Foi em 2013 que a ideia do blog Bibliofagia (e de seu irmão, Bibliophage) surgiu. À época, eu estudava a ficção de J. G. Ballard pois trabalhava na tradução de The Atrocity Exhibition para o português. No meio desse percurso, percebi como a ficção fantástica e especulativa adotou, desde seus primórdios, a forma do livro, a arte de cada detalhe de um volume, como veículo de expressão para o sentido de ambiguidade e instabilidade do universo que nos cerca, uma meta usual nessa forma de ficção. O desenvolvimento dessas ideias levou à configuração do blog e ao contato com criadores de ficção fantástica em atividade, editores, autores, ilustradores. O projeto sobre Ballard já foi encerrado, outros vieram desde então, mas o blog se manteve como uma atividade extremamente prazeirosa e útil para meus estudos. Assim, por que não compartilhar o prazer que me traz a leitura e a análise desses livros?
Mas, infelizmente, está difícil manter o site vivo: há prolongados hiatos nas postagens pois cada detalhe do blog é sistematicamente pensado – escolha do livro, leitura, análise do material, elaboração do texto, captura das imagens, etc. Assim, tendo em vista a manutenção do projeto e mesmo a possibilidade de ampliar a quantidade e a qualidade dos ensaios publicados (penso, inclusive, em realizar ensaios em vídeo e entrevistas gravadas em áudio para o futuro) é que peço aos leitores, que apreciam e compreendem as duas necessidades deste trabalho (não remunerado, mas apaixonado, como a construção de barricadas segundo Charles Fourier) que colaborem com meu projeto através do Patreon. Agradeço antecipadamente a atenção e o apoio de todos.
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Se existe uma palavra que pudesse sumarizar a produção literária, o trabalho editorial e a ideia mesma do simbolismo no Brasil, tal palavra seria: temerário. Entrincheirados em revistas de baixa circulação e breve existência (embora espetaculares do ponto de vista tipográfico e artístico) e em livros de tiragens pequenas, objetos hoje raros e preciosos, posteriormente atacados e impiedosamente ridicularizados por gerações e gerações de grupos/autores modernistas que cultuavam formas mais ou menos ingênuas de épater la bourgeoisie. Tudo isso somado, temos um conjunto de estratégias que nitidamente estavam longe de um grau mínimo de eficácia, o que em termos literários implica em reconhecimento dentro de um cânone qualquer e a viabilidade editorial na forma de reedições, coletâneas, estudos críticos. O desligamento em relação a qualquer cânone estabelecido leva a alguns resultados imediatos, como o esquecimento, a caricatura esquemática, a percepção equivocada de irrelevância – marcas na leitura contemporânea da literatura simbolista produzida entre o final do século XIX e o início do século XX. Por outro lado, essas marcas que parecem exilar o simbolismo no olvido e na irrelevância possibilitaram um estranho desdobramento, um efeito colateral: a possibilidade de redescoberta de obras aparentemente perdidas. Aos que se aventuram pelos meandros dos sebos, das obras de referência como o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro de Andrade Muricy, dos corredores das bibliotecas e, nos dias de hoje, dos arquivos digitalizados de hemerotecas e centros de referência documental, o prêmio é a descoberta de obras únicas e não destituídas de inovação, cujo inegável frescor de originalidade, esse élan vital, talvez tenha sido preservado pelo tempo em que permaneceram ignoradas.
Essa sensação de que estamos diante de algo realmente inovador, a despeito de ter sido produzido no início do século XX, é exatamente o que sentimos quando nos deparamos com a poesia de Marcelo (ou Marcello) Gama, pseudônimo de Possidônio Cezimbra Machado. Nascido no Rio Grande do Sul em 1878, mas frequentador assíduo da boemia notívaga do Rio de Janeiro, Marcelo Gama (que adotou o pseudônimo como uma espécie de “denominação poética”, de nova identidade) teria breve mas ativa participação na vida cultural à época, dentro das já mencionadas estratégias culturais do simbolismo: publicou livros e textos em periódicos diversos, trabalhou na edição de revistas. Morreu em 1915 de forma prematura, brutal, premonitória: viajava de bonde quando um movimento brusco do veículo o projetou do alto do viaduto do Engenho Novo, uma queda de vinte metros de altura. A mecanização da vida cotidiana, denunciada em seus poemas, reagia vitimando o poeta que, ao menos, pode lançar o longo poema Noite de Insônia (ou “Insomnia”, na grafia original), contribuição originalíssima ao multifacetado painel da poesia brasileira do século XX. Noite de Insônia foi originalmente publicado em 1907, em Porto Alegre, pela oficina gráfica da Livraria Americana e, pela descrição que nos é oferecida por Vera Lins, a rara edição original do livro era dotada de uma extraordinária beleza artesanal: a capa, com a pequena mas significativa vinheta de uma cabeça de mulher com rosas nos cabelos circundada por espinhos, apresentava o título do poema em letras azuis, repetido a cada topo de página do miolo em letras vermelhas. O delicado trabalho editorial também se revela, de forma mais conceitual, no uso do espaço vazio da página para a disposição correta do poema, o que ocasiona efeitos ainda mais singulares, de extração mallarmeana, para as imagens ferozes construídas por Marcelo Gama. Pois o poema, apesar de trabalhar – o que é apontado já no título – com o que parece ser um tema “lugar-comum”, as dores solitárias do poeta, transcende qualquer restrição temática. Como aponta tanto Vera Lins quanto Camilo Prado, Noite de Insônia é um poema que beira a impossibilidade de classificação: há nele elementos narrativos que o aproximariam de um conto, equilibrados por certa intimidade escancarada pelo poeta que vemos nas confissões íntimas; ao anarquismo do poema, expresso em certos momentos pela menção direta de autores (Reclus, Hamon, Vandevelde, Nietzsche), somam-se imagens únicas e apocalípticas, nas quais corvos ferozes devoram o poeta vivo, enquanto demônios e uma “possessa turba” se entretem em sabá tenebroso. Essas imagens, de fato, tornam-se o elemento mais celebrado do poema – caveiras, corvos, demônios, paisagens transfiguradas pela agonia do poeta, tantas possibilidades de horror atravessam a mente do transtornado insone em sínteses expressionistas, como quando transforma as recordações em lesmas que rastejam pela superfície da mente, trazendo apenas certos fragmentos de reconhecimento, vagas possibilidades de trégua: "Num lento deslizar de babujentas lesmas, passam recordações: – Aquele beijo… Idílios... Um rancor que me faz franzir os supercílios... Das brumas do passado isso tudo ressumbra em farrapos de luz, tons velados, penumbra" Mas o poema não se esgota nessas imagens furiosas, pois há elementos de elaboração poética complexos, detalhados. Os espaços vazios dotam as reviravoltas da mente do poeta, acossada pela tortura da insônia, de um certo grau de suspense, como na descrição de imagens atrozes que se revelam um pesadelo, pois mesmo o breve período de descanso do insone é cumulado de torturas e sobressaltos. O despertar do pesadelo, nesse sentido, está longe de representar algum alívio – transtornado pela impossibilidade de dormir, o insone caminha até a janela do quarto, percebendo que despertara do horror onírico apenas para enfrentar o horror cotidiano. Ao final, um toque de metalinguagem, pois no poeta conclui sua ronda noturna com a promessa de “contar em verso esta noite de insônia”, gesto que parece abortado por uma fortuita “desgraça” final: “E zás! derramo a tinta. Uma desgraça! Horror! E para que desminta o azar, e em meu destino o agoiro não influa, corro à janela e atiro um jarro d’água à rua.” Esgotadas desde antes dos anos 1920, poemas como Noite de Insônia seriam invisíveis se não fosse o trabalho sério e consistente de estudiosos e editores (que se transformam em editores estudiosos) que recuperaram obras de autores como Marcelo Gama em um redimensionamento através de ensaios, estudos críticos e novas edições. É o caso das duas edições de Noite de Insônia que tenho diante de meus olhos. A primeira, lançada em 1995 pela Sette Letras do Rio de Janeiro, com estudo introdutório de Vera Lins, é uma bela versão atualizada da edição original de 1907, seguindo cuidadosamente várias das inovadoras idiossincrasias da edição original, a começar da belíssima capa. Mas se o livro da Sette Letras é inteiramente dedicado a Noite de Insônia, a edição lançada em 2011 pela Edições Nephelibata, de Santa Catarina, apresenta uma outra proposta, pois trata-se de uma coletânea que inclui outros poemas de Marcelo Gama, além da peça Avatar. Embora a seção dedicada à Noite de Insônia siga a formatação da editio princeps de 1907, o livro preparado pelo editor/pesquisador/escritor Camilo Prado traz algumas inovações consoantes ao tema/atmosfera da obra de Marcelo Gama, como as ilustrações expressionistas de Aline Daka. É necessário destacar que Noite de Insomnia (com a grafia original) da Edições Nephelibata faz parte da coleção Arquivo Decadente, recuperação preciosa levada a efeito pelo editor Camilo Prado dos vertiginosos e esquecidos mananciais da produção simbolista/decadente no Brasil. Assim Noite de Insônia está bem representado por duas edições únicas que respeitam o leitor e o poeta, e que preservam a aura do livro maldito, raro, único – objeto que a “razão do logaritmo”, como dizia Marcelo Gama, tenta a todo custo mas sem sucesso converter e/ou destruir. Resenha produzida graças ao apoio da Fundação Biblioteca Nacional, através de seu programa de pesquisa PNAP-R. Richard P. Martin em sua apresentação da Odisséia de Homero na tradução de Edward McCrorie (e que aparece como introdução da excelente edição do poema homérico lançada pela Cosac Naify) menciona como certa variação nos manuscritos remanescentes do poema épico grego abre a possibilidade de uma outra versão da Odisséia. Pois Atena, no primeiro canto, deixa clara sua intenção de inspirar o jovem Telêmaco, filho do Odisseu, a buscar informações do paradeiro do pai entre os reis e chefes militares gregos que já haviam retornado de Tróia. Os pontos cardeais dessa busca, a “telemaquia”, são bem conhecidos: Esparta e Pilos, cujos reis que deram depoimentos eram, respectivamente, Menelau e Nestor. Ocorre que alguns manuscritos remanescentes informam que Atena instruiria Telêmaco a visitar ao menos mais uma cidade, Creta, regida por Idomeneu. Martin, então, especula se não haveria uma versão mais longa da Odisséia, que se perdeu no limbo da História em algum obscuro processo de revisão textual provocado ou não por oscilação tenebrosa na qual uma porção – impossível determinar se considerável ou irrelevante – do poema desapareceu, provavelmente para sempre. É bem verdade que essa perda sobrevive em margens, em interstícios mais ou menos perceptíveis, em vestígios evocados pelo rigor arqueológico. Mas, como Martin afirma, existe sempre algo como “uma provocação” de que esse texto perdido ressurja, de alguma forma, em algum lugar, que essa parte seccionada e desconhecida nos revele algo da Odisséia, nos permita perceber o poema homérico de uma maneira nova. O texto perdido atiça nossa curiosidade e abre uma brecha na percepção estável que temos da Literatura, da História, do Conhecimento, do Universo. O livro perdido, ignorado, aniquilado – em uma palavra, possível – parece conter, ao menos para seu leitor potencial, uma parcela da revelação divina.
Curiosamente a mesma sensação extasiante diante da descoberta de uma obra de arte perdida, de uma narrativa truncada por espaços em branco, é frequente nas pesquisas e restaurações realizadas por historiadores do cinema. Talvez a proximidade narrativa com a literatura, a necessidade de reconstrução de uma história completa, torne os esforços de restauro cinematográfico dramáticos. Cópias raras de filmes quase extintos são encontradas em porões, trens militares abandonados e outros locais ainda mais improváveis. Matrizes tão desgastadas que exigem novos procedimentos, tecnologias e abordagens de um material fragilíssimo e, em alguns casos, inflamável. Um filme como Metropolis (idem, 1926) de Fritz Lang, por exemplo, apresenta uma história tão longa e complexa de restaurações, descobertas e recuperações desde seu lançamento até os dias de hoje (pois uma versão ainda mais completa do filme de Lang foi encontrada no ano de 2008 em Buenos Aires) que transforma-se em uma espécie de lenda contemporânea e a busca dos pedaços desse filme espalhados pelo mundo para que possam constituir uma totalidade possível, a moderna busca pelo Santo Graal. Outros filmes, que sobreviveram na forma de sequências de fotogramas como O Prado de Bejin (Bezhin lug, 1935) de Sergei Eisenstein excitam a imaginação do espectador da mesma forma como os registros de uma “telemaquia” mais longa excitam leitores de Homero: imaginamos o que seria possível a partir daquele fragmento de arquivo sobrevivente, excitamos nosso imaginário para as consequências de uma tal descoberta impossível. Um sentido de busca por uma utópica descoberta, pelo restabelecimento definitivo de um fragmento do passado – ou, ao menos, pela evocação daquilo que foi perdido – move os exploradores de arquivos que buscam recuperar, arrancar dos destroços de sucessivas tormentas históricas documentos de inegável beleza. Nesse processo, se deparam com alusões tão obscuras e esotéricas, evidências tão desconexas e difíceis de precisar que aparentemente abandonaram o terreno da pesquisa histórica e mergulharam nos fragmentos de algum sonho (ou pesadelo) coletivo da humanidade, materializado em uma obra artística. Poderíamos denominar os resultados das infindáveis investigações – para sempre incompletas pois a completude de pesquisas que possuam tal magnitude seria a recuperação completa e absoluta do passado – de tais exploradores ficções de arquivo. A ficção, aqui, não é apenas uma extrapolação de dada realidade histórica por meios narrativos e miméticos. Para autores como Jorge Luis Borges, por exemplo, ficcionalizar é construir um universo coerente, autoexplicativo e ordenado por leis peculiares complexas, que podem ser compartilhadas com a realidade por assim dizer “corrente”. Assim, no Manual de zoología fantástica, Borges tece uma interessante reflexão a respeito de como trabalhamos os dados da realidade ao questionar como a visão de animais selvagens no zoológico não provoca em um espectador infantil absoluto terror mas, antes, admiração e até mesmo terno carinho, de modo que o passeio ao zoológico costuma figurar entre as diversões da infância. Borges nos oferece então sucessivas explicações imaginativas para a situação por ele descrita, todas eventualmente válidas ou falsas, vinculadas ao senso comum ou a grandes tradições do pensamento filosófico como a de Platão ou Schopenhauer. A ficção, nesse sentido, ganha o curioso estatuto de uma possibilidade interpretativa funcional dos dados factuais, captados por nossos sentidos e/ou por nossa consciência e que, brutos, nada significariam sem nossa atividade interpretativa. O pesquisador cujo trabalho se relaciona com o que aqui definimos como ficção de arquivo, portanto, trabalha nas margens e nos limites entre realidade, registro histórico, memória e ficção, especialmente quando precisa descrever ou reconstruir elementos de obras perdidas, como biografias, trajetórias, possíveis destinos. Da mesma forma, o ficcionista de arquivo precisa ultrapassar os limites usuais e demarcados dos discursos literários: o ensaio especulativo atravessa as fronteiras da narrativa, a rememoração se aproxima da reflexão histórica, a descrição torna-se, sem aviso, uma projeção poética. Uma história arqueológica da ficção de arquivo é tarefa que ainda necessita ser realizada, mas podemos afirmar que um de seus patronos é o já citado Jorge Luis Borges. As criações de Borges colocavam instâncias do discurso literário em conflito, deslocava-as para o campo do paradoxo. Assim, há fabulações imaginativas que poderiam ser estudos literários (como no conto “Pierre Menard, autor del Quijote” da seção El Jardín de senderos que se bifurcan que está em Ficciones), ensaios filosóficos com certa ressonância poética e narrativa (Historia de la eternidad), estudos literários que mergulham nas profundezas do imaginário em busca de novas interações e formas (o já mencionado Manual de zoología fantástica). Mais atualmente, alguns autores que transitam por esse universo equívoco merecem destaque. Luiz Nazario, no Brasil, trabalha com os arquivos fornecidos pelo imaginário cinematográfico, literário e filosófico, especialmente quando abandonados, deixados de lado ou relegados ao injusto esquecimento. Na Europa, autores como Mark Valentine (em Wraiths e And I’d Be the King of China) e Andrew Condous (Letters from Oblivion) – cujos focos são, respectivamente, a produção literária inglesa na última década do século XIX e o grupo surrealista romeno Infra-noir – realizam minuciosa recuperação de obscuros momentos da literatura, inclusive emulando o estilo e perspectiva de seu objeto, buscando quase a reprodução das obras perdidas, dos projetos abortados. Trata-se de uma impressionante demonstração do poder sugestivo da ficção de arquivo, ao explorar a imaginação e o desejo humanos realizados nos livros, especialmente aqueles desaparecidos no horizonte da História. ••• A coletânea de contos Signos, de Nestor Vítor, teve um curioso, estranho destino. Impresso pela Typographia Correia, Neves em 1897, teve recepção calorosa à época, incluindo imponente resenha de Cruz e Sousa, publicada na revista República a 23 de agosto de 1897 que dizia: "O surpreendente e curiosíssimo artista dos Signos, que agora tão soberbamente se manifesta nas páginas deste livro de uma alta significação estética, tão anunciante de segredos, tão revelador de mistérios e tão sugestivo de majestade, é um dos raros poderosos que têm o dom magnífico e mágico de violentamente arrebatar, a nossa alma, de a fazer tremer e soluçar de comoção diante da sua.” Mesmo assim, o livro de tiragem limitada nunca teve uma segunda edição. Uma vez que o papel do próprio Nestor Vítor no quadro geral do simbolismo brasileiro acabou deslocado ao de colaborador crítico de Cruz e Sousa, além de poeta/prosador menor nas horas vagas, a reedição de uma obra como essa deixou de ter qualquer prioridade. Esgotado, o livro acabou desaparecendo de vista, não tendo espaço sequer nas coleções particulares de bibliófilos ou de pesquisadores do simbolismo. O estudioso Marcelo José Fonseca Fernandes, em sua tese de doutorado apresentada na UFRJ com o título O conto simbolista no Brasil seguido de antologia comentada, menciona a dificuldade em ter acesso ao livro, pois os contos que nele figuram sequer chegaram a ser transcritos em outra coletânea. Segundo Fernandes, há apenas um único exemplar nos grandes acervos nacionais – que incluiriam a Fundação Biblioteca Nacional e a Coleção Brasiliana, da USP – passível de consulta, mediante prévia solicitação e agendamento, na Fundação Casa de Ruy Barbosa. A tese de Fernandes, aliás, é um dos poucos locais em que podemos encontrar a reprodução de contos do livro Signos. Como se deu tal fenômeno, de uma obra de inegável valor – histórico e artístico – reconhecido pelos contemporâneos ser praticamente ignorada como se sequer tivesse existido? Uma hipótese que poderíamos formular é que a avalanche crítica detonada pelo modernismo aniquilou a proposta estética e o sentido literário da literatura simbolista. É bem verdade que algo dessa avalanche exista em tradições literárias pelo mundo, mas no Brasil a eficácia do turbilhão de julgamento crítico do modernismo, notadamente com as escolas literárias que surgiam como concorrentes, foi muito mais sistemático, atingindo também a pesquisa acadêmica. É necessário destacar que a estética simbolista em certos enclaves do Brasil – como o Paraná, estado natal de Nestor Vítor – tornara-se algo como uma estética oficial e autores modernistas locais após a Segunda Guerra Mundial, como Dalton Trevisan, lutavam diretamente contra esse simbolismo canônico regional. Assim, críticos como Alfredo Bosi em seu História concisa da literatura brasileira, serão impiedosos na avaliação da prosa simbolista – ainda que o próprio Bosi conceda que Signos era, de fato, obra original –, uma ficção cujo lugar comum seria o fácil elogio da loucura, um resoluto dar de costas para o cotidiano e o terra-a-terra. Esse criticismo que se define pela percepção realista da narrativa – elencada como parâmetro qualitativo em termos estéticos – relegaria à vala comum empreendimentos literários, poéticos e narrativos produzidos no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX, material que mesmo pesquisas sistemáticas e importantes panoramas, como os de Andrade Muricy e Massaud Moisés, não foram capazes de resgatar. O já mencionado pesquisador Marcelo José Fonseca Fernandes destaca como o ostracismo que atingiu os simbolistas (notadamente em suas experiências no campo da prosa narrativa) os marginalizou de tal forma que sequer tiveram acesso às notas de rodapé da história da literatura brasileira. Autores como Nestor Vítor, Lima Campos, Rocha Pombo, Medeiros e Albuquerque, entre outros, tiveram algumas de suas obras limitadas às primeiras edições, algumas eventualmente preservadas em arquivos espalhados pelo Brasil ou praticamente invisíveis mesmo para o leitor especializado. As possibilidades dessas obras serem resgatadas de seus abismos de esquecimento estão nas mãos de editores independentes como Camilo Prado, a frente da Edições Nephelibata, repetindo ironicamente os padrões do passado: edições em tiragens pequenas, destinadas a connoisseurs. Os críticos que tiveram contato com Signos são unânimes em destacar a originalidade da prosa de Nestor Vítor. Ao menos uma das narrativas, a novela “Sapo” com suas 79 páginas, em que a degradação e o isolamento transformam seu protagonista em batráquio humano, uma premonitória antecipação de A metamorfose de Franz Kafka. Nas poucas páginas de Signos reproduzidas na tese de Marcelo José Fonseca Fernandes, é possível perceber que Nestor Vítor, aprofundando matizes do simbolismo e do decadentismo, encontrou fórmulas narrativas que dialogavam com a fábula, o poema em prosa, a narrativa evocada por imagens obscuras e simbólicas, não por encadeamentos lógicos ou referências imediatas. Trata-se de um processo de estilização que se comunica com a obsessão descritiva e ornamental de autores do Nouveau Roman, como Alain Robbe-Grillet, da mesma forma que com a literatura plena de artifícios de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy-Casares. Essa prosa ornamental, descritiva e “obscura”, que opta por encadeamentos imagéticos e não sequenciais, violava certas convenções estabelecidas desde antes da modernidade literária no Brasil – mas adotados por tal modernidade –, notadamente a necessidade referencial, realista ou irônica. De fato, uma ficção que se desdobrava em torno de imagens imaginativas, extremamente elaboradas, seria intolerável para setores reacionários da crítica literária, representados por José Veríssimo que afirmava ser o simbolismo como “mero produto de importação”. Contudo, mesmo críticos surgidos após o modernismo, como Alfredo Bosi, reforçariam a imagem de um movimento alienígena, “surto epidêmico”, corpo estranho na ordenada constelação literária brasileira. O chauvinismo aberto ou velado do modernismo e da crítica literária brasileira, tanto anterior quanto posterior a 1922, não perdoariam a percepção internacionalista e anti-patriótica do simbolismo/decadentismo, a disposição em abandonar a gaiola de ferro da referência na realidade histórico-social brasileira. A verdade é que obras como Signos, exiladas da literatura brasileira em uma espécie de limbo do esquecimento, só podem ser resgatadas através da coragem de editores visionários como Camilo Prado ou pela ficção de arquivo, que possibilitaria ao menos a evocação da obra que reverberaria na imaginação do leitor e manteria viva a memória do livro. Pois, em alguns casos trágicos, será essa memória o único testemunho da existência daquilo que foi definitivamente perdido, esquecido. Artigo realizado com o apoio do programa PNAP-R da Fundação Biblioteca Nacional. Abaixo, descrição do livro Signos pelos Anais da Biblioteca Nacional (vol. 87, 1967) e frontispício da obra, em imagem retirada de leilão de livros raros que ocorreu no ano de 2013. Escritor, pesquisador, colecionador, Andrew Condous mesclou realidade, ficção, literatura, bibliofilia em seu livro Letters from Oblivion, cujo foco foi a editora de Bucareste Les Éditions de L'Oubli, especializada em obras vanguardistas de autores como Gherasim Luca e Dolfi Trost. Obra única, mescla de relato histórico, memórias e ficção, projeta livros reais que parecem saídos de louca extrapolação ficcional e livros utópicos que parecem palpáveis como a matéria do sonho.
As vanguardas do início do século XX, de certa forma, estabeleceram uma interessante possibilidade utópica e internacionalista, que contradizia certa mitologia nacionalista cultivada desde o romantismo. Essa possibilidade se evidencia em seu livro, em como processos de fechamento (do fascismo e depois do stalinismo) inviabilizaram o universo cultural no qual o surrealismo romeno era possível. Nesse sentido, foi esse elemento, essa outra história possível, que o levou a escrever Letters from Oblivion? Se não, qual seria o principal motivador? As motivações principais, inicialmente, foram mais simples ampliando-se depois para o que podemos contemplar agora. Uma motivação inicial foi a ideia de produzir um relato histórico sem precedentes, que incluísse uma abordagem na qual a maior parte dos eventos factuais, locais e algumas das publicações jamais tiveram qualquer documentação. Também pretendia incluir referências a indivíduos que não eram comumente associados ao movimento surrealista romeno. Por isso, evitei propositalmente incluir o que já era conhecido ou documentado com exceção do que fosse absolutamente necessário para fornecer um contexto relevante. Esse relato histórico serviria, igualmente, para dispersar as afirmações de que a editora Les Éditions de L’Oubli seria uma espécie de ficção, para dispersar o mistério que parece cercá-la. Também estava motivado a destacar um autor em particular que não estava diretamente conectado ao surrealismo romeno mas que, por outro lado, possuía relações com eles e suas editoras. Tal autor foi particularmente ignorado embora prevejo que isso possa mudar no futuro. Quando o descobri pela primeira vez, anos atrás, creio que meu sentimento foi similar ao experimentado pelos surrealistas franceses quando da descoberta das obras do Conde de Lautréamont. Uma segunda motivação foi de natureza pessoal. Alguns dos eventos que aparecem em Letters from Oblivion são, na verdade, testemunhos em primeira mão, que me foram transmitidos (com extrema paixão) anos atrás por alguém que estava em Bucareste à época e que teve contato com os surrealistas romenos, com outros autores das vanguardas locais e com os editores. O que mais o impressionara foi a relação simbiótica entre intensa atividade criativa e destruição generalizada presente em Bucareste no período da guerra e que marcou a produção literária de tal momento histórico. Desejava documentar alguns desses testemunhos na forma de memórias anônimas, sendo que meu livro surgiu como meio perfeito para isso. Sem dúvida, também senti que era necessário fornecer alguma perspectiva histórica a respeito da Les Éditions de L’Oubli tendo em vista sua recente ressurreição e a qualidade do material publicado nessa segunda encarnação. Letters from Oblivion possui uma estrutura muito interessante e dinâmica: trata-se da recuperação de uma experiência editorial (da Les Éditions de L’Oubli na Bucareste dos anos 1940), de fato, mas isso não restringe a trama tecida à mera função de catálogo. Fluxos poéticos e narrativos coexistem com a funcionalidade da historiografia. O que o orientou na direção dessa síntese? Houve necessidade de fornecer texturas e coloração aos livros descritos, do conteúdo de cada um deles, bem como da atmosfera da época e dos personagens envolvidos. Mais que simplesmente inserir detalhes elaborados a partir de cada um desses aspectos, pensei que o melhor seria fornecer fortuita prosa ficcional que tentasse refletir e condensar todos esses elementos. É preciso destacar que a mescla de fato e ficção serve, também, como reflexo da percepção incorreta nutrida a respeito da própria Les Éditions de L’Oubli. A intensa e breve produção da Les Éditions de L’Oubli, tanto em termos de qualidade editorial quanto artística, possuiria algum paralelo na própria Romênia? Houve outras editoras que se lançaram em aventuras semelhantes? De modo geral, costumo incluir dentro de uma elevada categoria artística e editorial a maior parte dos editores ligados às vanguardas romenas e outros movimentos artísticos menos conhecidos como o expressionismo, simbolismo e decadentismo romenos – tanto em termos de livros publicados quanto de periódicos (jornais e revistas). Há várias editoras e periódicos que poderiam ser citados (Unu e Alge seriam os mais notáveis exemplos entre as publicações), não nos limitando apenas a pequenas editoras, pois poderia mencionar algumas editoras maiores como a Socec. Vários editores em Craiova também mereciam, nesse sentido, uma menção em particular durante o período no qual vigoravam leis de restrição de publicações em Bucareste. Também é necessário mencionar as revistas dos simbolistas romenos, especialmente aquelas associadas a Macedonski – como Flacara e Versuri si Proza. No Brasil, um grupo de vanguardistas – que se autodenominava "antropófago" – subverteu a visão pitoresca e o exotismo convencional aplicado aos países tropicais, empregando esses dois conceitos como armas para produção estética. Haveria algo análogo entre os vanguardistas romenos os quais você pesquisou, talvez em sua posição geográfica "nos limites do Ocidente"? Como era o trabalho de autores como Trost e Luca com as noções de exótico e pitoresco que eventualmente foram aplicadas a eles? É interessante sua menção ao "antropófago", essa referência, que pode ser feita em relação ao núcleo do Grupo dos Cinco, salta à minha mente de forma imediata e, de fato, paralelos são possíveis com o mencionado Grupo, mesmo que os manifestos, tendências, trabalhos artístico-literários e contextos culturais sejam diferentes em algumas questões concretas – mas creio que não diametralmente diferentes, especialmente tendo em vista a base teórica de tais grupos (ou seja, Breton, Freud, Picabia, etc.). Uma análise comparativa seria um caminho interessante, embora complexo, a se explorar. Não saberia dizer, nesse sentido, se a posição geográfica da Romênia, por si mesma, foi um fator significativo – talvez a questão esteja mais em sua capital, a percepção de que era uma versão exótica ou, de certa forma, uma extravagante irmã mais nova da grande capital que é Paris, "a Paris do leste" como costuma ser chamada. De qualquer forma, em termos de literatura, essa comparação é relevante em muitos sentidos mas não em termos da internacionalização da literatura. Poucos autores romenos – incluindo, por exemplo, Tzara, Eliade, Cioran, Ionesco, etc. – e em sentido mais estrito outros como Luca ou Naum, são conhecidos pelo público estrangeiro, de um modo geral. A maior parte dos autores romenos, atravessando os diversos movimentos literários que caracterizam a literatura local (incluindo os membros do grupo surrealista), permanecem exóticos. Em geral, uma estética ocidentalizante, exótica e pitoresca é evidente em outras vanguardas romenas (os construtivistas e expressionistas, por exemplo) e em artistas como Scarlat Callimachi, Horia Bonciu, Aron Cotrus. Muito mais que nos surrealistas romenos. Para a maior parte dos leitores de fora da Romênia, a vertente surrealista local, a vanguarda em sentido amplo, mesmo a cidade de Bucareste, persistem em manter esse fascínio estranho e bizarro, no qual entram beleza e sofisticação mas que merece ser revisitado da mesma maneira que se vai ao museu: para obter mais um vislumbre de um objeto estranho, excitante e fora do usual. Certa vez, André Breton observou que "o centro do mundo se moveu para Bucareste". Para mim e para alguns outros fora da capital Romena, esse "centro do mundo" não mudou necessariamente de lugar em alguns aspectos. Um dos fatos que percebemos durante a leitura de Letters é como a construção de redes foi importante para a produção cultural vanguardista no século XX, com editoras e revistas conectando constantemente autores, leitores, comentadores, etc. Nesse sentido, Les Éditions de L’Oubli é exemplar. Ao que você atribui o sucesso dessa rede de conexões no caso de uma pequena editora na Romênia dos anos 1940, em plena Segunda Guerra Mundial? O sucesso, nesse caso, pode ser atribuído ao dono da editora, figura destacada em Letters from Oblivion, e sua esposa. Foi esse reduzidíssimo time e as muitas conexões – que possuíam com escritores da vanguarda na Romênia, impressores, fornecedores de artigos de papelaria, os correios, as várias "sociedades secretas" que floresceram à época – o que permitiu a publicação e distribuição dos livros produzidos. O extraordinário nível de dedicação, discrição e engenhosidade alcançado surge como algo quase impossível. Certamente, o comprometimento que tiveram destaca-se como um ato de coragem, tendo em vista o contexto extremamente delicado, perigoso e imprevisível. Além disso, é necessário destacar o antecessor movimento simbolista romeno (que envolvia Minulescu, Macedonski, Maniu, Bacovia), as conexões e estruturas estabelecidas por esse grupo literário, essenciais como alicerce para as interconexões que se estabeleceram no período posterior, das vanguardas. Embora Gherasim Luca seja um autor relativamente conhecido, traduzido e publicado, o mesmo não ocorre com muitos de seus companheiros (Trost, Teodorescu, etc.). Nesse sentido, nem mesmo o idioma seria um impedimento, uma vez que Trost – como Luca – escreveu também em francês. Qual seria, em sua opinião, o motivo desse injusto esquecimento? Dos surrealistas romenos apenas Gherasim Luca e Gellu Naum ganharam certo renome internacional. Dolfi Trost, Paul Paun e Virgil Teodoresco permaneceram relativamente obscuros. Isso é verdadeiro. Contudo, mesmo no caso de Luca e Naum, os primeiros trabalhos por eles produzidos também são pouco conhecidos e negligenciados até certo ponto. Por exemplo, no caso de Luca, seus trabalhos anteriores à Segunda Guerra Mundial são em larga medida ignorados. Quase todos esses trabalhos foram escritos em romeno, de modo que o idioma deve ter alguma influência nisso. Há um bom número de obras escritas durante os anos 1930, publicadas em diversos jornais e revistas, muitas das quais foram completamente esquecidas (algumas dessas publicações foram mencionadas em Letters from Oblivion, em especial no contexto do capítulo "The Outlaw"). Um exemplo mais óbvio são as primeiras publicações de Luca, consideravelmente obscuras: a infame (à época) Roman de Dragoste e Fata Morgana, de 1933 e 1937, respectivamente. Mas a teoria do idioma como limitador pode ser um pouco minimizada tendo em vista a atenção dada aos dois livros, escritos em romeno, que Luca publicou pela Editura Negatia Negatiei Negrata. No caso de Luca (e de Naum), é possível culpar esse esquecimento pelo fato das primeiras obras de ambos serem de difícil acesso. No caso de Dolfi Trost, o esquecimento não pode ser atribuído a questões de idioma uma vez que ele usou (como Luca) o francês como idioma predominante em sua escrita durante e após o período de atividade do grupo surrealista romeno. Atualmente, ele é em geral mais reconhecido por uma ou duas técnicas artísticas por ele inventadas do que pela sua obra escrita (com exceção de uma coautoria com Luca no livro Dialectique de la Dialectique), o que é injusto tendo em vista a excelência e a importância daquilo que ele produziu, especialmente o material publicado pela Les Éditions de L'Oubli e Infra Noir. Uma razão possível estaria no fato que Trost não possuía um bom nível de contato com os círculos parisienses que outros, como Luca, dispunham. Contudo, essa explicação seria relevante até certo ponto, especialmente porque Trost chegou a publicar dois livros no início dos anos 1950 em Paris (Visible et invisible e Librement mécanique). Penso que uma razão mais certeira da obscuridade de Trost se situe na decisão do autor em migrar para os EUA e abandonar a literatura (ao contrário de Luca, que continuou escrevendo e publicando em Paris) e no fato de suas primeiras obras serem tão raras. Acredito que essa obscuridade seria menor se um extraordinário livro que ele planejava lançar com Luca, mencionado em Letters from Oblivion, não tivesse "desaparecido" [nota: trata-se de L'Invisibilite d'une reve]. O esquecimento de Paul Paun e Virgil Teodorescu pode ser atribuído, de maneira mais direta, ao fato de nunca terem sido publicados fora de Bucareste (exceção feita ao último trabalho de Paun, publicado em Israel) embora, novamente, a dificuldade em encontrar as primeiras obras tenha alguma relevância aqui. Teodorescu, contudo, não pode ser considerado um estranho dentro dos limites da Romênia uma vez que decidiu permanecer em Bucareste. Minha esperança sincera é que esses três esquecidos surrealistas romenos possam ser descobertos e traduzidos para outros idiomas, uma vez que suas poderosas obras constituem importante contribuição ao movimento surrealista internacional. Indiscutivelmente, Trost, Paun e Teodorescu escreveram ao menos um trabalho que pode ser visto como uma das obras-primas da literatura de vanguarda romena na primeira metade do século anterior. Algo em seu livro me trouxe à mente a narrativa de um filme documentário – registro de fatos, mas também trabalho meditado de construção formal. Essa forma faz com que seu trabalho destoe da linha seguida pela Ex Occidente/Zagava Press, centrada na ficção, embora mantenha curiosamente uma relação íntima com outras obras igualmente únicas do catálogo de ambas editoras (penso especialmente em At Dusk, de Mark Valentine, com seus níveis de ficção poética e realidade histórica ao evocar a vida de poetas da vanguarda do século XX). Pretende retomar essa abordagem em livros futuros? Quais seriam, nesses casos, os temas possíveis? Ou tentará, talvez, a ficção? Sim, de fato pretendo utilizar novamente essa abordagem, mas de formas variadas. Atualmente, escrevo um ensaio fictício incorporando os trabalhos de ficção e teoria de Maurice Blanchot por conta de uma futura homenagem a esse autor, que será editada por Dan Ghetu e Dan Watt pela Zagava/Ex Occidente. Também estou nos estágios iniciais de desenvolvimento de alguns projetos mais ambiciosos. Um deles envolve o tema da fertilização cruzada das vanguardas e dos movimentos surrealistas na Europa e América Latina. Nesse trabalho, cada capítulo será dedicado a um autor latino-americano ou europeu que esteve fisicamente localizado, de alguma forma, entre esses dois continentes. Será uma pesquisa histórica transcontinental analítica, mas com relatos ficcionais. Conforme o livro avança, o nível de obscuridade do autor analisada também será maior. O mais importante e complexo livro ao qual me dedico será um segundo volume, dedicado aos desenvolvimentos ou extrapolação do que está em Letters from Oblivion. Esse livro consistirá, como conceito central, de uma singular e única abordagem da obra de Fernando Pessoa. O título, Fictions from Oblivion. Abaixo, gravura "entóptica" (ou seja, feita a partir das irregularidades de cor presentes na folha de papel) de Dolfi Trost, que iliustra seu livro Vision dans le Cristal, Oniromancie obsessionelle (Et neuf graphomanies entoptiques), publicado pela Les Éditions de L'Oublie em 1945. ossibilidades e caminhos abertos pela modernidade nas Artes alcançou, também, a construção narrativa: após o realismo desenvolvido ao longo de todo o século XIX alcançarem um espantoso nível de minúcia da trama – com a reprodução mimética até de nuances e peculiaridades da percepção, do tempo, do espaço – as Artes da modernidade ultrapassaram a necessidade de reprodução sistemática do momento, das possibilidades usuais fornecidas pelo cotidiano. Tais criadores redescobriram a forma da trama sem a "profundidade" psicológica, social e histórica, valorizando a repetição, o ritual, o esvaziamento, o paradoxo, o apagamento. Em uma palavra, voltaram-se para as poderosas energias do mito, do conto de fadas, da lenda, do sobrenatural. Nesse sentido, as correntes artísticas da vanguarda no início do século XX buscaram ascendentes, linhagens de certa antiguidade, pontos de contato, obscuridades, elos perdidos – um universo fervilhante e turbulento de narrativas e representações foi resgatado dentro de concepções estéticas febris, contraditórias e conflitantes. É nesse contexto complexo de redescoberta e de conflito entre percepções divergentes a respeito desse novo território do passado que encontramos a obra de Roger Caillois (1913-1978). Caillois foi um autor sui generis, que trafegou entre a sociologia e a literatura, a América Latina e a Antiguidade, o jogo e o sagrado: na juventude, seria atraído para a órbita dos surrealistas mas logo se colocou contra o movimento, intuindo direções próprias (como alguns de seus eventuais aliados, o mais conhecido deles sendo Georges Bataille, na revista Acéphale e no Collège de Sociologie). Fugindo do nazismo, saiu da França em 1939, exilando-se na Argentina, onde permaneceria até o final da Segunda Guerra Mundial. Nesse ativo exílio, descobriria as experiências literárias desenvolvidas por autores como Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Victoria Ocampo entre muitos outros autores que apresentaria ao público francês na coleção de livros (lançada pela Gallimard) La Croix du Sud, já nos anos 1950. Caillois buscou unir a experiência que não pode ser reduzida à percepção cotidiana (o sonho, o mito, o delírio, o sobrenatural, o acaso objetivo) da esfera individual à coletiva, sendo um dos primeiros analistas a buscar uma leitura sociológica, antropológica e política desses dados aparentemente fragmentários, imprecisos, absurdos e ilegíveis. Nessa busca, a noção de fantástico seria muito útil: de grande peso na literatura francesa, o fantástico começava a ser tratado de forma mais diferenciada pela crítica ainda nos anos 1950, em grande parte devido aos vanguardistas (notadamente, os surrealistas) que instrumentalizaram o termo e recolocaram as narrativas com esse peculiar efeito de ambiguidade e ruptura em circulação. Nesse esforço se insere o breve tratado de arte fantástica de Caillois, Au cœur du fantastique, publicado pela Gallimard em 1965 – o volume é uma reflexão e uma bela homenagem ao tema, mas que logo seria asperamente criticado por outro crítico interessado na fantástico, Tzvetan Todorov em sua Introduction à la littérature fantastique (1970). A análise ousada e que apelava para a intuição descontínua, embora de imensa amplitude, empreendida por Caillois não teria lugar na visão geometrizante do estruturalismo de Todorov.
Alinhavando Caillois e Lovecraft, Todorov simplesmente coloca ambos como "críticos pouco sérios" (pois não seria de bom tom encontrar críticos sérios defendendo as teorizações de ambos) que calibram a definição do fantástico em termos do sangue-frio do leitor ou de uma vaga noção de ruptura/descontinuidade do "mundo real". Para o autor estruturalista búlgaro, tratar-se-ia de vagueza, "falácia da intencionalidade" e incompetência teórica, simultaneamente ou um defeito de cada vez nesses frágeis edifícios teóricos concorrentes. Para exemplificar seu ponto de vista, Todorov faz algumas breves citações do estudo de Caillois, sem explicar que Au cœur du fantastiquice destina-se essencialmente à análise da arte figurativa mais que da narrativa. Mas isso não foi impedimento nenhum para Todorov, embora ele provavelmente deva ter lido, impassível, trechos como o que abre a primeira abordagem cailloisiana. Ao tentar definir um efeito difícil sequer de expressar, que passa literalmente diante dos olhos que contemplam um quadro – e que, Caillois bem sabia, tal efeito teria um comportamento diferente em termos literários – a verdade é que o antigo surrealismo vai bem mais longe que o estruturalista. Já na introdução Caillois propõem a existência de um efeito do fantástico latente na própria natureza codificada em imagens, mencionando o fascínio por esse pequeno bicho, a toupeira de nariz-estrela, mais sugestivo para ele que um híbrido de Bosch. Muito mais que a ruptura da legalidade cotidiana, o fantástico em Caillois parece a redescoberta dessas franjas defeituosas que nossa percepção fragmentária pretende reduzir a nada em nome de um princípio de realidade todo-poderoso: o fantástico cailloisiano é a marca de um estranho imaginário na Realidade, destroçando ilusões de continuidade e permanência. Descobri esse maravilhoso livro na biblioteca do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), após garimpar anos atrás dele – um período sem Internet, no qual tais descobertas eram saboreadas quando realizadas. Possuo, portanto, uma cópia – confiável e bastante usada. O livro, até onde sei, nunca foi relançado pela Gallimard ou qualquer outra editora e também não ganhou tradução para nenhum idioma, ao menos como obra integral. Os curiosos mecanismos e artifícios da Arte moderna permitiram o ressurgimento da figura do polígrafo – o artista/cientista que tenta dominar diversas matérias do Espírito e da Forma disponíveis nos territórios já conhecidos e inexplorados das conexões entre a Cultura e a Natureza. Em geral, tal figura costuma ser representada por nomes como os de Leonardo Da Vinci, Athanasius Kircher ou Emanuel Swedenborg. A visão poligráfica do universo exige um deslocamento singular do problema concreto (em geral, de natureza tecnológica) para camadas mais abstratas da Cultura, que envolvem a linguagem e a cognição: tal deslocamento faz da obra de um polígrafo um sobrevoo complexo que assinala limites e possibilidades da linguagem, mesmo quando a "teorização" (pois a criação em múltiplas áreas do conhecimento conduz necessariamente a um esforço de contínua teorização e justificativa) se mostra absurda, ultrapassada ou inválida. Parte do espírito do Renascimento, o polígrafo reaparece no século XX em figuras como o italiano Luigi Russolo, o russo Velimir Khlébnikov, o argentino Xul Solar ou o professor, editor, gráfico, filantropo, filólogo português Paulo de Cantos (1872-1979). Contemporâneo de modernistas como Fernando Pessoa, Cantos construiu uma obra baseada na divulgação imaginativa da Ciência em livros como Astrarium (1940) ou O Homem Máquina (1930-36). Mas, em Cantos, a imaginação sempre ultrapassa o ímpeto sistemático da divulgação dos atrozes ou benéficos desdobramentos da Ciência e da História, na construção de imagens tipográficas e de novos fluxos textuais a partir de textos edificantes de cientistas e filósofos.
A obra "cantiana", como costuma ser chamada por seus novos pesquisadores, invisível e ignorada por bom tempo, começa a ser descoberta agora por jovens designers portugueses, encantados pelo uso criativo de elementos tipográficos e editoriais nos estranhos livros editados por Cantos. Contudo, a concepção original e poética dos fluxos de linguagem do autor ainda aguardam análise sistemática. Abaixo, imagens dos livros Astrarium e Adagios/Maxims (1946), retiradas de artigos nos sites Montag e The Ressabiator. Um interessante vídeo produzido e publicado pela revista Público, abordando as iniciativas de redescoberta de Paulo de Cantos, pode ser visto neste link. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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