Em 1975, Jorge Luis Borges publicaria um conto que seria materialização do sonho de todo o bibliófilo: “El Libro de Arena”, o livro cujas páginas são infinitas (ou ao menos incontáveis) como os grãos de areia que existem em uma praia. O protagonista do conto adquire o fantástico volume de um vendedor de Bíblias escocês que surge em sua casa mas acaba prisioneiro do “livro monstruoso” e “diabólico”. Objeto impossível e fascinante – alimentou mesmo uma releitura apocalíptica de Rhys Hughes, em um conto de sua Nova história universal da infâmia – símbolo daquilo que desejamos e que alimenta nossos piores pesadelos, que apenas podemos abandonar em um local onde se perca definitivamente, assombrando-nos assim apenas como uma provável ilusão dos sentidos. É curioso que o volume monstruoso de Borges não é incomum: a capa demonstrava que o livro passara por muitas mãos, o idioma no qual fora escrito talvez fosse estranho, mas a tipografia era medíocre, as páginas estavam gastas, as ilustrações eram torpes e de feitio mediano.
De certa forma, Borges era sensível a um fenômeno curioso: muitos livros cotidianos, de forma limitada, reproduzem a sensação do livro de areia graças a curiosas disposições na Natureza. O tempo, por exemplo, pode desgastar um volume de tal forma que as páginas, antes vistosas, surgem quebradiças em nossos espantados dedos (que talvez não tocaram essas páginas por alguns anos). Já a memória produz o efeito de espanto diante de um livro que imaginamos conhecer (e que nos surpreende, o que indica que provavelmente não o conhecíamos) quando passagens que temos a certeza estarem em tal e qual página desaparecem, quando novas ilustrações ou sentidos surgem mesmo que de uma leitura breve, superficial. Por outro lado, certos formatos sempre buscaram emular, de forma evidentemente imperfeita, a infinitude: os almanaques e as coletâneas, que possibilitavam a (re)descoberta, o frisson inesperado na leitura do volume. Mas nenhuma dessas formas de aproximação ao “livro de areia”, objeto não natural mas possível (como tantos objetos não naturais) é como esse estranho artefato publicado pela Zagava/Ex Occidente Press: Infra-Noir, compêndio multifacetado e único, o mais próximo possível do livro de areia. O título, que poderíamos traduzir como “infranegro”, parece aludir aos manifestos e séries de opúsculos do grupo surrealista romeno, que congregou nos anos 1940 nomes como Gherasim Luca, Dolfi Trost, Paul Păun e outros. Essa relação com o rico e complexo veio do surrealismo romeno é acentuada pelo trecho do poema de Virgil Teodorescu (ilustrado por stilamancies de Dolfi Trost), Poem in Leoparda (1940), que ilustra a sobrecapa, escrito no idioma dos leopardos, ferocidade fonética inventada por Teodorescu como “idioma” de seu poema, moldada a partir – como destaca Andrew Condous – das experiências dadaístas de Tristan Tzara em torno dos chamados “poemas simultâneos” e do “letrismo” de Isidore Isou. O original do estranho poema de Teodorescu e Trost foi confiscado pelas autoridades romenas em 1959 e imaginava-se destruído. De fato estava, mas não inteiramente: quatro páginas foram secretamente guardadas pela esposa de Virgil, Helene – nessas páginas, podemos ler o trecho que está na capa de Infra-Noir: “Sobroe vinwid tidiv toe”. A linguagem estranhamente irreal e poderosamente sugestiva do poema aparece impresso em letras de tipografia impecável, negro sobre o negro da sobrecapa, um verso primoroso em uma língua desconhecida da humanidade, mas por ela percebida. Na lombada, a indicação evidente de negrura, obscuridade, clandestinidade, ameaça de esquecimento: “Infra-Noir”. Mergulhamos em um universo negro, inacreditavelmente significativo e complexo, mas apesar de tudo ainda estamos na sobrecapa que, a despeito de sua imponência, não é preparação suficiente para o impacto do conteúdo do volume: são seis livros completos, uma gama variada de poesia, prosa poética e ficção em diversos formatos e tipografia, cada um deles acabamento luxuoso que inclui uma ampla gama de ilustrações e fotografia. A abertura de Infra-Noir é “Smoke”, livro de poemas de Mark Valentine. Um amplo espectro da composição poética da vanguarda do início do século XX – notadamente o surrealismo, o hermetismo, o dadaísmo, o expressionismo – informa os poemas de “Smoke” que, por outro lado, possuem uma dicção muito própria. Os focos mais evidentes da poesia de Valentine são o exílio e a dispersão, fatos singulares cuja ocorrência se dá tanto na dimensão do cotidiano e quanto do exótico, a projeção constante de outros universos no universo mesmo que percebemos usualmente. Imagens de fontes, objetos de mármore, templos obscuros, espelhos, coisas perdidas ou esquecidas – esse á a imagerie desenvolvida por Valentine em poemas soberbos que em alguns casos transformam-se em pequenas obras-primas da fusão entre poesia e ficção fantástica como em “hark to the rooks” e “a note about hats”, poemas sobre a perda da identidade pela pressão da Natureza e dos sistemas políticos. O segundo livro é “Inflammable Materials”, escrito pelo dinamarquês Thomas Strømsholt, cuja abordagem também é poética. Mas distingue-se do experimento de Mark Valentine por trabalhar uma outra tradição poética: o pequeno poema em prosa, construção que atingiu um grau de sofisticação apreciável nas mãos de autores como Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Oscar Wilde e Franz Kafka. Strømsholt ataca o gênero com perspicácia, astúcia, entrega e inteligência, trabalhando o sentido alegórico das pequenas construções narrativas com o cinzel da multiplicação dos sentidos – pois é o mistério da alegoria aberta o que alimenta o pequeno poema em prosa, efeito obtido com muita eficácia por Strømsholt notadamente no poema “The Glowing Heart”, gema wildeana na qual um inquisidor pagão – filósofo e poeta – confronta uma santa cristã, com resultados reveladores para ambos e, claro, para o leitor. O terceiro livro da amplitude que é Infra-Noir, “The Unfolding Map”, é uma pequena novela de John Howard. Trata-se de uma obra-prima da mistura que Howard costuma realizar entre realidade história, projeção fantástica e especulação filosófica. Pois a concisão e a precisão, aqui, aproxima essa refinada maravilha ficcional dos trabalhos de um H. G. Wells, de um Henry James ou de um William Gehardie. Na trama, acompanhamos as reuniões de um grupo, encabeçado por um líder nazista escalado por Berlim, em negociações a respeito das fronteiras, sempre móveis, entre Romênia e Hungria nos anos 1940. As discussões ocorrem em um fictício e refinado restaurante, localizado em fictícia localidade na Romênia – mas cada um desses elementos poderia ser real. Esse jogo de aparências está no núcleo da trama e de seu acontecimento climático, indefinível entre o sobrenatural, o mágico, o possível. O quarto livro fecha a metade poética de Infra-Noir: “Soot”, de Dan Watt, com ilustrações de Andrzej Welminski. Watt construiu uma prosa alimentada pela estranha confluência entre a humanidade e seus pequenos aparatos mecânicos, feitos para reconstruir e recortar obsessivamente uma realidade muitas vezes cinzenta, pétrea, sufocante. Esse jogo de enganos entre formas captadas pelos sentidos é exposto em seu âmago nos poemas de Watt e nas ilustrações de Welminski. Assim, temos personagens que buscam adivinhar estranhezas carregadas por outros, um circo que inverte o papel entre espectador e espetáculo, livros raros para rituais inabituais, transformações místicas. O quinto livro é “The Salamander Angel”, de Damian Murphy, outra novela com um curiosa estrutura de múltiplos personagens e pontos de vista. Trata-se de um formato bastante adequado, tendo em vista o fato da trama apresentar as múltiplas visões de um único evento apocalíptico, embora talvez invisível. A prosa da novela de Murphy segue uma formato obscuro e mesmo ocultista, com suas referências a rituais e práticas teosóficas, herméticas. As entrelaçadas visões dos personagens atingem um clímax imagético espantoso, inacreditável, com seus anjos apocalípticos transmutados de estátuas para um fragmento de magnetita, símbolo que serve como um tipo de unificador imagético. O último livro é mais uma novela, “The Slaves of Paradise”, de Colin Insole. A ficção de Insole se passa durante os anos de ocupação nazista da França, com essa estranha e ambígua mistura da vida cotidiana que seguia e as necessidades impostas pela colaboração e pela resistência. Esse universo, na trama, é o do cinema, que não poderia ser mais adequado para ilustrar as muitas ambiguidades da França sob ocupação nazista. A questão da traição involuntário e do logro deliberado – de uma perversidade acachapante – são os leitmotive da novela, com ressonâncias cinematográficas sutis: detectei referências aos filmes A sétima cruz (Seventh Cross, 1944) de Fred Zinnemann e O Boulevard do Crime (Les enfants du paradis, 1945) de Marcel Carné. Obra que não limita à homenagem de suas ricas fontes culturais e históricas, “The Slaves of Paradise” é outra gema preciosa dentro da vastidão de Infra-Noir. Infra-Noir segue a tradição hermética e sombria da fonte de seu título, a obra dos surrealistas romenos – em grande parte, conscientemente obscura ou perdida, uma vez que os membros dos círculos vanguardistas na Romênia utilizaram a obscuridade, a clandestinidade, mesmo o esquecimento como armas de resistência ao fascismo, nazismo e stalinismo. Foi uma estratégia arriscada, que parece também destinada ao ocaso em sua nova encarnação: um verdadeiro evento da literatura nessa segunda década do século XXI, a publicação das obras que estão congregadas em Infra-Noir, corre o risco de não passar das notas de rodapé de um ou outro veículo da mídia, voltada usualmente para a narração das pequenas e grandes catástrofes da Humanidade. Mas não é o que poderíamos esperar de algo tão monstruoso e tão magnificamente belo quanto um livro de areia?
0 Comments
Leave a Reply. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
Categories
All
|