"A estrela do Oriente clama, com centenas de lâminas Queimem as cidades Queimem as cidades" ("Queimem as cidades", Nathanael West) Foto: Dan Ghetu. Foi na faculdade, quando eu fazia o curso de linguística na Universidade de São Paulo – foi nesse momento que adquiri o gosto por percorrer os corredores mais obscuros das bibliotecas. Não tinha consciência exata daquilo que buscava – mas o fazia, furiosamente. Inclusive ao consultar as exóticas teorias urbanísticas, as reflexões sobre a cidade nas mais delirantes possibilidades, publicadas pela editora espanhola Gustavo Gili. Ao mesmo tempo, desbravava a metrópole gigantesca, São Paulo – novamente, buscava algo que eu mesmo não sabia bem o que era. Talvez fosse algo novo, único; o hermético; o vertiginoso; aquilo que, mesmo estando à vista de todos, não é percebido em toda sua magnitude. Talvez fosse algo que eu jamais poderia encontrar de forma direta e simples, como um item em uma prateleira, um ponto fixo em um mapa. Creio que minha busca se centrava em algo mágico – uma chave, uma cifra, um código, qualquer elemento que desfizesse a tessitura do mundo, que possibilitasse ao espaço-tempo um salto destrutivo, definitivo. Forrest Aguirre, em seu soberbo trabalho de título The Varvaros Ascension, oferece, de fato, não uma mas duas dessas estranhas chaves para desfazer/refazer o mundo – a Cidade e a Ancestralidade.
Mas antes de descrevermos essas estranhas oferendas ao leitor (afinal, não é sempre que testemunhamos o desdobrar de dois enigmas sangrentos, sacrificiais, em uma única narrativa interpolada), é preciso uma apresentação um pouco mais formal do livro e de sua trama. Talvez até mesmo algo acadêmica – pois isso não seria injusto com o autor, seu plot e seu texto. De fato, o mundo das universidades, das teses, das bolsas, do mestrado, do doutorado, do pós-doutorado, dos professores que são pesquisadores, dos rituais de pesquisa, das aulas, da graduação – todo o estranho mandarinato universitário faz parte da intrincada narrativa de The Varvaros Ascension. Mas tal envolvimento está longe de tornar a trama intragável ou tediosa como tais ambientes universitários, muitas vezes, são; a trama de Aguirre é ágil, veloz, bem-humorada e extremamente inventiva, algo que veríamos nas séries de televisão se seus showrunners fossem figuras como Fritz Lang, Raoul Ruiz ou Hiroshi Teshigahara. Ou Nigel Kneale, que um dia, em alguma dimensão do continuum temporal, trabalhou na televisão. A novela de Aguirre é ardilosa por se desdobrar em um duplo, em uma potencialidade que ultrapassa a apresentação inicial de um título (The Varvaros Ascension) em prol de dois outros subtítulos ("The Arch: Conjecture of the Cities" e "The Ivory Tower"). Dessa primeira bifurcação, temos inclusive um nome confundido como título de livro diegético – mas que poderia ser um livro perfeitamente real, em alguma obscura bibliografia acadêmica. De fato, nem mesmo de um livro se trata de fato; e a obra de Aguirre, em verdade, seguindo essa estranha mistificação, amplia-se em vários outros livros, que se abrem aos olhos do leitor graças à capacidade visionária do autor. Há inscrições, sinais e modos de leitura na cidade (Madison) que cerca os personagens, na universidade, nos frisos que ornam um dos edifícios descritos, na disposição dos mendigos em uma vizinhança, nos ossos – ancestrais e novos. Todos esses livros, escritos em diversas linguagens, tornam-se instigantes pela visão de seu autor, que consegue destilar dos áridos ambientes urbanos nas vizinhanças das universidades um denso e perturbador caldo cultural. É como se Arthur Machen tivesse frequentado a universidade, tendo como orientador de suas pesquisas (na Universidade de Columbia) Herbert Marcuse. Como usual, a edição de The Varvaros Ascension, realizada pela Mount Abraxas, é espetacular. A capa, com ilustração de Valin Matheis, alude a imagens ancestrais primevas, rupestres e, ao mesmo tempo, ao anjo caído (mas em representação invertida) de Très Riches Heures du Duc de Berry, dos irmãos Limbourg. As imagens internas, de desolação urbana, seguem perfeitamente o imaginário das narrativas de Aguirre. O acabamento, de qualidade impecável (como usual nos livros da Mount Abraxas) e o formato pouco usual transformam esse livro em insólito objeto de culto – o estranho artefato a ser usado em uma cerimônia. E adentramos o potencial apocalíptico do livro, duplicado pela narrativa. Os protagonistas das duas tramas paralelas – que se encontram, literalmente, no infinito – são os desbravadores de uma outra realidade, materializada em um tipo específico de narrativa que, nossos protagonistas logo descobrem, tornam as convenções usualmente aceitas absurdas. Que narrativa seria essa? Ora, aquela que ocorre neste livro único, The Varvaros Ascension. E diante da deliciosa armadilha desse loop, buscamos a repetição: pois leremos este livro novamente, muitas vezes, e sempre nos parecerá intrincado e alucinado. Pois esta ascensão nos transforma em peregrinos em progressão infinita, na busca de novos sinais para outros – muitos, infindáveis – apocalipses.
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Foto de Alcebiades Diniz Miguel. Foto de Dan Ghetu. As sutilezas da mente que se desintegra – daquela mente usual, que percebemos em nosso cotidiano, quando desloca-se de seu compasso usual em novas e inesperadas direções – são um tema recorrente na literatura. Essa jornada íntima, tenebrosa, está na base de boa parte da ficção de Edgar Allan Poe, por exemplo, com seus personagens que deliberadamente destroçavam suas próprias vidas, impulsionados por um sentimento vago de horror à normalidade que o autor denominava perversidade. Busca-se, em boa parte da ficção feita após Poe e que trilha esses passos incertos, algum tipo de penetração psicológica, de mergulho exploratório na consciência doentia; até mesmo Dostoiévski optou por essa direção. Mas existe outro caminho – o deslumbramento diante da desintegração. Há, portanto, obras que optam por contemplar os processos complexos da mente à beira da extinção para obter certo grau de êxtase – o mergulho investigativo torna-se rumor poético, sagrado. Foi assim com Lautréamont, com os surrealistas, com Alain Robbe-Grillet e é, da mesma forma, com esse espetacular ficcionista que é Jonathan Wood.
Evidentemente, Jonathan está longe de ser um neófito no que tange à criação ficcional. É poeta, contista, romancista e editor com vasta produção de qualidade sempre soberba. É um verdadeiro artesão da narrativa breve. Uma de suas melhores novelettes, The New Fate (2013) já trabalhava os temas da divisão e da ruptura da mente em um contexto vertiginoso, de catástrofe e de enlevo, que deixa o leitor com lágrimas nos olhos ao final do livro; lágrimas de tristeza e de júbilo. De certa forma, essas duas novelletes, The Deepest Furrow e The Delicate Shoreline Beckons Us, editadas no mesmo ano de 2019 revisitam sua obra-prima anterior, mas com uma articulação diferente e bastante rica, uma opção mais clara por molduras narrativas que possam sublinhar os elementos densos que se agitam no interior da trama. Já vi críticas a Jonathan relatando como suas obras são um pouco abstratas, o que geram certa dificuldade de conexão com os personagens. Nas duas narrativas de 2019, com toda certeza, essa conexão é imediata, e isso sem a perda da abstração reflexiva. Ambas narrativas parecem atingir diferentes pontos temáticos e estilísticos, a partir de uma percepção filosófica, de um insight poético mais ou menos comum a ambas. Em outras palavras: trabalham aspectos (terríveis e pavorosos, sem dúvida, mas também cíclicos, ritualísticos) da mente humana, mas de uma perspectiva casuística translúcida ao leitor. No caso de The Deepest Furrow, a moldura é daquilo que se convencionou chamar "folk horror"; mas a abordagem filosófica de Wood é tão densa que ultrapassa o mero conflito entre citadino e rural, cristão e pagão, civilizado e bárbaro (tão usual nessas tramas) para uma visão niilista que abarca todas as perspectivas humanas em uma mesma espiral constante de opressão e extinção. Já em The Delicate Shoreline Beckons Us, temos uma narrativa quase policial a partir da perspectiva do criminosos, um "caper" como especificado na introdução de Mark Valentine; mas novamente o cinismo do protagonista não facilita em nada algum tipo de redenção heróica. Como é possível perceber, a potência da trama de Jonathan ultrapassa os limites e as fronteiras estabelecidas pelas molduras narrativas que ele emprega para suas pinturas de desespero e morte – mas também de êxtase e transfiguração. Os dois livros são, igualmente, expressões de belezas diferentes – há uma abstração singela em The Delicate Shoreline Beckons Us, editado pela Zagava (minha edição é a paperback, mais barata, mas há no site da editora opções muito mais luxuosas), com a imagem fotográfica mas indefinida em sua capa, sugerindo o fluxo das águas do mar; há uma fúria barroca em The Deepest Furrow, expressa notadamente na capa espetacular de, incrivelmente intrincada como a própria novellete de Jonathan. Essa oposição segue normalmente em ambas e cria um contraste espetacular. Talvez seja necessário, contudo, destacar o aspecto cinematográfico das edições da Mount Abraxas, ricas em um colorido que é sugerido pelo próprio papel em que o livro é impresso. Mas esse é um outro patamar de significação. É interessante comparar as duas narrativas breves de Jonathan com filmes recentes que trilharam caminhos específicos semelhantes, mas sem a mesma riqueza (embora, sem dúvida, sejam bons filmes). Midsommar, o Mal Não Espera a Noite (2019) de Ari Aster pode ser comparado com The Deepest Furrow e A Casa que Jack Construiu (2018) de Lars Von Trier, com The Delicate Shoreline Beckons Us. Mas os filmes ainda são enquadrados pelos clichês de seus gêneros, pelos dispositivos empregados em sua confecção; já as novelettes de Jonathan fluem pelo selvagem território entre a visão e o pensamento. A riqueza trancendente das histórias de Jonathan talvez um dia chegue ao cinema; mas talvez o melhor mesmo seja desfrutar delas na amplitude infinita das páginas impressas desses dois livros soberbos. The Idolatry of King Solomon, Salomon Koninck, 1644. "Então com incerta luz no olhar Por algum tempo estive a oferecer E preservar em recordações vacilantes O doce amargo dos dias que se foram." (The House of Wolflings, William Morris) Talvez uma das figuras mais recorrentes nas produções narrativas humanas seja o rei, a figura coroada; ele surge com frequência nas lendas, nos contos de fada, nos mitos, nas sagas, nas crônicas, nos romances e nos poemas dos mais variados tipos, até mesmo nas representações mais populares da literatura e do cinema contemporâneos. Por vezes, essa figura real se manifesta como soberano; em outras, como guerreiro; também pode ser representado como um Deus ou como uma apagada figura em segundo plano. Há dignidade em sua presença, por vezes esperança (como nas noções de retorno, acalentadas nas fantasias arturianas e do sebastianismo português), mas também melancolia e uma vaga ressonância do poderio e da riqueza que esses seres dispõem no plano da realidade. Mas por vezes há loucura, e horror, e tirania, e morte, como nas tragédias shakespereanas, nos filmes sobre a solidão do poder – afinal, os líderes políticos de regimes totalitários adquiriram mimeticamente algo da chama maldita das cabeças coroadas – de Alexander Sokurov, Moloch (1999), Taurus (2001) e O Sol (2005). Mas, apesar de toda essa variedade, a maneira como essa ideia de rei ressurge na vigorosa e dinâmica novela de Ben Tweddell, A Crown of Dusk And Sorrow soa incrivelmente nova, publicação extraordinariamente bela (mais sobre isso adiante) a cargo da Mount Abraxas de Bucareste. A novela de Tweddell, animada pela ferocidade régia que está em sua essência, parece abarcar uma amplitude de ideias e conceitos possíveis com uma profundidade ao mesmo tempo minimalista e complexa, demonstrando um domínio extremo na arte da novela, que é a arte da síntese. Ambientada em uma época terrível, de promessas e de desgraça – os anos 1930 –, nessa estranha área rural inglesa que fazia a delícia de Arthur Machen, acompanhamos as descobertas de Daniel Turner em torno de um livro em sua biblioteca, uma preciosidade estudada com um "amigo" que surge repentinamente, Jacob Bartholomew. Buscam trechos reveladores a respeito de uma estranha figura mística do século XVIII. Mas essa busca logo salta dos livros para as trilhas nas florestas mais sombrias imagináveis. Neste ponto, a trama, que fornece essa contemplação visionária e poética do império da natureza – aos moldes de Machen e Blackwood – ganha diversas reviravoltas, além de sinuosas transformações. Há investigações bibliográficas e sonhos premonitórios, festas sociais abaladas por presenças sombrias e o vislumbre de sombras espantosas, veneráveis. A coroa do título surge nesses vislumbres, mas a trama jamais perde sua intensidade, a força de seu aperto. Ben Tweddell é um autor que, desde seu primeiro romance pela Mount Abraxas, The Dance of Abraxas, demonstra um domínio dos temas relacionados à perseguição/fuga (que se tornam papéis eventualmente intercambiáveis) e acomodamento/transformação (processos que ocorrem por interações visionárias e transfigurações de tirar o fôlego). Assim, essa aproximação com a temática régia é atravessada por uma fantasmagoria de perseguição, quase uma revisão do mito da "caça selvagem" em novos termos transcendentes – a solidão do poder torna-se palpável, e a ruína bem mais efetiva do que seria qualquer metáfora. Pois trata-se de um autor que cultiva uma literatura tão soturna quanto extática, tão brutal quanto transcendente. A edição da Mount Abraxas, "Isolationnist Publisher" de Bucareste, é um primor em mais de um sentido. O fluxo do texto na página, ao seguir a velha máxima de William Morris (que no livro legível o balanço entre o espaço da margem e a área de texto devia ser o mais perfeito possível) cria um efeito que só podemos denominar cinematográfico, e que já detectamos e destacamos em outros livros da mesma editora. É amais perfeita demonstração das diferenças entre livro digital e livro impresso, e da superioridade deste último. Por outro lado, as pinturas de John Caple, na capa e no interior do livro, são espetaculares, traduzindo com particular intensidade o entendimento de que a iluminação, de qualquer tipo, resulta não apenas m uma descoberta essencial, mas na morte de uma parte humana no indivíduo, gerando um gradativo afastamento em relação à sociedade dos vivos, em busca dos infindáveis domínios da Natureza. Suas imagens são carregadas de um simbolismo esotérico não distante daquele de De Chirico – figuras hieráticas, isoladas, contemplando a escura desolação da natureza ao seu redor que se expande por meio de estruturas tentaculares vagamente semelhantes a galhos e ramos. Mount Abraxas é uma editora conhecida pela pequena tiragem de seus livros incríveis. Este terá o mesmo destino e poderá transformar-se em algo como o fragmento de pesadelo da mente humana. Não se faça de rogado caso, nas décadas futuras, encontre algum exemplar desta preciosidade em um pequeno sebo, perdido no interior de alguma cidade desconhecida... Fotos de Dan Ghetu.
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