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Codex Seraphinianus

3/15/2015

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O conto "La escritura del dios", de Jorge Luis Borges (publicado na coletânea El Aleph de 1949) apresenta uma trama intrigante: um sacerdote (talvez asteca) está aprisionado em uma escura e tenebrosa masmorra, com apenas um momento de luz diária, quando a recebe refeição e água. O único outro ser na prisão é um jaguar (depois, chamado de tigre), que divide com o sacerdote o exíguo, escuro e miserável espaço. O sacerdote, mergulhado no desespero e no tédio, descobre que o padrão de manchas na pele do felino não é aleatório, mas constitui uma mensagem cifrada do deus (como nos diz o título, embora o protagonista uma vez mencione "deuses") para ele, o escolhido. Uma mensagem de poder, vingança e destruição, uma arma de destruição em massa que o sacerdote, contudo, não aciona simplesmente porque, após a descoberta do absoluto, as contingências humanas lhe pareçam distantes, incompreensíveis, frívolas. A mensagem do deus, sabemos pela trama, é uma palavra total, que engloba o universo, o que veio antes e o que está depois. Mas, agora, imaginemos que esse deus resolvesse escrever uma enciclopédia, um volume que engloba conhecimentos de várias disciplinas em uma totalidade sintética. É bem provável que essa enciclopédia seguisse algumas regras do gênero: talvez, uma divisão didática entre técnica, geografia, fauna, flora, história. Embora tal enciclopédia incluísse elementos de nosso mundo – afinal, também parte da criação desse deus –, esses elementos não apareceriam dentro do espectro de nossa compreensão usual. Estariam transfigurados, talvez inclusive pelo humor do tal deus – que poderia ser, em todo caso, sinistro. Embora tenhamos feito um exercício especulativo ocioso a partir de uma trama de Jorge Luis Borges, a verdade é que essa enciclopédia que projetamos existe e se chama Codex Seraphinianus.

Originalmente um manuscrito composto – tanto a complexa e caprichada pictografia dos caracteres alienígenas, inteiramente inventados, quanto as ilustrações – pelo arquiteto italiano Luigi Serafini entre 1976 e 1978, foi publicado em 1981 pela luxuosa e prestigiada Franco Maria Ricci em dois volumes, com introdução de Italo Calvino. A fonte declarada do autor foi o conhecido e enigmático manuscrito Voynich, códice do século XV em estranho alfabeto, nunca decifrado. O ensaísta Alberto Manguel, que era editor da FMR no início dos anos 1980, foi quem recebeu o volumoso manuscrito pelo correio. Em seu livro Uma história da leitura, Manguel narra seu encontro com esse estranho manuscrito, espécie de enciclopédia de alienígenas, qualificando a obra de "um dos exemplos mais curiosos de livro ilustrado" disponível, pois criado através de "caracteres e imagens inteiramente inventados", obriga o leitor a um processo de decodificação do texto sem o auxílio de uma língua natural formalizada. Trata-se de uma espécie de convite ao leitor para que transforme sua leitura em um processo dinâmico de interpretação de um novo, selvagem e palpitante universo. Assim, os elementos do livro não nos são inteiramente outros: reconhecemos as figuras humanas (ou pedaços dessas figuras, seccionados e realizando funções novas: olhos que se transformam em peixes, por exemplo), animais, vegetais, tecnologias (há automóveis com partes derretidas ou feitas de materiais incomuns), etc. Também é possível perceber que o estranho alfabeto possui algo próximo de um processo de organização comum às linguagens humanas: orações, sentenças, títulos destacados hierarquicamente, etc. Contudo, essa percepção não faz a compreensão, a captação ou o estabelecimento do sentido definitivo do texto avançar. Ao contrário, abre mais espaço ao ambíguo. Assim, se podemos localizar alguns aspectos recorrentes nas imagens e mesmo no texto serafiniano – por exemplo, os princípios de fusão e de transformação – logo descobrimos que há outros princípios e que a ironia, que atravessa essas páginas, logo neutraliza uma definição categórica. 

A Franco Maria Ricci lançou duas edições do livro (em dois volumes e como volume único), ambas esgotadas e com preços astronômicos em sites especializados e sebos mundo afora. As edições posteriores de outras casas editoriais são raras, todas esgotadas, como a da Prestel (Alemanha) ou da Abbeville Press (EUA). A edição mais recente (primeira tiragem saiu em 2006 e a segunda, em 2008) é da Rizzoli de Milão, bem mais barata que o usual para o luxuoso álbum. Serafini, por sua vez, continuou produzindo belíssimos álbuns ilustrados, como Pulcinellopedia (com o pseudônimo de P. Cetrullo) ou uma versão ilustrada de Les Histoires Naturelles de Jules Renard. São edições ainda mais inacessíveis e invisíveis, raros prazeres para bibliófilos ricos. De qualquer forma, é curioso que Codex Seraphinianus tenha ganho status de culto na Internet, com artigos maravilhados em sites e publicações como The Believer ou Dangerous Minds, dada sua curta e limitada história editorial e o tipo desafiador de "leitura" nele proposta. Talvez seja pelo fato de que a leitura dessa estranha enciclopédia, cujo conteúdo é um saber pretensamente universal, antecipe algo da entropia que vemos Internet, cuja superfície caótica infelizmente está longe de possuir o mesmo humor irônico.
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