O livro de horas de Jeanne D’Evreux (foto retirada de medievalfragments). Toda uma nova mitologia poderia ser desenvolvida tendo por base os livros possíveis, aqueles que foram imaginados mas nunca escritos. Ou que se perderam para todo o sempre em uma dessas mudanças de trama da História, sempre cruel com a fragilidade da imaginação. Há um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que parece oferecer uma perspectiva terrivelmente sedutora para qualquer escritor. Trata-se de “El milagro secreto”, parte da seção “Artifícios” do livro Ficciones (1944), que fala de um poeta que, após rápida condenação por um tribunal nazista, encontra-se diante de um pelotão de fuzilamento. Ele trabalhava em uma peça de teatro particularmente difícil e seu desejo, possivelmente, seria terminá-la antes das balas de seus algozes destroçarem seu corpo. Era, evidentemente, uma esperança vã, mas alguma divindade ouviu o poeta e concedeu-lhe um ano, entre o momento do disparo e o impacto das balas, para que ele concluísse sua obra. Assim foi feito e logo que os últimos reparos foram finalizados, as balas se colocaram novamente em movimento. O poeta, protagonista do conto, não teve tempo ou possibilidade de realizar sua obra definitiva em um formato editorial cabível; apenas sua memória e a divindade que teve com ele alguma consideração conheceriam o conteúdo do que havia projetado em sua mente. Por isso, Borges, autor e narrador, oferece ao leitor não uma reprodução dessa obra insólita, inacessível e não registrado, mas seu insólito percurso. Nesse sentido, Mark Valentine nos oferece o mesmo em seu Wraiths – o percurso sinuoso, insólito e complexo de obras que nunca chegaram a tomar forma ou que se tornaram invisíveis.
O ensaísmo de Mark Valentine é vibrante, inovador e sugestivo. Um dos aspectos desses ensaios, sem dúvida, é a abordagem/recriação de obras perdidas, inacabadas, invisíveis. Em Wraiths, temos dois de seus ensaios focando essa forma específica de criação não existente, de possibilidade não concretizada mas que atiça a imaginação de um tipo muito específico de animal – o bibliófilo, o indivíduo que nutre essa fascinação obcecada, algumas vezes torturante, pelo livro, como objeto, forma, conceito. O primeiro ensaio é justamente “Wraiths” (algo como “espectros”) e trata dos livros de poesias que provavelmente foram produzidos na virada do século XIX para o XX na Inglaterra, mas que aparentemente não existem de fato. A época foi povoada por livros de poemas breves e preciosos, pequenas jóias da indústria editorial, mas nem todos tiveram essa materialização essencial, a forma definitiva do livro. Os livros de poemas imaginários descritos por Valentine são como miragens complicadas, cuja existência é atestada inclusive por testemunhos, mas que se desvaneceram e não deixaram vestígio. Valentine, nesse primeiro ensaio, utiliza esses testemunhos, essas evidências indiretas para tratar de tal corpus invisível; trata-se de uma metodologia inteligente, pois essas evocações indiretas trazem ao leitor algo da vida incomum desses criadores de obras primas desmaterializadas. Essa evocação fornece, por um paradoxo de representação, algo como um vislumbre de seus poemas perdidos. Pois, de fato, tais criações inexistentes vão ainda mais longe que esses sonetos esparsos e vaporosos que Mallarmé escreveu para impressão em leques. Esses autores de obras perdidas atingiram algo como a concretização de uma utopia da imaginação: a construção poética tão breve, suave, sofisticada, que se dilui em fragmentos ominosos ou felizes na própria existência do poeta e em sua época. O segundo ensaio, “What Became of Dr. Ludovicus”, trata da aventura de criação não realizada ainda mais intrincada: um romance perdido, que fora escrito a quatro mão por Ernst Dowson e Arthur Moore. Tratava-se de um “shocker”, que era a maneira como os vitorianos denominavam romances centrados em elementos bizarros, inquietantes e/ou sobrenaturais. O ensaio acompanha a produção do romance através de cartas trocadas entre os dois autores; o nível de detalhamento desse processo de produção, evocado por Valentine, é bem grande, incluindo detalhes como o uso de um caderno de notas compartilhado que ambos autores empregavam para escrever os capítulos. O leitor acompanha, assim, o desenvolvimento (algumas vezes problemático) de cada capítulo e o destino do material finalizado, rejeitado sistematicamente onde quer que os autores tentassem publicá-lo. Rejeição justa, tendo em vista a qualidade, ou uma miopia editorial, tão frequente, diante de um material interessante? Valentine coloca essa questão em aberto, ressaltando contudo – com sua alma de bibliófilo – como seria interessante se o livro tivesse existido, conhecer sua narrativa tendo em vista uma origem tão aparentemente rica e tumultuada. Essa, talvez, seja a essência mais evidente do livro, o elo de união entre os dois ensaios: o desejo pela existência de um livro, de certa forma, pode fazer com que o próprio o leitor (que já se converteu em pesquisador, investigando pistas de sua paixão aqui e ali), por uma sorte de magia evocatória, realize essa prestidigitação de um livro perdido que faz com que, do nada, surja alguma coisa. Como livro, Wraiths é um objeto delicado e precioso, de fato uma bela homenagem à arte editorial fin de siècle. Apenas título surge, dourado, na capa – uma fonte sinuosa parece marcar aqui ao mesmo tempo ousadia e contenção, único traço distintivo em um papel rugoso e cinza, como a textura pouco polida, mas rica em nuances de uma pedra. As duas ilustrações de Ronald Balfour, que abrem os ensaios, parecem evocar de forma decisiva e nada sobrecarregada, a época vitoriana. Curiosamente, o próprio livro de Mark Valentine, hoje é parcialmente invisível – a editora Zagava informa que a tiragem de 50 exemplares já se encontra esgotada. Embora os ensaios possam ser encontrados em outros livros (notadamente, na excelente coletânea de ensaios Haunted by Books da Tartarus Press) a preciosidade desse pequeno livreto, tão delgado que poderia desaparecer a qualquer instante, é insubstituível.
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A edição especial de Extinction, the Notation Script finalmente está pronta. Seu formato sanfonado e alongado, com sobrecapa especial, contendo ainda duas imagens bastante significativas (aos que conhecem o conto e o roteiro). Essa versão terá apenas dez exemplares (os subsequentes terão acabamento convencional e tamanho A5). Essas versões especiais ainda estão disponíveis neste link (também há a versão digital, em epub ou PDF).
(O martírio de Santa Catarina, de Albrecht Dürer) As rodas do suplício se romperam com a explosão & morte dos carrascos & o céu se crispou & trovejou uma chuva de pedras, contudo o fogo terrestre se afastou de Santa Catarina, ela cuja pescoço estava lacerado pelo ferro & ainda assim findava. Mas há algo mais sobre essa imagem, ou melhor, está mais completamente escrito em conformidade com o eterno pelo que foi entalhado na madeira. A roda está ao centro, um pouco excêntrica, como se se tratasse do centro de um leque, que é completa embora não circular. E há uma manivela para mover a roda & essa roda é dupla & as duas metades giram em sentido inverso, da mesma forma que se abre um leque. As chamas fluem dessa rotação como a água de um moinho & os fragmentos do solo da colina se precipitam na direção delas, que persistem, & as árvores na parte superior estão em outro plano, dispostas horizontalmente, empilhadas, descendo da seção à direita, sobre uma nuvem & alimentam o giro da roda. A chuva que cai do céu desaba sobre os dois lados de um triângulo isósceles no qual as extremidades são a base: a base preenchida torna-se curva (a forma do pluviômetro) & cria o braço direito do carrasco, as vestes erguidas & a espada à direita, outro lado é coberto pelo braço esquerdo, que leva ao ar igualmente as vestes de acordo com a ventilação das aletas e da roda como se fosse um catavento & as duas orelhas foram um pentágono no qual a pandorga se inverte & a forma do triângulo é visível também, uma significação de Deus, o Pai de fogo que surge entre as nuvens pesadas. Acima é possível ver a cidade, sustentada pela roda, na qual há uma colina que desce desde o céu & que alcança seu ponto inferior onde a terra se converte nos carrascos mortos & as folhas ao redor da roda & há três níveis na imagem, significando cada um dos três mundos. A sinuosa colina é harmoniosa com as dobras da vestimenta & a bela linha dos músculos das pernas dobradas, que são as pernas de Dürer. Essas vestimentas & essas pernas são a cauda & a vestimenta de um grande Santo Decapitado que preenche a imagem, com a distância das ancas aos ombros do carrasco, do umbigo aos olhos de Catarina, do comprimento inferior até a linha do horizonte dos limites da colina. O pescoço dividido da santa termina de acordo com as arestas agudas dos raios que partem do homem alongado, nos prolongamentos dos traços que se adensam de modo indefinido, que são menos estocada e mais gládio. A cabeça & o cabelo enrolam-se na cidade em declive & nas árvores. E na direção do moinho da roda, em rotação nova. Alfred Jarry (Perhinderion, n. 02, junho de 1896) Acima, apresentamos, como uma introdução aos novos livros da Raphus Press, a tradução de um breve comentário de Alfred Jarry para a expressiva, tumultuada e apocalíptica gravura de Dürer. A primeira edição da nova série da Raphus, centrada em traduções, terá um trabalho de Jarry para sua outra revista imagética, L'Ymagier, além de uma introdução com um retrato/exegese imaginária.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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