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A alma das cidades (visões citadinas de Forrest Aguirre)

8/25/2020

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"A estrela do Oriente clama, com centenas de lâminas
Queimem as cidades
Queimem as cidades"
("Queimem as cidades", Nathanael West)
Picture
Foto: Dan Ghetu.
Foi na faculdade, quando eu fazia o curso de linguística na Universidade de São Paulo – foi nesse momento que adquiri o gosto por percorrer os corredores mais obscuros das bibliotecas. Não tinha consciência exata daquilo que buscava – mas o fazia, furiosamente. Inclusive ao consultar as exóticas teorias urbanísticas, as reflexões sobre a cidade nas mais delirantes possibilidades, publicadas pela editora espanhola Gustavo Gili. Ao mesmo tempo, desbravava a metrópole gigantesca, São Paulo – novamente, buscava algo que eu mesmo não sabia bem o que era. Talvez fosse algo novo, único; o hermético; o vertiginoso; aquilo que, mesmo estando à vista de todos, não é percebido em toda sua magnitude. Talvez fosse algo que eu jamais poderia encontrar de forma direta e simples, como um item em uma prateleira, um ponto fixo em um mapa. Creio que minha busca se centrava em algo mágico – uma chave, uma cifra, um código, qualquer elemento que desfizesse a tessitura do mundo, que possibilitasse ao espaço-tempo um salto destrutivo, definitivo. Forrest Aguirre, em seu soberbo trabalho de título The Varvaros Ascension, oferece, de fato, não uma mas duas dessas estranhas chaves para desfazer/refazer o mundo – a Cidade e a Ancestralidade.

Mas antes de descrevermos essas estranhas oferendas ao leitor (afinal, não é sempre que testemunhamos o desdobrar de dois enigmas sangrentos, sacrificiais, em uma única narrativa interpolada), é preciso uma apresentação um pouco mais formal do livro e de sua trama. Talvez até mesmo algo acadêmica – pois isso não seria injusto com o autor, seu plot e seu texto. De fato, o mundo das universidades, das teses, das bolsas, do mestrado, do doutorado, do pós-doutorado, dos professores que são pesquisadores, dos rituais de pesquisa, das aulas, da graduação – todo o estranho mandarinato universitário faz parte da intrincada narrativa de The Varvaros Ascension. Mas tal envolvimento está longe de tornar a trama intragável ou tediosa como tais ambientes universitários, muitas vezes, são; a trama de Aguirre é ágil, veloz, bem-humorada e extremamente inventiva, algo que veríamos nas séries de televisão se seus showrunners fossem figuras como Fritz Lang, Raoul Ruiz ou Hiroshi Teshigahara. Ou Nigel Kneale, que um dia, em alguma dimensão do continuum temporal, trabalhou na televisão. 

A novela de Aguirre é ardilosa por se desdobrar em um duplo, em uma potencialidade que ultrapassa a apresentação inicial de um título (The Varvaros Ascension) em prol de dois outros subtítulos ("The Arch: Conjecture of the Cities" e "The Ivory Tower"). Dessa primeira bifurcação, temos inclusive um nome confundido como título de livro diegético – mas que poderia ser um livro perfeitamente real, em alguma obscura bibliografia acadêmica. De fato, nem mesmo de um livro se trata de fato; e a obra de Aguirre, em verdade, seguindo essa estranha mistificação, amplia-se em vários outros livros, que se abrem aos olhos do leitor graças à capacidade visionária do autor. Há inscrições, sinais e modos de leitura na cidade (Madison) que cerca os personagens, na universidade, nos frisos que ornam um dos edifícios descritos, na disposição dos mendigos em uma vizinhança, nos ossos – ancestrais e novos. Todos esses livros, escritos em diversas linguagens, tornam-se instigantes pela visão de seu autor, que consegue destilar dos áridos ambientes urbanos nas vizinhanças das universidades um denso e perturbador caldo cultural. É como se Arthur Machen tivesse frequentado a universidade, tendo como orientador de suas pesquisas (na Universidade de Columbia) Herbert Marcuse.

Como usual, a edição de The Varvaros Ascension, realizada pela Mount Abraxas, é espetacular. A capa, com ilustração de Valin Matheis, alude a imagens ancestrais primevas, rupestres e, ao mesmo tempo, ao anjo caído (mas em representação invertida) de Très Riches Heures du Duc de Berry, dos irmãos Limbourg. As imagens internas, de desolação urbana, seguem perfeitamente o imaginário das narrativas de Aguirre. O acabamento, de qualidade impecável (como usual nos livros da Mount Abraxas) e o formato pouco usual transformam esse livro em insólito objeto de culto – o estranho artefato a ser usado em uma cerimônia.

E adentramos o potencial apocalíptico do livro, duplicado pela narrativa. Os protagonistas das duas tramas paralelas – que se encontram, literalmente, no infinito – são os desbravadores de uma outra realidade, materializada em um tipo específico de narrativa que, nossos protagonistas logo descobrem, tornam as convenções usualmente aceitas absurdas. Que narrativa seria essa? Ora, aquela que ocorre neste livro único, The Varvaros Ascension. E diante da deliciosa armadilha desse loop, buscamos a repetição: pois leremos este livro novamente, muitas vezes, e sempre nos parecerá intrincado e alucinado. Pois esta ascensão nos transforma em peregrinos em progressão infinita, na busca de novos sinais para outros – muitos, infindáveis – apocalipses.

1 Comment
Gracia Regina Gimenes
4/15/2022 02:27:42 pm

Conteudo futurista. Amei!

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