O poeta William Blake acreditava que o Criador, ao forjar nosso universo, trabalhou como um impressor ao confeccionar um livro. A Natureza, o Homem e o Cosmo surgem, dentro da poesia blakeana, mediados pelo ruído tenso das prensas, pela escolha frenética dos tipos móveis, pelas chapas de cobre das matrizes crispadas devido à ação do ácido, pelas tintas que correm na superfície irregular e caprichosa do papel. Segundo pesquisadores como Joseph Viscomi (em seus estudos sobre as técnicas de gravura de William Blake) ou Manuel Portella (na introdução para a edição portuguesa Sete Livros Iluminados do poeta inglês), Blake, ao contrário do que se acreditava, não trabalhava com a transferência de um rascunho/modelo executado em papel, mas diretamente nas placas de cobre que seriam impressas, harmonizando texto e ilustração, conjugando invenção (invenire) e execução (facire) em um gesto criador único, texto e imagem simultaneamente marcados na superfície bidimensional da chapa de cobre que logo ganharia sua configuração definitiva em papel, tão rica quanto uma galáxia.
O poeta, assim, mimetizava o criador ao trabalhar em sua oficina de impressão, forjando mitos e projetando criaturas novas em fluxos criadores que não se esgotavam na estreita mancha de impressão da página, mas que explodiam em possibilidades novas que migravam da palavra para a imagem e vice-versa. A concepção demiúrgica de Blake de universo-livro renovou as concepções passadas da Criação codificada em um livro especial como serviria de inspiração para novas atualizações dessa imagem definitiva, como a de Mallarmé, já durante o simbolismo, que afirmava que o mundo existia apenas para terminar como um livro. Nesse sentido, o livro Segredos, de Luiz Nazario, também nos oferece universos que surgem e se desintegram ao sabor das tempestades de Mito e História. Poder-se-ia afirmar que o autor de Segredos compartilha algo mais com Blake além do gosto pelo universo gráfico, pela mística do apocalipse, pela ironia, pelo discurso múltiplo – Nazario é um poeta bissexto, dividindo seu tempo entre a reflexão filosófica, a crítica cinematográfica e a pesquisa histórica. Da mesma forma William Blake, gravurista de profissão que descobriu no labor poético uma expressão mais complexa das visões que continuamente o assaltavam. O destino do poeta eventual é difícil: por não ser um funcionário da palavra, o artífice em tempo integral que trabalha burilando seus versos, pode ser visto como superficial, inconsistente, frívolo. Pasolini sofreu o mesmo destino, em sentido inverso: sempre que escrevia algo que não fosse poesia, era ridicularizado pelos experts de plantão, que viam no denso e complexo pensamento pasoliniano algo como a intromissão intolerável de um diletante na sociedade secreta dos especialistas. Talvez por isso, Nazario tenha optado em seu début poético pela fusão discursiva, pela instabilidade do formato poético, oscilando entre prosa, poesia, narrativa, ensaio, aforismo, pensamentos pascalinos, raccord cinematográfico. Pois o território de Nazario é ambíguo e a forma poética, terreno fluído para as mais diversas experiências. Tal instabilidade, longe de ser o signo da inconsistência, indica antes uma infinita angústia existencial que ultrapassa o véu seguro e tranquilo do “eu poético”, atingindo a intensidade da percepção do sofrimento humano que unifica nosso destino em uma ruinosa continuidade, da criação à aniquilação. De fato, o livro de Luiz Nazario principia com um texto sobre a criação: imagens da barbárie histórica, continuamente recombinadas, fornecem a visão vertiginosa que a mentalidade mítica nos garante através da repetição da destrutividade em ciclos crescentes, que tendem ao absoluto. Mas o discurso apocalíptico de Nazario é ardiloso, pois não se apresenta como uma narrativa de origem, um poema de evocação tenebrosa, mas antes como um texto programático, o “Manifesto dos cogumelos gigantes” –segundo o autor, uma reescritura do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, atualizado à luz de autores que souberam dimensionar o apocalipse: Wells, Orwell, Ionesco. Na única resenha escrita sobre Segredos, a autora, Susana Scramim, disserta a respeito dessa natureza demiúrgica da poesia de Nazario, que surge resplandecente logo nesse primeiro poema – percebendo o quanto há de dantesco nas paisagens nazarianas. Contudo, o foco de Scramim se perde na superfície dos poemas, imaginando serem os EUA o grande artífice dos concêntricos círculos infernais da modernidade, alvo da poesia (da prosa, da ensaística e da tratadística) de Luiz Nazario. Mas ele não pretende ser mais um a vilanizar o “grande satã” – como dizia Aiatolá Khomeini – uma vez que a poesia que vemos em Segredos é vibrantemente cinematográfica, em um sentido profundamente hollywoodiano. O irônico “O fim da humanidade” parece evocar personagens e cenas de Hitchcock, Chaplin, Welles. Enquanto “A orquestra minúscula” é um pequeno e perfeito conto fantástico em forma de poesia, uma animação que se desabrocha através de versos e que poderia ter sido visualmente concebida por Walt Disney ou por Chuck Jones. As reminiscências de cidades como Weimar, Roma e Karnack aproximam Nazario das percepções da chamada “psico-geografia” dos situacionistas (embora bem mais interessante e complexa), ou seja, são aproximações e novos sentidos a partir de coordenadas geográficas bem conhecidas. Já a série de poemas “As ruínas da modernidade” – concebida originalmente para integrar um trabalho reflexivo multimídia, espécie de arqueologia desse fenômeno tenebroso da modernidade que é o terrorismo, projeto vetado à época pelo filósofo de esquerda que organizava o evento – sintetiza as diversas tendências e percepções poéticas do livro em uma sequência vertiginosa de horror e caos, que nós (espectadores e cúmplices) optamos por ocultar empregando o conforto malsão da cegueira, que denominamos esperança. Diante da pavorosa ascensão de grupos como o ISIS e seu califado medieval-tecnológico, a percepção de Nazario, gestada ainda no século passado, surge espantosamente atual. Poderíamos, na verdade, arriscar um outro paralelo entre Segredos e a produção de William Blake: a beleza das ilustrações, a natureza manual da composição tipográfica, o elemento visual e gráfico cuidadosamente pensado, a forma elaborada com que as imagens dialogam com o texto. Oswaldo Medeiros, artista já falecido, foi o responsável por tal primor em termos de projeto gráfico. Logo no colófon, somos informados que o projeto surgiu de uma bela proposta de Medeiros concretizada no projeto Memória Gráfica, responsável pela edição de Segredos: a reabilitação de menores infratores, que teriam contato com a estranha, simultaneamente moderna e ancestral, arte da tipografia/impressão. Ignoro se o projeto gerou outros frutos, mas creio que um livro como Segredos, de um autor como Luiz Nazario, materializa bem a proposta do projeto através de paradoxos sobre a modernidade. Pois a construção e a manutenção da Liberdade, refletida na criação artística, pode ser dolorosa, imaginativa e cruel, mas sempre será imprescindível.
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O conto "La escritura del dios", de Jorge Luis Borges (publicado na coletânea El Aleph de 1949) apresenta uma trama intrigante: um sacerdote (talvez asteca) está aprisionado em uma escura e tenebrosa masmorra, com apenas um momento de luz diária, quando a recebe refeição e água. O único outro ser na prisão é um jaguar (depois, chamado de tigre), que divide com o sacerdote o exíguo, escuro e miserável espaço. O sacerdote, mergulhado no desespero e no tédio, descobre que o padrão de manchas na pele do felino não é aleatório, mas constitui uma mensagem cifrada do deus (como nos diz o título, embora o protagonista uma vez mencione "deuses") para ele, o escolhido. Uma mensagem de poder, vingança e destruição, uma arma de destruição em massa que o sacerdote, contudo, não aciona simplesmente porque, após a descoberta do absoluto, as contingências humanas lhe pareçam distantes, incompreensíveis, frívolas. A mensagem do deus, sabemos pela trama, é uma palavra total, que engloba o universo, o que veio antes e o que está depois. Mas, agora, imaginemos que esse deus resolvesse escrever uma enciclopédia, um volume que engloba conhecimentos de várias disciplinas em uma totalidade sintética. É bem provável que essa enciclopédia seguisse algumas regras do gênero: talvez, uma divisão didática entre técnica, geografia, fauna, flora, história. Embora tal enciclopédia incluísse elementos de nosso mundo – afinal, também parte da criação desse deus –, esses elementos não apareceriam dentro do espectro de nossa compreensão usual. Estariam transfigurados, talvez inclusive pelo humor do tal deus – que poderia ser, em todo caso, sinistro. Embora tenhamos feito um exercício especulativo ocioso a partir de uma trama de Jorge Luis Borges, a verdade é que essa enciclopédia que projetamos existe e se chama Codex Seraphinianus.
Originalmente um manuscrito composto – tanto a complexa e caprichada pictografia dos caracteres alienígenas, inteiramente inventados, quanto as ilustrações – pelo arquiteto italiano Luigi Serafini entre 1976 e 1978, foi publicado em 1981 pela luxuosa e prestigiada Franco Maria Ricci em dois volumes, com introdução de Italo Calvino. A fonte declarada do autor foi o conhecido e enigmático manuscrito Voynich, códice do século XV em estranho alfabeto, nunca decifrado. O ensaísta Alberto Manguel, que era editor da FMR no início dos anos 1980, foi quem recebeu o volumoso manuscrito pelo correio. Em seu livro Uma história da leitura, Manguel narra seu encontro com esse estranho manuscrito, espécie de enciclopédia de alienígenas, qualificando a obra de "um dos exemplos mais curiosos de livro ilustrado" disponível, pois criado através de "caracteres e imagens inteiramente inventados", obriga o leitor a um processo de decodificação do texto sem o auxílio de uma língua natural formalizada. Trata-se de uma espécie de convite ao leitor para que transforme sua leitura em um processo dinâmico de interpretação de um novo, selvagem e palpitante universo. Assim, os elementos do livro não nos são inteiramente outros: reconhecemos as figuras humanas (ou pedaços dessas figuras, seccionados e realizando funções novas: olhos que se transformam em peixes, por exemplo), animais, vegetais, tecnologias (há automóveis com partes derretidas ou feitas de materiais incomuns), etc. Também é possível perceber que o estranho alfabeto possui algo próximo de um processo de organização comum às linguagens humanas: orações, sentenças, títulos destacados hierarquicamente, etc. Contudo, essa percepção não faz a compreensão, a captação ou o estabelecimento do sentido definitivo do texto avançar. Ao contrário, abre mais espaço ao ambíguo. Assim, se podemos localizar alguns aspectos recorrentes nas imagens e mesmo no texto serafiniano – por exemplo, os princípios de fusão e de transformação – logo descobrimos que há outros princípios e que a ironia, que atravessa essas páginas, logo neutraliza uma definição categórica. A Franco Maria Ricci lançou duas edições do livro (em dois volumes e como volume único), ambas esgotadas e com preços astronômicos em sites especializados e sebos mundo afora. As edições posteriores de outras casas editoriais são raras, todas esgotadas, como a da Prestel (Alemanha) ou da Abbeville Press (EUA). A edição mais recente (primeira tiragem saiu em 2006 e a segunda, em 2008) é da Rizzoli de Milão, bem mais barata que o usual para o luxuoso álbum. Serafini, por sua vez, continuou produzindo belíssimos álbuns ilustrados, como Pulcinellopedia (com o pseudônimo de P. Cetrullo) ou uma versão ilustrada de Les Histoires Naturelles de Jules Renard. São edições ainda mais inacessíveis e invisíveis, raros prazeres para bibliófilos ricos. De qualquer forma, é curioso que Codex Seraphinianus tenha ganho status de culto na Internet, com artigos maravilhados em sites e publicações como The Believer ou Dangerous Minds, dada sua curta e limitada história editorial e o tipo desafiador de "leitura" nele proposta. Talvez seja pelo fato de que a leitura dessa estranha enciclopédia, cujo conteúdo é um saber pretensamente universal, antecipe algo da entropia que vemos Internet, cuja superfície caótica infelizmente está longe de possuir o mesmo humor irônico. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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