ossibilidades e caminhos abertos pela modernidade nas Artes alcançou, também, a construção narrativa: após o realismo desenvolvido ao longo de todo o século XIX alcançarem um espantoso nível de minúcia da trama – com a reprodução mimética até de nuances e peculiaridades da percepção, do tempo, do espaço – as Artes da modernidade ultrapassaram a necessidade de reprodução sistemática do momento, das possibilidades usuais fornecidas pelo cotidiano. Tais criadores redescobriram a forma da trama sem a "profundidade" psicológica, social e histórica, valorizando a repetição, o ritual, o esvaziamento, o paradoxo, o apagamento. Em uma palavra, voltaram-se para as poderosas energias do mito, do conto de fadas, da lenda, do sobrenatural. Nesse sentido, as correntes artísticas da vanguarda no início do século XX buscaram ascendentes, linhagens de certa antiguidade, pontos de contato, obscuridades, elos perdidos – um universo fervilhante e turbulento de narrativas e representações foi resgatado dentro de concepções estéticas febris, contraditórias e conflitantes. É nesse contexto complexo de redescoberta e de conflito entre percepções divergentes a respeito desse novo território do passado que encontramos a obra de Roger Caillois (1913-1978). Caillois foi um autor sui generis, que trafegou entre a sociologia e a literatura, a América Latina e a Antiguidade, o jogo e o sagrado: na juventude, seria atraído para a órbita dos surrealistas mas logo se colocou contra o movimento, intuindo direções próprias (como alguns de seus eventuais aliados, o mais conhecido deles sendo Georges Bataille, na revista Acéphale e no Collège de Sociologie). Fugindo do nazismo, saiu da França em 1939, exilando-se na Argentina, onde permaneceria até o final da Segunda Guerra Mundial. Nesse ativo exílio, descobriria as experiências literárias desenvolvidas por autores como Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Victoria Ocampo entre muitos outros autores que apresentaria ao público francês na coleção de livros (lançada pela Gallimard) La Croix du Sud, já nos anos 1950. Caillois buscou unir a experiência que não pode ser reduzida à percepção cotidiana (o sonho, o mito, o delírio, o sobrenatural, o acaso objetivo) da esfera individual à coletiva, sendo um dos primeiros analistas a buscar uma leitura sociológica, antropológica e política desses dados aparentemente fragmentários, imprecisos, absurdos e ilegíveis. Nessa busca, a noção de fantástico seria muito útil: de grande peso na literatura francesa, o fantástico começava a ser tratado de forma mais diferenciada pela crítica ainda nos anos 1950, em grande parte devido aos vanguardistas (notadamente, os surrealistas) que instrumentalizaram o termo e recolocaram as narrativas com esse peculiar efeito de ambiguidade e ruptura em circulação. Nesse esforço se insere o breve tratado de arte fantástica de Caillois, Au cœur du fantastique, publicado pela Gallimard em 1965 – o volume é uma reflexão e uma bela homenagem ao tema, mas que logo seria asperamente criticado por outro crítico interessado na fantástico, Tzvetan Todorov em sua Introduction à la littérature fantastique (1970). A análise ousada e que apelava para a intuição descontínua, embora de imensa amplitude, empreendida por Caillois não teria lugar na visão geometrizante do estruturalismo de Todorov.
Alinhavando Caillois e Lovecraft, Todorov simplesmente coloca ambos como "críticos pouco sérios" (pois não seria de bom tom encontrar críticos sérios defendendo as teorizações de ambos) que calibram a definição do fantástico em termos do sangue-frio do leitor ou de uma vaga noção de ruptura/descontinuidade do "mundo real". Para o autor estruturalista búlgaro, tratar-se-ia de vagueza, "falácia da intencionalidade" e incompetência teórica, simultaneamente ou um defeito de cada vez nesses frágeis edifícios teóricos concorrentes. Para exemplificar seu ponto de vista, Todorov faz algumas breves citações do estudo de Caillois, sem explicar que Au cœur du fantastiquice destina-se essencialmente à análise da arte figurativa mais que da narrativa. Mas isso não foi impedimento nenhum para Todorov, embora ele provavelmente deva ter lido, impassível, trechos como o que abre a primeira abordagem cailloisiana. Ao tentar definir um efeito difícil sequer de expressar, que passa literalmente diante dos olhos que contemplam um quadro – e que, Caillois bem sabia, tal efeito teria um comportamento diferente em termos literários – a verdade é que o antigo surrealismo vai bem mais longe que o estruturalista. Já na introdução Caillois propõem a existência de um efeito do fantástico latente na própria natureza codificada em imagens, mencionando o fascínio por esse pequeno bicho, a toupeira de nariz-estrela, mais sugestivo para ele que um híbrido de Bosch. Muito mais que a ruptura da legalidade cotidiana, o fantástico em Caillois parece a redescoberta dessas franjas defeituosas que nossa percepção fragmentária pretende reduzir a nada em nome de um princípio de realidade todo-poderoso: o fantástico cailloisiano é a marca de um estranho imaginário na Realidade, destroçando ilusões de continuidade e permanência. Descobri esse maravilhoso livro na biblioteca do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), após garimpar anos atrás dele – um período sem Internet, no qual tais descobertas eram saboreadas quando realizadas. Possuo, portanto, uma cópia – confiável e bastante usada. O livro, até onde sei, nunca foi relançado pela Gallimard ou qualquer outra editora e também não ganhou tradução para nenhum idioma, ao menos como obra integral.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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