The Idolatry of King Solomon, Salomon Koninck, 1644. "Então com incerta luz no olhar Por algum tempo estive a oferecer E preservar em recordações vacilantes O doce amargo dos dias que se foram." (The House of Wolflings, William Morris) Talvez uma das figuras mais recorrentes nas produções narrativas humanas seja o rei, a figura coroada; ele surge com frequência nas lendas, nos contos de fada, nos mitos, nas sagas, nas crônicas, nos romances e nos poemas dos mais variados tipos, até mesmo nas representações mais populares da literatura e do cinema contemporâneos. Por vezes, essa figura real se manifesta como soberano; em outras, como guerreiro; também pode ser representado como um Deus ou como uma apagada figura em segundo plano. Há dignidade em sua presença, por vezes esperança (como nas noções de retorno, acalentadas nas fantasias arturianas e do sebastianismo português), mas também melancolia e uma vaga ressonância do poderio e da riqueza que esses seres dispõem no plano da realidade. Mas por vezes há loucura, e horror, e tirania, e morte, como nas tragédias shakespereanas, nos filmes sobre a solidão do poder – afinal, os líderes políticos de regimes totalitários adquiriram mimeticamente algo da chama maldita das cabeças coroadas – de Alexander Sokurov, Moloch (1999), Taurus (2001) e O Sol (2005). Mas, apesar de toda essa variedade, a maneira como essa ideia de rei ressurge na vigorosa e dinâmica novela de Ben Tweddell, A Crown of Dusk And Sorrow soa incrivelmente nova, publicação extraordinariamente bela (mais sobre isso adiante) a cargo da Mount Abraxas de Bucareste. A novela de Tweddell, animada pela ferocidade régia que está em sua essência, parece abarcar uma amplitude de ideias e conceitos possíveis com uma profundidade ao mesmo tempo minimalista e complexa, demonstrando um domínio extremo na arte da novela, que é a arte da síntese. Ambientada em uma época terrível, de promessas e de desgraça – os anos 1930 –, nessa estranha área rural inglesa que fazia a delícia de Arthur Machen, acompanhamos as descobertas de Daniel Turner em torno de um livro em sua biblioteca, uma preciosidade estudada com um "amigo" que surge repentinamente, Jacob Bartholomew. Buscam trechos reveladores a respeito de uma estranha figura mística do século XVIII. Mas essa busca logo salta dos livros para as trilhas nas florestas mais sombrias imagináveis. Neste ponto, a trama, que fornece essa contemplação visionária e poética do império da natureza – aos moldes de Machen e Blackwood – ganha diversas reviravoltas, além de sinuosas transformações. Há investigações bibliográficas e sonhos premonitórios, festas sociais abaladas por presenças sombrias e o vislumbre de sombras espantosas, veneráveis. A coroa do título surge nesses vislumbres, mas a trama jamais perde sua intensidade, a força de seu aperto. Ben Tweddell é um autor que, desde seu primeiro romance pela Mount Abraxas, The Dance of Abraxas, demonstra um domínio dos temas relacionados à perseguição/fuga (que se tornam papéis eventualmente intercambiáveis) e acomodamento/transformação (processos que ocorrem por interações visionárias e transfigurações de tirar o fôlego). Assim, essa aproximação com a temática régia é atravessada por uma fantasmagoria de perseguição, quase uma revisão do mito da "caça selvagem" em novos termos transcendentes – a solidão do poder torna-se palpável, e a ruína bem mais efetiva do que seria qualquer metáfora. Pois trata-se de um autor que cultiva uma literatura tão soturna quanto extática, tão brutal quanto transcendente. A edição da Mount Abraxas, "Isolationnist Publisher" de Bucareste, é um primor em mais de um sentido. O fluxo do texto na página, ao seguir a velha máxima de William Morris (que no livro legível o balanço entre o espaço da margem e a área de texto devia ser o mais perfeito possível) cria um efeito que só podemos denominar cinematográfico, e que já detectamos e destacamos em outros livros da mesma editora. É amais perfeita demonstração das diferenças entre livro digital e livro impresso, e da superioridade deste último. Por outro lado, as pinturas de John Caple, na capa e no interior do livro, são espetaculares, traduzindo com particular intensidade o entendimento de que a iluminação, de qualquer tipo, resulta não apenas m uma descoberta essencial, mas na morte de uma parte humana no indivíduo, gerando um gradativo afastamento em relação à sociedade dos vivos, em busca dos infindáveis domínios da Natureza. Suas imagens são carregadas de um simbolismo esotérico não distante daquele de De Chirico – figuras hieráticas, isoladas, contemplando a escura desolação da natureza ao seu redor que se expande por meio de estruturas tentaculares vagamente semelhantes a galhos e ramos. Mount Abraxas é uma editora conhecida pela pequena tiragem de seus livros incríveis. Este terá o mesmo destino e poderá transformar-se em algo como o fragmento de pesadelo da mente humana. Não se faça de rogado caso, nas décadas futuras, encontre algum exemplar desta preciosidade em um pequeno sebo, perdido no interior de alguma cidade desconhecida... Fotos de Dan Ghetu.
0 Comments
Leave a Reply. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
Categories
All
|