Em 1975, Jorge Luis Borges publicaria um conto que seria materialização do sonho de todo o bibliófilo: “El Libro de Arena”, o livro cujas páginas são infinitas (ou ao menos incontáveis) como os grãos de areia que existem em uma praia. O protagonista do conto adquire o fantástico volume de um vendedor de Bíblias escocês que surge em sua casa mas acaba prisioneiro do “livro monstruoso” e “diabólico”. Objeto impossível e fascinante – alimentou mesmo uma releitura apocalíptica de Rhys Hughes, em um conto de sua Nova história universal da infâmia – símbolo daquilo que desejamos e que alimenta nossos piores pesadelos, que apenas podemos abandonar em um local onde se perca definitivamente, assombrando-nos assim apenas como uma provável ilusão dos sentidos. É curioso que o volume monstruoso de Borges não é incomum: a capa demonstrava que o livro passara por muitas mãos, o idioma no qual fora escrito talvez fosse estranho, mas a tipografia era medíocre, as páginas estavam gastas, as ilustrações eram torpes e de feitio mediano.
De certa forma, Borges era sensível a um fenômeno curioso: muitos livros cotidianos, de forma limitada, reproduzem a sensação do livro de areia graças a curiosas disposições na Natureza. O tempo, por exemplo, pode desgastar um volume de tal forma que as páginas, antes vistosas, surgem quebradiças em nossos espantados dedos (que talvez não tocaram essas páginas por alguns anos). Já a memória produz o efeito de espanto diante de um livro que imaginamos conhecer (e que nos surpreende, o que indica que provavelmente não o conhecíamos) quando passagens que temos a certeza estarem em tal e qual página desaparecem, quando novas ilustrações ou sentidos surgem mesmo que de uma leitura breve, superficial. Por outro lado, certos formatos sempre buscaram emular, de forma evidentemente imperfeita, a infinitude: os almanaques e as coletâneas, que possibilitavam a (re)descoberta, o frisson inesperado na leitura do volume. Mas nenhuma dessas formas de aproximação ao “livro de areia”, objeto não natural mas possível (como tantos objetos não naturais) é como esse estranho artefato publicado pela Zagava/Ex Occidente Press: Infra-Noir, compêndio multifacetado e único, o mais próximo possível do livro de areia. O título, que poderíamos traduzir como “infranegro”, parece aludir aos manifestos e séries de opúsculos do grupo surrealista romeno, que congregou nos anos 1940 nomes como Gherasim Luca, Dolfi Trost, Paul Păun e outros. Essa relação com o rico e complexo veio do surrealismo romeno é acentuada pelo trecho do poema de Virgil Teodorescu (ilustrado por stilamancies de Dolfi Trost), Poem in Leoparda (1940), que ilustra a sobrecapa, escrito no idioma dos leopardos, ferocidade fonética inventada por Teodorescu como “idioma” de seu poema, moldada a partir – como destaca Andrew Condous – das experiências dadaístas de Tristan Tzara em torno dos chamados “poemas simultâneos” e do “letrismo” de Isidore Isou. O original do estranho poema de Teodorescu e Trost foi confiscado pelas autoridades romenas em 1959 e imaginava-se destruído. De fato estava, mas não inteiramente: quatro páginas foram secretamente guardadas pela esposa de Virgil, Helene – nessas páginas, podemos ler o trecho que está na capa de Infra-Noir: “Sobroe vinwid tidiv toe”. A linguagem estranhamente irreal e poderosamente sugestiva do poema aparece impresso em letras de tipografia impecável, negro sobre o negro da sobrecapa, um verso primoroso em uma língua desconhecida da humanidade, mas por ela percebida. Na lombada, a indicação evidente de negrura, obscuridade, clandestinidade, ameaça de esquecimento: “Infra-Noir”. Mergulhamos em um universo negro, inacreditavelmente significativo e complexo, mas apesar de tudo ainda estamos na sobrecapa que, a despeito de sua imponência, não é preparação suficiente para o impacto do conteúdo do volume: são seis livros completos, uma gama variada de poesia, prosa poética e ficção em diversos formatos e tipografia, cada um deles acabamento luxuoso que inclui uma ampla gama de ilustrações e fotografia. A abertura de Infra-Noir é “Smoke”, livro de poemas de Mark Valentine. Um amplo espectro da composição poética da vanguarda do início do século XX – notadamente o surrealismo, o hermetismo, o dadaísmo, o expressionismo – informa os poemas de “Smoke” que, por outro lado, possuem uma dicção muito própria. Os focos mais evidentes da poesia de Valentine são o exílio e a dispersão, fatos singulares cuja ocorrência se dá tanto na dimensão do cotidiano e quanto do exótico, a projeção constante de outros universos no universo mesmo que percebemos usualmente. Imagens de fontes, objetos de mármore, templos obscuros, espelhos, coisas perdidas ou esquecidas – esse á a imagerie desenvolvida por Valentine em poemas soberbos que em alguns casos transformam-se em pequenas obras-primas da fusão entre poesia e ficção fantástica como em “hark to the rooks” e “a note about hats”, poemas sobre a perda da identidade pela pressão da Natureza e dos sistemas políticos. O segundo livro é “Inflammable Materials”, escrito pelo dinamarquês Thomas Strømsholt, cuja abordagem também é poética. Mas distingue-se do experimento de Mark Valentine por trabalhar uma outra tradição poética: o pequeno poema em prosa, construção que atingiu um grau de sofisticação apreciável nas mãos de autores como Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Oscar Wilde e Franz Kafka. Strømsholt ataca o gênero com perspicácia, astúcia, entrega e inteligência, trabalhando o sentido alegórico das pequenas construções narrativas com o cinzel da multiplicação dos sentidos – pois é o mistério da alegoria aberta o que alimenta o pequeno poema em prosa, efeito obtido com muita eficácia por Strømsholt notadamente no poema “The Glowing Heart”, gema wildeana na qual um inquisidor pagão – filósofo e poeta – confronta uma santa cristã, com resultados reveladores para ambos e, claro, para o leitor. O terceiro livro da amplitude que é Infra-Noir, “The Unfolding Map”, é uma pequena novela de John Howard. Trata-se de uma obra-prima da mistura que Howard costuma realizar entre realidade história, projeção fantástica e especulação filosófica. Pois a concisão e a precisão, aqui, aproxima essa refinada maravilha ficcional dos trabalhos de um H. G. Wells, de um Henry James ou de um William Gehardie. Na trama, acompanhamos as reuniões de um grupo, encabeçado por um líder nazista escalado por Berlim, em negociações a respeito das fronteiras, sempre móveis, entre Romênia e Hungria nos anos 1940. As discussões ocorrem em um fictício e refinado restaurante, localizado em fictícia localidade na Romênia – mas cada um desses elementos poderia ser real. Esse jogo de aparências está no núcleo da trama e de seu acontecimento climático, indefinível entre o sobrenatural, o mágico, o possível. O quarto livro fecha a metade poética de Infra-Noir: “Soot”, de Dan Watt, com ilustrações de Andrzej Welminski. Watt construiu uma prosa alimentada pela estranha confluência entre a humanidade e seus pequenos aparatos mecânicos, feitos para reconstruir e recortar obsessivamente uma realidade muitas vezes cinzenta, pétrea, sufocante. Esse jogo de enganos entre formas captadas pelos sentidos é exposto em seu âmago nos poemas de Watt e nas ilustrações de Welminski. Assim, temos personagens que buscam adivinhar estranhezas carregadas por outros, um circo que inverte o papel entre espectador e espetáculo, livros raros para rituais inabituais, transformações místicas. O quinto livro é “The Salamander Angel”, de Damian Murphy, outra novela com um curiosa estrutura de múltiplos personagens e pontos de vista. Trata-se de um formato bastante adequado, tendo em vista o fato da trama apresentar as múltiplas visões de um único evento apocalíptico, embora talvez invisível. A prosa da novela de Murphy segue uma formato obscuro e mesmo ocultista, com suas referências a rituais e práticas teosóficas, herméticas. As entrelaçadas visões dos personagens atingem um clímax imagético espantoso, inacreditável, com seus anjos apocalípticos transmutados de estátuas para um fragmento de magnetita, símbolo que serve como um tipo de unificador imagético. O último livro é mais uma novela, “The Slaves of Paradise”, de Colin Insole. A ficção de Insole se passa durante os anos de ocupação nazista da França, com essa estranha e ambígua mistura da vida cotidiana que seguia e as necessidades impostas pela colaboração e pela resistência. Esse universo, na trama, é o do cinema, que não poderia ser mais adequado para ilustrar as muitas ambiguidades da França sob ocupação nazista. A questão da traição involuntário e do logro deliberado – de uma perversidade acachapante – são os leitmotive da novela, com ressonâncias cinematográficas sutis: detectei referências aos filmes A sétima cruz (Seventh Cross, 1944) de Fred Zinnemann e O Boulevard do Crime (Les enfants du paradis, 1945) de Marcel Carné. Obra que não limita à homenagem de suas ricas fontes culturais e históricas, “The Slaves of Paradise” é outra gema preciosa dentro da vastidão de Infra-Noir. Infra-Noir segue a tradição hermética e sombria da fonte de seu título, a obra dos surrealistas romenos – em grande parte, conscientemente obscura ou perdida, uma vez que os membros dos círculos vanguardistas na Romênia utilizaram a obscuridade, a clandestinidade, mesmo o esquecimento como armas de resistência ao fascismo, nazismo e stalinismo. Foi uma estratégia arriscada, que parece também destinada ao ocaso em sua nova encarnação: um verdadeiro evento da literatura nessa segunda década do século XXI, a publicação das obras que estão congregadas em Infra-Noir, corre o risco de não passar das notas de rodapé de um ou outro veículo da mídia, voltada usualmente para a narração das pequenas e grandes catástrofes da Humanidade. Mas não é o que poderíamos esperar de algo tão monstruoso e tão magnificamente belo quanto um livro de areia?
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Escritor, pesquisador, colecionador, Andrew Condous mesclou realidade, ficção, literatura, bibliofilia em seu livro Letters from Oblivion, cujo foco foi a editora de Bucareste Les Éditions de L'Oubli, especializada em obras vanguardistas de autores como Gherasim Luca e Dolfi Trost. Obra única, mescla de relato histórico, memórias e ficção, projeta livros reais que parecem saídos de louca extrapolação ficcional e livros utópicos que parecem palpáveis como a matéria do sonho.
As vanguardas do início do século XX, de certa forma, estabeleceram uma interessante possibilidade utópica e internacionalista, que contradizia certa mitologia nacionalista cultivada desde o romantismo. Essa possibilidade se evidencia em seu livro, em como processos de fechamento (do fascismo e depois do stalinismo) inviabilizaram o universo cultural no qual o surrealismo romeno era possível. Nesse sentido, foi esse elemento, essa outra história possível, que o levou a escrever Letters from Oblivion? Se não, qual seria o principal motivador? As motivações principais, inicialmente, foram mais simples ampliando-se depois para o que podemos contemplar agora. Uma motivação inicial foi a ideia de produzir um relato histórico sem precedentes, que incluísse uma abordagem na qual a maior parte dos eventos factuais, locais e algumas das publicações jamais tiveram qualquer documentação. Também pretendia incluir referências a indivíduos que não eram comumente associados ao movimento surrealista romeno. Por isso, evitei propositalmente incluir o que já era conhecido ou documentado com exceção do que fosse absolutamente necessário para fornecer um contexto relevante. Esse relato histórico serviria, igualmente, para dispersar as afirmações de que a editora Les Éditions de L’Oubli seria uma espécie de ficção, para dispersar o mistério que parece cercá-la. Também estava motivado a destacar um autor em particular que não estava diretamente conectado ao surrealismo romeno mas que, por outro lado, possuía relações com eles e suas editoras. Tal autor foi particularmente ignorado embora prevejo que isso possa mudar no futuro. Quando o descobri pela primeira vez, anos atrás, creio que meu sentimento foi similar ao experimentado pelos surrealistas franceses quando da descoberta das obras do Conde de Lautréamont. Uma segunda motivação foi de natureza pessoal. Alguns dos eventos que aparecem em Letters from Oblivion são, na verdade, testemunhos em primeira mão, que me foram transmitidos (com extrema paixão) anos atrás por alguém que estava em Bucareste à época e que teve contato com os surrealistas romenos, com outros autores das vanguardas locais e com os editores. O que mais o impressionara foi a relação simbiótica entre intensa atividade criativa e destruição generalizada presente em Bucareste no período da guerra e que marcou a produção literária de tal momento histórico. Desejava documentar alguns desses testemunhos na forma de memórias anônimas, sendo que meu livro surgiu como meio perfeito para isso. Sem dúvida, também senti que era necessário fornecer alguma perspectiva histórica a respeito da Les Éditions de L’Oubli tendo em vista sua recente ressurreição e a qualidade do material publicado nessa segunda encarnação. Letters from Oblivion possui uma estrutura muito interessante e dinâmica: trata-se da recuperação de uma experiência editorial (da Les Éditions de L’Oubli na Bucareste dos anos 1940), de fato, mas isso não restringe a trama tecida à mera função de catálogo. Fluxos poéticos e narrativos coexistem com a funcionalidade da historiografia. O que o orientou na direção dessa síntese? Houve necessidade de fornecer texturas e coloração aos livros descritos, do conteúdo de cada um deles, bem como da atmosfera da época e dos personagens envolvidos. Mais que simplesmente inserir detalhes elaborados a partir de cada um desses aspectos, pensei que o melhor seria fornecer fortuita prosa ficcional que tentasse refletir e condensar todos esses elementos. É preciso destacar que a mescla de fato e ficção serve, também, como reflexo da percepção incorreta nutrida a respeito da própria Les Éditions de L’Oubli. A intensa e breve produção da Les Éditions de L’Oubli, tanto em termos de qualidade editorial quanto artística, possuiria algum paralelo na própria Romênia? Houve outras editoras que se lançaram em aventuras semelhantes? De modo geral, costumo incluir dentro de uma elevada categoria artística e editorial a maior parte dos editores ligados às vanguardas romenas e outros movimentos artísticos menos conhecidos como o expressionismo, simbolismo e decadentismo romenos – tanto em termos de livros publicados quanto de periódicos (jornais e revistas). Há várias editoras e periódicos que poderiam ser citados (Unu e Alge seriam os mais notáveis exemplos entre as publicações), não nos limitando apenas a pequenas editoras, pois poderia mencionar algumas editoras maiores como a Socec. Vários editores em Craiova também mereciam, nesse sentido, uma menção em particular durante o período no qual vigoravam leis de restrição de publicações em Bucareste. Também é necessário mencionar as revistas dos simbolistas romenos, especialmente aquelas associadas a Macedonski – como Flacara e Versuri si Proza. No Brasil, um grupo de vanguardistas – que se autodenominava "antropófago" – subverteu a visão pitoresca e o exotismo convencional aplicado aos países tropicais, empregando esses dois conceitos como armas para produção estética. Haveria algo análogo entre os vanguardistas romenos os quais você pesquisou, talvez em sua posição geográfica "nos limites do Ocidente"? Como era o trabalho de autores como Trost e Luca com as noções de exótico e pitoresco que eventualmente foram aplicadas a eles? É interessante sua menção ao "antropófago", essa referência, que pode ser feita em relação ao núcleo do Grupo dos Cinco, salta à minha mente de forma imediata e, de fato, paralelos são possíveis com o mencionado Grupo, mesmo que os manifestos, tendências, trabalhos artístico-literários e contextos culturais sejam diferentes em algumas questões concretas – mas creio que não diametralmente diferentes, especialmente tendo em vista a base teórica de tais grupos (ou seja, Breton, Freud, Picabia, etc.). Uma análise comparativa seria um caminho interessante, embora complexo, a se explorar. Não saberia dizer, nesse sentido, se a posição geográfica da Romênia, por si mesma, foi um fator significativo – talvez a questão esteja mais em sua capital, a percepção de que era uma versão exótica ou, de certa forma, uma extravagante irmã mais nova da grande capital que é Paris, "a Paris do leste" como costuma ser chamada. De qualquer forma, em termos de literatura, essa comparação é relevante em muitos sentidos mas não em termos da internacionalização da literatura. Poucos autores romenos – incluindo, por exemplo, Tzara, Eliade, Cioran, Ionesco, etc. – e em sentido mais estrito outros como Luca ou Naum, são conhecidos pelo público estrangeiro, de um modo geral. A maior parte dos autores romenos, atravessando os diversos movimentos literários que caracterizam a literatura local (incluindo os membros do grupo surrealista), permanecem exóticos. Em geral, uma estética ocidentalizante, exótica e pitoresca é evidente em outras vanguardas romenas (os construtivistas e expressionistas, por exemplo) e em artistas como Scarlat Callimachi, Horia Bonciu, Aron Cotrus. Muito mais que nos surrealistas romenos. Para a maior parte dos leitores de fora da Romênia, a vertente surrealista local, a vanguarda em sentido amplo, mesmo a cidade de Bucareste, persistem em manter esse fascínio estranho e bizarro, no qual entram beleza e sofisticação mas que merece ser revisitado da mesma maneira que se vai ao museu: para obter mais um vislumbre de um objeto estranho, excitante e fora do usual. Certa vez, André Breton observou que "o centro do mundo se moveu para Bucareste". Para mim e para alguns outros fora da capital Romena, esse "centro do mundo" não mudou necessariamente de lugar em alguns aspectos. Um dos fatos que percebemos durante a leitura de Letters é como a construção de redes foi importante para a produção cultural vanguardista no século XX, com editoras e revistas conectando constantemente autores, leitores, comentadores, etc. Nesse sentido, Les Éditions de L’Oubli é exemplar. Ao que você atribui o sucesso dessa rede de conexões no caso de uma pequena editora na Romênia dos anos 1940, em plena Segunda Guerra Mundial? O sucesso, nesse caso, pode ser atribuído ao dono da editora, figura destacada em Letters from Oblivion, e sua esposa. Foi esse reduzidíssimo time e as muitas conexões – que possuíam com escritores da vanguarda na Romênia, impressores, fornecedores de artigos de papelaria, os correios, as várias "sociedades secretas" que floresceram à época – o que permitiu a publicação e distribuição dos livros produzidos. O extraordinário nível de dedicação, discrição e engenhosidade alcançado surge como algo quase impossível. Certamente, o comprometimento que tiveram destaca-se como um ato de coragem, tendo em vista o contexto extremamente delicado, perigoso e imprevisível. Além disso, é necessário destacar o antecessor movimento simbolista romeno (que envolvia Minulescu, Macedonski, Maniu, Bacovia), as conexões e estruturas estabelecidas por esse grupo literário, essenciais como alicerce para as interconexões que se estabeleceram no período posterior, das vanguardas. Embora Gherasim Luca seja um autor relativamente conhecido, traduzido e publicado, o mesmo não ocorre com muitos de seus companheiros (Trost, Teodorescu, etc.). Nesse sentido, nem mesmo o idioma seria um impedimento, uma vez que Trost – como Luca – escreveu também em francês. Qual seria, em sua opinião, o motivo desse injusto esquecimento? Dos surrealistas romenos apenas Gherasim Luca e Gellu Naum ganharam certo renome internacional. Dolfi Trost, Paul Paun e Virgil Teodoresco permaneceram relativamente obscuros. Isso é verdadeiro. Contudo, mesmo no caso de Luca e Naum, os primeiros trabalhos por eles produzidos também são pouco conhecidos e negligenciados até certo ponto. Por exemplo, no caso de Luca, seus trabalhos anteriores à Segunda Guerra Mundial são em larga medida ignorados. Quase todos esses trabalhos foram escritos em romeno, de modo que o idioma deve ter alguma influência nisso. Há um bom número de obras escritas durante os anos 1930, publicadas em diversos jornais e revistas, muitas das quais foram completamente esquecidas (algumas dessas publicações foram mencionadas em Letters from Oblivion, em especial no contexto do capítulo "The Outlaw"). Um exemplo mais óbvio são as primeiras publicações de Luca, consideravelmente obscuras: a infame (à época) Roman de Dragoste e Fata Morgana, de 1933 e 1937, respectivamente. Mas a teoria do idioma como limitador pode ser um pouco minimizada tendo em vista a atenção dada aos dois livros, escritos em romeno, que Luca publicou pela Editura Negatia Negatiei Negrata. No caso de Luca (e de Naum), é possível culpar esse esquecimento pelo fato das primeiras obras de ambos serem de difícil acesso. No caso de Dolfi Trost, o esquecimento não pode ser atribuído a questões de idioma uma vez que ele usou (como Luca) o francês como idioma predominante em sua escrita durante e após o período de atividade do grupo surrealista romeno. Atualmente, ele é em geral mais reconhecido por uma ou duas técnicas artísticas por ele inventadas do que pela sua obra escrita (com exceção de uma coautoria com Luca no livro Dialectique de la Dialectique), o que é injusto tendo em vista a excelência e a importância daquilo que ele produziu, especialmente o material publicado pela Les Éditions de L'Oubli e Infra Noir. Uma razão possível estaria no fato que Trost não possuía um bom nível de contato com os círculos parisienses que outros, como Luca, dispunham. Contudo, essa explicação seria relevante até certo ponto, especialmente porque Trost chegou a publicar dois livros no início dos anos 1950 em Paris (Visible et invisible e Librement mécanique). Penso que uma razão mais certeira da obscuridade de Trost se situe na decisão do autor em migrar para os EUA e abandonar a literatura (ao contrário de Luca, que continuou escrevendo e publicando em Paris) e no fato de suas primeiras obras serem tão raras. Acredito que essa obscuridade seria menor se um extraordinário livro que ele planejava lançar com Luca, mencionado em Letters from Oblivion, não tivesse "desaparecido" [nota: trata-se de L'Invisibilite d'une reve]. O esquecimento de Paul Paun e Virgil Teodorescu pode ser atribuído, de maneira mais direta, ao fato de nunca terem sido publicados fora de Bucareste (exceção feita ao último trabalho de Paun, publicado em Israel) embora, novamente, a dificuldade em encontrar as primeiras obras tenha alguma relevância aqui. Teodorescu, contudo, não pode ser considerado um estranho dentro dos limites da Romênia uma vez que decidiu permanecer em Bucareste. Minha esperança sincera é que esses três esquecidos surrealistas romenos possam ser descobertos e traduzidos para outros idiomas, uma vez que suas poderosas obras constituem importante contribuição ao movimento surrealista internacional. Indiscutivelmente, Trost, Paun e Teodorescu escreveram ao menos um trabalho que pode ser visto como uma das obras-primas da literatura de vanguarda romena na primeira metade do século anterior. Algo em seu livro me trouxe à mente a narrativa de um filme documentário – registro de fatos, mas também trabalho meditado de construção formal. Essa forma faz com que seu trabalho destoe da linha seguida pela Ex Occidente/Zagava Press, centrada na ficção, embora mantenha curiosamente uma relação íntima com outras obras igualmente únicas do catálogo de ambas editoras (penso especialmente em At Dusk, de Mark Valentine, com seus níveis de ficção poética e realidade histórica ao evocar a vida de poetas da vanguarda do século XX). Pretende retomar essa abordagem em livros futuros? Quais seriam, nesses casos, os temas possíveis? Ou tentará, talvez, a ficção? Sim, de fato pretendo utilizar novamente essa abordagem, mas de formas variadas. Atualmente, escrevo um ensaio fictício incorporando os trabalhos de ficção e teoria de Maurice Blanchot por conta de uma futura homenagem a esse autor, que será editada por Dan Ghetu e Dan Watt pela Zagava/Ex Occidente. Também estou nos estágios iniciais de desenvolvimento de alguns projetos mais ambiciosos. Um deles envolve o tema da fertilização cruzada das vanguardas e dos movimentos surrealistas na Europa e América Latina. Nesse trabalho, cada capítulo será dedicado a um autor latino-americano ou europeu que esteve fisicamente localizado, de alguma forma, entre esses dois continentes. Será uma pesquisa histórica transcontinental analítica, mas com relatos ficcionais. Conforme o livro avança, o nível de obscuridade do autor analisada também será maior. O mais importante e complexo livro ao qual me dedico será um segundo volume, dedicado aos desenvolvimentos ou extrapolação do que está em Letters from Oblivion. Esse livro consistirá, como conceito central, de uma singular e única abordagem da obra de Fernando Pessoa. O título, Fictions from Oblivion. Abaixo, gravura "entóptica" (ou seja, feita a partir das irregularidades de cor presentes na folha de papel) de Dolfi Trost, que iliustra seu livro Vision dans le Cristal, Oniromancie obsessionelle (Et neuf graphomanies entoptiques), publicado pela Les Éditions de L'Oublie em 1945. Em 2007, a Romênia ingressou na Comunidade Europeia. De certa forma, a afirmação anterior, verídica e correta, encarna uma dessas curiosas ironias da modernidade pois a Romênia sempre foi algo como uma nação fora do centro mais óbvio de qualquer que seja a Civilização, notadamente a órbita do Ocidente. E isso começa com o idioma, cuja estrutura central derivada do latim é cercada com vocabulário e outros elementos eslavos além de ressonâncias do húngaro – que muitos romenos diriam, não sem alguma razão, serem bárbaras. Talvez por isso as vanguardas das primeiras décadas do século XX, quando aportaram nesse distante país, foram apropriadas como novas formas de descentramento – surgiam novos idiomas, novas possibilidades de vida e novos continentes na pitoresca e bela Bucareste. Com a finalidade de explorar esse novo universo que se descortinava no seio de um cotidiano marcado pela disputa (posteriormente opressão) política mais feroz surgia a Les Éditions de L'Oubli, cujo curto período de atividade (1940-44) foi marcado pelo lançamento de obras pioneiras em edições ousadas – autores vinculados diretamente ao surrealismo romeno, como Gherasim Luca, Dolfi Trost e Virgil Teodorescu.
Vejamos um exemplo: o primeiro livro lançado pela Les Éditions cujo título era Poem in Leoparda, escrito por Virgil Teodorescu com ilustrações de Dolfi Trost (que utilizou a técnica por ele inventada "stilamancie", que produzia imagens semelhantes àquelas empregadas nos testes de Rorschach). Nesse poema, os dois autores/ilustradores descortinam um território selvagem e peninsular, habitado por animais fantásticos e por miragens complexas. Esse território possui, além de uma cartografia, um idioma – o poema se divide, bilíngue, entre o idioma fonético inventado para os leopardos, pleno de possibilidades polissêmicas, e o romeno. Desse livro único pouco restou – a página de rosto, alguns trechos do poema e duas ilustrações. Tal destino melancólico acomete parte dos títulos produzidos pela Les Éditions, que nos faz projetar esses livros perdidos no campo livre e amplo do imaginário, onde ressurgem como objetos de sonho/pesadelo, utopias e evocadas pelo registro histórico que, paradoxalmente, alimenta o mito e engana o esquecimento. De fato, o registro histórico, quando articulado com engenho e arte, permite ao leitor o estabelecimento de teias relacionais complexas, que tornam o balanço entre mito e história ainda mais denso. Assim, pode-se afirmar que o Poem in Leoparda de Teodorescu/Trost se associa, por sua poesia de invenção fonética e construção imaginária no estilo Imago Mundi, aos dadaístas e surrealistas; mas também não é absurdo imaginá-lo próximo de formas poético-narrativas distantes e diferentes como Los San Signos do argentino Xul Solar, outro vanguardista à margem que inventou um idioma. Nesse sentido, Letters from Oblivion, de Andrew Condous (autor tão misterioso quanto a editora que resgata do passado) surge como uma leitura poderosa. Ferramenta de resgate histórico e romance esotérico que refaz parte da trajetória desses livros míticos. Assim, acompanhamos o destino de cada um dos livros publicados e também daqueles que existiram somente em projeto, jamais concretizados, ao mesmo tempo que Condous reconstrói tramas, criações poéticas e concepções que alimentavam cada um deles. Os discursos da memória, da história e da ficção se cruzam mas não se dissolvem, mantendo certa autonomia. Não há um mergulho no quadro histórico do surrealismo ou das vanguardas em geral. Também não está presente uma análise sócio-política da Romênia no período da Segunda Guerra Mundil, quando Les Éditions esteve ativa. O eixo central de Coundous é a editora e seus livros, desviando desse foco apenas ao final, no longo e elegíaco capítulo cujo título é "The Outlaw" (o fora-da-lei) e que trata do destino de Victor Valeriu Martinescu, aliás Dalombra ("a sombra"), aliás Marele Contemporan ("Grande Contemporâneo"), aliás Haiduc (o "fora-da-lei") aliás VVM, importante articulador da vanguarda de Bucareste ainda nos anos 1930-40, além de impulsionador da própria Les Éditions. Poeta e ilustrador/pintor cuja obra se espalhou por periódicos diversos (inclusive os pertencentes ao grupo fascista romeno Guarda de Ferro, o que teve consequências terríveis no destino do autor após 1947), publicou apenas um romance e um livro de poemas por ele ilustrado. Diferente do que acontecera com outros intelectuais, escritores e artistas romenos que conseguiram escapar à opressão stalinista que se instaurava, Martinescu foi preso em 1947 na estação de Covasna, a primeira parada saindo de Bucareste. Após intenso interrogatório, foi enviado para a prisão de Jilava, onde passou algum tempo confinado na infame Câmera Zero. Nessa cela, cujo nome parece saído de uma narrativa de ficção científica pulp, havia apenas camas e um poderoso holofote central que impedia o estranho conforto fornecido pela escuridão. Condenado à morte, foi perdoado e solto em 1964. Viveu então trinta anos em Bucareste, comunicando-se com seus amigos do grupo surrealista e talvez escrevendo textos que se perderam ou seguem, ignorados, em algum local secreto. Sua morte, em 1994, permanece um mistério. Nos parece compreensível a escolha do capítulo final biográfico para um livro a respeito de uma editora cuja produção, hoje, é quase invisível – Martinescu, de certa forma, materializou em vida o destino dos livros da Les Éditions, um destino que permanece aberto para toda e qualquer obra de arte do mundo, também para cada um de nós. A edição de Letters from Oblivion é muito bem cuidada: a sobrecapa roxa apresenta o título, autor e demais informações do livro, que é de tecido igualmente roxo mas sem nenhuma marcação ou informação; objeto misterioso sem sua cobertura de proteção. A arte interna – fotografias, ilustrações –, bem como a tipografia, é primorosa; o usual das edições de Dan Ghetu e Jonas Ploeger, que retomam em pleno século XXI o nome e a tradição da Les Éditions de L'Oubli. Os dois editores (de Bucareste e Dusseldorf) dedicam-se igualmente ao pouco usual, poético, complexo, contraditório e descentrado. Esperemos que essa parceria seja bem mais longa e menos dolorosa que a primeira encarnação. |
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