em “hark to the rooks” e “a note about hats”, poemas sobre a perda da identidade pela pressão da Natureza e dos sistemas políticos. O segundo livro é “Inflammable Materials”, escrito pelo dinamarquês Thomas Strømsholt, cuja abordagem também é poética. Mas distingue-se do experimento de Mark Valentine por trabalhar uma outra tradição poética: o pequeno poema em prosa, construção que atingiu um grau de sofisticação apreciável nas mãos de autores como Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Oscar Wilde e Franz Kafka. Strømsholt ataca o gênero com perspicácia, astúcia, entrega e inteligência, trabalhando o sentido alegórico das pequenas construções narrativas com o cinzel da multiplicação dos sentidos – pois é o mistério da alegoria aberta o que alimenta o pequeno poema em prosa, efeito obtido com muita eficácia por Strømsholt notadamente no poema “The Glowing Heart”, gema wildeana na qual um inquisidor pagão – filósofo e poeta – confronta uma santa cristã, com resultados reveladores para ambos e, claro, para o leitor. O terceiro livro da amplitude que é Infra-Noir, “The Unfolding Map”, é uma pequena novela de John Howard. Trata-se de uma obra-prima da mistura que Howard costuma realizar entre realidade história, projeção fantástica e especulação filosófica. Pois a concisão e a precisão, aqui, aproxima essa refinada maravilha ficcional dos trabalhos de um H. G. Wells, de um Henry James ou de um William Gehardie. Na trama, acompanhamos as reuniões de um grupo, encabeçado por um líder nazista escalado por Berlim, em negociações a respeito das fronteiras, sempre móveis, entre Romênia e Hungria nos anos 1940. As discussões ocorrem em um fictício e refinado restaurante, localizado em fictícia localidade na Romênia – mas cada um desses elementos poderia ser real. Esse jogo de aparências está no núcleo da trama e de seu acontecimento climático, indefinível entre o sobrenatural, o mágico, o possível. O quarto livro fecha a metade poética de Infra-Noir: “Soot”, de Dan Watt, com ilustrações de Andrzej Welminski. Watt construiu uma prosa alimentada pela estranha confluência entre a humanidade e seus pequenos aparatos mecânicos, feitos para reconstruir e recortar obsessivamente uma realidade muitas vezes cinzenta, pétrea, sufocante. Esse jogo de enganos entre formas captadas pelos sentidos é exposto em seu âmago nos poemas de Watt e nas ilustrações de Welminski. Assim, temos personagens que buscam adivinhar estranhezas carregadas por outros, um circo que inverte o papel entre espectador e espetáculo, livros raros para rituais inabituais, transformações místicas. O quinto livro é “The Salamander Angel”, de Damian Murphy, outra novela com um curiosa estrutura de múltiplos personagens e pontos de vista. Trata-se de um formato bastante adequado, tendo em vista o fato da trama apresentar as múltiplas visões de um único evento apocalíptico, embora talvez invisível. A prosa da novela de Murphy segue uma formato obscuro e mesmo ocultista, com suas referências a rituais e práticas teosóficas, herméticas. As entrelaçadas visões dos personagens atingem um clímax imagético espantoso, inacreditável, com seus anjos apocalípticos transmutados de estátuas para um fragmento de magnetita, símbolo que serve como um tipo de unificador imagético. O último livro é mais uma novela, “The Slaves of Paradise”, de Colin Insole. A ficção de Insole se passa durante os anos de ocupação nazista da França, com essa estranha e ambígua mistura da vida cotidiana que seguia e as necessidades impostas pela colaboração e pela resistência. Esse universo, na trama, é o do cinema, que não poderia ser mais adequado para ilustrar as muitas ambiguidades da França sob ocupação nazista. A questão da traição involuntário e do logro deliberado – de uma perversidade acachapante – são os leitmotive da novela, com ressonâncias cinematográficas sutis: detectei referências aos filmes A sétima cruz (Seventh Cross, 1944) de Fred Zinnemann e O Boulevard do Crime (Les enfants du paradis, 1945) de Marcel Carné. Obra que não limita à homenagem de suas ricas fontes culturais e históricas, “The Slaves of Paradise” é outra gema preciosa dentro da vastidão de Infra-Noir. Infra-Noir segue a tradição hermética e sombria da fonte de seu título, a obra dos surrealistas romenos – em grande parte, conscientemente obscura ou perdida, uma vez que os membros dos círculos vanguardistas na Romênia utilizaram a obscuridade, a clandestinidade, mesmo o esquecimento como armas de resistência ao fascismo, nazismo e stalinismo. Foi uma estratégia arriscada, que parece também destinada ao ocaso em sua nova encarnação: um verdadeiro evento da literatura nessa segunda década do século XXI, a publicação das obras que estão congregadas em Infra-Noir, corre o risco de não passar das notas de rodapé de um ou outro veículo da mídia, voltada usualmente para a narração das pequenas e grandes catástrofes da Humanidade. Mas não é o que poderíamos esperar de algo tão monstruoso e tão magnificamente belo quanto um livro de areia? A vulgaridade, dentro dos muitos aspectos do humano, é aquele que sugere de fato a mortal platitude, a abismal superficialidade, algo que poderia dragar todo um universo para o nada. A relação com a vulgaridade é difícil, árdua, eventualmente épica – mas, em geral, consuma-se na celebração de repetições: de ideias, frases, momentos e formas em um perpétuo canibalismo que nem de longe sugere o homérico Eterno Retorno de Blanqui (ou de Nietzsche), embora essencialmente signifique que as coisas sempre voltam a ser elas mesmas e que essa é sua maldição mais tenebrosa. Mas nem sempre um desfecho assim pouco inspirador acontece: no extraordinário Satíricon, escrito poucas décadas após o nascimento de Cristo, temos a demonstração de como as conversas banais e a vulgaridade pavorosa do povão de Roma poderiam ser deliciosamente dissecadas e apresentadas ao leitor como um sangrento e suculento banquete. Com essa obra incrível de Petrônio, a inteligência e a esperteza tornaram-se elementos abertos para discussão e reflexão, enquanto a vulgaridade ganhou uma destruição tão sistemática que reemerge das cinzas, sem perder nada de sua essência, vingada e redimida. Séculos se passaram até o surgimento de obra crepuscular do mesmo naipe: Bouvard et Pécuchet, de Flaubert. O célebre criador da Bovary, em seu romance-testamento, criou esses dois idiotas que buscam um conhecimento enciclopédico e universal que os fizesse novos Leonardos Da Vinci ou Athanasius Kirchers, polígrafos contemporâneos com domínio em vastos campos do saber. Mas a idiotia de ambos, a surda e completa vulgaridade desses caracteres que se pretendiam talhados para grandeza do Olimpo, torna cada empresa mais espetacularmente frustrada que a anterior.
Essa mesma vulgaridade que torna falhado o intento de saída orna Bouvard e seu parceiro de uma aura trágica e patética: a grandeza que lhes escapa das mãos por conta de uma profunda idiotia os eleva acima de outros milhares de outros, igualmente imbecis e vulgares, que não ousam sequer fracassar tão estrepitosamente. São homens superiores, trágicos – personagens únicos que antecipam os patéticos de Samuel Beckett em um século. Após Flaubert, seria no século XX que outro escritor francês se arriscaria de forma tão completa e suicida no lodaçal do vulgar, cotidiano e comum (inclusive no campo da linguagem), obtendo resultados espantosos: trata-se de Raymond Queneau em seu Zazie dans le métro – na excelente tradução brasileira, Zazie no metrô. Queneau – ele mesmo, um grande admirador de Petrônio – inicia seu romance como uma espécie de jornada que nunca se cumpre: Zazie será frustrada em seu desejo, não conseguindo nada daquilo que ela mesma ou sua mãe gostariam que ela obtivesse em Paris com o tio Gabriel (diversão, conhecer o metrô). A trama é sacudida não apenas pela oralidade e pelo absurdo que a corta, pela deriva, com certa frequência, mas também pela instável identidade dos personagens, que trocam de sexo, de nome, de função social, de bandido para polícia, de polícia para tarado, de perseguidor para perseguido e vice-versa. Os lugares e as paisagens onde esses personagens transformistas realizam suas ações agonísticas, por outro lado, também parecem escorregar e variar, de modo que o Panthéon pode ser a Gare de Lyon, Invalides transforma-se na Caserne de Reuilly, e a “jóia gótica” que é Sainte-Chapelle vira o Tribunal de Commerce. Na repetição de fórmulas e sentenças – ou seja, de ideias – Queneau coloca a vulgaridade no jogo, pois a repetição sempre foi o atributo central do que é vulgar. O jogo aparenta ser velho, ainda mais se pensarmos em tanta literatura do século XX ou em um concorrente direto de Queneau, a turma de Alain Robbe-Grillet e do Nouveau Roman. Robbe-Grillet e seus apaniguados também apreciavam as repetições, as identidades falsas ou incertas, a instabilidade das paisagens, a relatividade fornecida pelo ponto de vista, a vulgaridade violenta. Mas o que diferencia ambos é que a prosa de Queneau é menos calculada e simétrica – amador dos “clássico”, sabia aproveitar a fluência da narrativa tradicional em uma síntese que não é mecânica e fria como aquela obtida pelos esforços de engenharia efetuados por Robbe-Grillet. Queneau aprecia a sátira e o experimento, mas é sábio ao utilizar todos os recursos disponíveis tendo sempre por norte a narrativa em si, inclusive (como bem percebeu Roland Barthes) uma espantosa unidade de tempo e espaço típica das tragédias. Zazie e seus amigos não são gélidas abstrações simbólicas indicadas por incógnitas matemáticas – usuais no Noveau Roman – mas personagens palpitantes, grotescos e vívidos, que se projetam qual seres vivos. As repetições, farsas e diálogos vazios desses seres quase fantásticos parecem romper a superfície estática do cotidiano, como se a vulgaridade ganhasse ares de mito. Talvez por isso a idade da protagonista seja uma constante incerteza: jovem demais, velha demais, mas nuca estável e inocente como as representações infanto-juvenis o exigem. Jorge Luis Borges decifrou Bouvard et Pécuchet ao mencionar como o tempo linear não afetava a dupla, que estaria idosa ou morta antes de alcançar a quantidade de conhecimentos correspondente à metade do romance. Não envelhecem porque o estofo de ambos é o mito. Assim, como Petrônio e Flaubert antes de Zazie, a vulgaridade em Queneau ultrapassa a armadilha da superfície e a repetição torna-se ritual, cômico e trágico, ao qual sentimos vontade de sempre retornar. A tradução brasileira, realizada por Paulo Werneck e editada pela Cosac & Naif, possui um projeto gráfico genialmente ardiloso. O projeto gráfico, inspirado nos cartazes de rua em estilo “lambe-lambe” dos anos 1950 (sempre em duas cores, vermelho e azul) transborda da capa para o interior do livro. Impresso em papel bíblia, as páginas são dobradas para ocultar uma imagem de um desses cartazes, reprodução de algum autêntico exemplar da época. Assim, durante a leitura, passeia-se do vermelho ao azul, enquanto vislumbra-se de leve uma imagem entre as páginas – um diálogo entre cor, forma e linguagem urbana completamente adequado tendo em vista a essência tão parisiense de Zazie dans le métro. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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