A velha máxima do Eclesiastes 1:9, “nihil novi sub sole” (Não há nada de novo sob o Sol), parece materializar de modo geral, uma espécie de regra, impiedosa, estabelecida, inflexível como o aço. Mas o fato é que a inovação, o novum não precisa surgir de uma alteração brutal, de uma revolução em termos absolutos, totais. Há modificações espantosas que surgem de pequenas nuances, manipuladas com destreza, habilidade, sensibilidade. Quando diante desse tipo de novidade, em uma novela, romance, poema ou filme, sentimos esse arrepio benfazejo despertado pelas obras-primas – algo que sentimos tão logo contemplamos esse “FIN” cinematográfico, que fecha o mais novo livro de John Howard, Visit of a Ghost. O novum dessa breve (pouco mais de 35 páginas) narrativa de Howard surge inicialmente de dois aspectos relacionados diretamente com a trama. O primeiro deles, já uma característica conhecida daqueles que acompanham esse extraordinário autor, é a localização: a cidade imaginária de Steaua de Munte. Trata-se de um triunfo da imaginação de Howard, obtido através do arranjo econômico de elementos aparentemente triviais. O mapa imaginário da ficção é imenso, diversificado, desde as lendas de Preste João a Jonathan Swift, de William Faulkner a Gabriel García Márquez. Mas Steaua de Munte é uma paisagem familiar construída pacientemente, seus elementos mínimos em conjunção com outros muito mais amplos, dando à totalidade uma figuração fantástica, quase de realidade alternativa. Nesse sentido, John Howard parece ter em mente um trecho do poema “Juan López y John Ward”, de Jorge Luis Borges: “El planeta había sido parcelado en distintos países, cada uno provisto de lealtades, de queridas memorias, de un pasado sin duda heroico, de derechos, de agravios, de una mitología peculiar, de próceres de bronce, de aniversarios, de demagogos y de símbolos. Esa división, cara a los catógrafos, auspiciaba las guerras.” O segundo aspecto, nesse sentido, surge logo no título: a ideia de fantasma. Trata-se de um elemento fantástico tão empregado em tantas formas de narrativa diferenciadas que sua existência torna-se praticamente irrisória – o leitor, diante dessa palavra, inicia o processo mental de acomodação desse conceito em alguma das inúmeras possibilidades já conhecidas e compartilhadas no imenso acervo de significados disponíveis, reconhecidos, catalogados. Mas aqui o fantasma desdobra-se, englobando aspectos de aparência simples, mas que estão distantes de certa singeleza inocente. O encontro desses dois fantasmas é mantido em boa parte da trama como um evento potencial, algo que ocasiona um extraordinário quid pro quo cuja complexidade surge de uma escalada de incompreensão múltiplo, algo construído de forma simples mas natural, como tantos outros equívocos cotidianos. Quando esses dois fantasmas finalmente convergem, em um evento particularmente extraordinário, tal encontro climático revela o que talvez seja o ponto crítico da narrativa, em termos temáticos: a descoberta de uma outra Europa, talvez inviável nos dias de hoje, talvez inviável desde sempre, mais aberta ao olhar e à presença do Outro. Nesse sentido, a história de John Howard trouxe à minha mente um ensaio de Ezra Pound entitulado “The Passport Nuissance”, publicado no The Nation a 30 de novembro de 1927. Nesse breve ensaio, Pound vitupera contra a formação de uma burocracia nova que, após a Primeira Guerra Mundial, tornava essa atividade desinteressada que é viajar mais e mais complicada. Nesse mesmo espírito, um dos personagens afirma (e esse é o dístico que aparece na parte posterior da sobrecapa) "My new book will be called Around Europe", ou seja, "Meu novo livro vai se chamar A Europa ao Redor". Trata-se de uma outra Europa, potencialmente acolhedora embora cercada das usuais nuvens tempestuosas da guerra, da intolerância. Mas, talvez, esse seja apenas um sentido possível, uma leitura de muitas disponíveis. Fisicamente, o livro é extraordinário por sua unidade, realização aliás usual da editora Ex Occidente/Mount Abraxas. A tipografia equilibrada, a opção pela fotografia como elemento significativo, mesmo o uso desse recurso cinematográfico inesperado, o “FIN” ao final da obra. Aliás, o uso de recursos fotográficos, aliados com formatações inteligentes de paginação, estabeleceu efeitos únicos, cinematográficos. Pois, de fato, trata-se de uma história que poderia estar nas telas do cinema, como A Condessa Descalça (de Joseph L. Mankiewicz), A Última Ordem (de Josef von Sternberg) ou Grilhões do Passado (de Orson Welles).
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Alguns livros possuem um impacto todo especial em sua existência mesma, seu *ser no mundo*; por não possuírem uma apresentação padronizada, uma estrutura exterior convencional, tornam-se objetos de fascínio antes mesmo de serem abertos. Alguns apresentam uma capa estranha, chocante ou extraordinária, estando nessa imagem externa sua fonte de magnetismo mais evidente e concreta. Assim, a tradução para o francês do romance de J. G. Ballard The Atrocity Exhibition (1970), feita por François Rivière e publicada em 1976 pela Editions Champ Libre, com o título La Foire aux Atrocités, pela coleção Chute Libre (queda-livre) – apresenta uma dessas capas extraordinariamente marcantes. Trata-se de uma espécie de retrato, em forma de ilustração cuja autoria é desconhecida, na qual temos um rosto (feminino, provavelmente) obliterado por venda e mordaça. As cores da imagem (o vermelho vão fundo, o verde, o marrom claro da pele, o negro que cria certo contraste) são poderosamente evocativas, embora a imagem em si tenha pouco a ver com o conteúdo do livro. Outra forma, mais complexa, de um livro expressar sua potência em si mesmo é pelo seu volume, a maneira como sua estrutura externa se apresenta ao leitor – nesse sentido, as recentes coletâneas Booklore e The Whore is This Temple são imponentes de forma peculiar. A primeira ao evocar a multiplicidade de uma biblioteca por seu conflito entre formato e conteúdo; a segunda, por ser uma espécie de objeto impossível, um tipo de grimório contemporâneo embora seja, de fato, uma coletânea de criações poéticas e narrativas. Astronautilia está próximo dessas duas tendências, mas de uma forma muito própria, pois seu impacto acontece em ondas sucessivas, que jogam o leitor de um sobressalto aparentemente superado a outro., culminando em um impacto final muito próprio e decisivo. Em sua sobrecapa, de um forte tom azul, temos uma ilustração sugestiva de Václav Pazourek como a primeira imagem que confrontamos, a capa de fato: trata-se de um retrato, de perfil, bastante colorido (o estilo sugere um expressionismo vagamente primitivista) do que aparenta ser um guerreiro do passado, provavelmente um hoplita da Grécia Antiga. É possível identificar na imagem o escudo, o elmo, a lança que esse soldado ostenta. Mas a ilustração, ao mesmo tempo, escapa dessa determinação por um traço de futurismo tecnológico que a atravessa – o espaço branco entre o rosto e o fundo da imagem sugerem um capacete de astronauta, adaptado para uso no espaço sideral; os elaborados arabescos no elmo sugerem uma civilização e uma história que não são inteiramente humanas; o olho do hoplita, por fim, repuxado e multiplicado (seriam lentes? Ou um olho alienígena, de fato?) por efeito do traço empregado pelo ilustrador garante a persistência do efeito de estranheza. Essa imagem extraordinária serve de cobertura para a capa dura da edição, bem mais sóbria – azul escuro suavemente marmorizado, com a parte em grego do título gravada em tons prateados enquanto a parte tcheca está em baixo relevo –, que remete a coleções como as traduções de obras da Antiguidade publicadas por editoras como a Éditions Les Belles Lettres. Mas esse impacto provocado pela rica imagem da sobrecapa, pela solidez da capa e mesmo pelo volume desse livro razoavelmente denso constituem o primeiro momento, a preparação para o impacto ainda maior com aquilo que poderíamos denominar a descoberta linguística de seu conteúdo. Pois, logo nas primeiras páginas, o leitor está diante de uma confusio linguarum de proporções consideráveis: há textos em inglês, latim, tcheco – mas tudo isso é apenas a porta de entrada para o poema, milhares de hexâmetros em glorioso grego homérico escritos à mão. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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