Foto de Alcebiades Diniz Miguel. Foto de Dan Ghetu. As sutilezas da mente que se desintegra – daquela mente usual, que percebemos em nosso cotidiano, quando desloca-se de seu compasso usual em novas e inesperadas direções – são um tema recorrente na literatura. Essa jornada íntima, tenebrosa, está na base de boa parte da ficção de Edgar Allan Poe, por exemplo, com seus personagens que deliberadamente destroçavam suas próprias vidas, impulsionados por um sentimento vago de horror à normalidade que o autor denominava perversidade. Busca-se, em boa parte da ficção feita após Poe e que trilha esses passos incertos, algum tipo de penetração psicológica, de mergulho exploratório na consciência doentia; até mesmo Dostoiévski optou por essa direção. Mas existe outro caminho – o deslumbramento diante da desintegração. Há, portanto, obras que optam por contemplar os processos complexos da mente à beira da extinção para obter certo grau de êxtase – o mergulho investigativo torna-se rumor poético, sagrado. Foi assim com Lautréamont, com os surrealistas, com Alain Robbe-Grillet e é, da mesma forma, com esse espetacular ficcionista que é Jonathan Wood.
Evidentemente, Jonathan está longe de ser um neófito no que tange à criação ficcional. É poeta, contista, romancista e editor com vasta produção de qualidade sempre soberba. É um verdadeiro artesão da narrativa breve. Uma de suas melhores novelettes, The New Fate (2013) já trabalhava os temas da divisão e da ruptura da mente em um contexto vertiginoso, de catástrofe e de enlevo, que deixa o leitor com lágrimas nos olhos ao final do livro; lágrimas de tristeza e de júbilo. De certa forma, essas duas novelletes, The Deepest Furrow e The Delicate Shoreline Beckons Us, editadas no mesmo ano de 2019 revisitam sua obra-prima anterior, mas com uma articulação diferente e bastante rica, uma opção mais clara por molduras narrativas que possam sublinhar os elementos densos que se agitam no interior da trama. Já vi críticas a Jonathan relatando como suas obras são um pouco abstratas, o que geram certa dificuldade de conexão com os personagens. Nas duas narrativas de 2019, com toda certeza, essa conexão é imediata, e isso sem a perda da abstração reflexiva. Ambas narrativas parecem atingir diferentes pontos temáticos e estilísticos, a partir de uma percepção filosófica, de um insight poético mais ou menos comum a ambas. Em outras palavras: trabalham aspectos (terríveis e pavorosos, sem dúvida, mas também cíclicos, ritualísticos) da mente humana, mas de uma perspectiva casuística translúcida ao leitor. No caso de The Deepest Furrow, a moldura é daquilo que se convencionou chamar "folk horror"; mas a abordagem filosófica de Wood é tão densa que ultrapassa o mero conflito entre citadino e rural, cristão e pagão, civilizado e bárbaro (tão usual nessas tramas) para uma visão niilista que abarca todas as perspectivas humanas em uma mesma espiral constante de opressão e extinção. Já em The Delicate Shoreline Beckons Us, temos uma narrativa quase policial a partir da perspectiva do criminosos, um "caper" como especificado na introdução de Mark Valentine; mas novamente o cinismo do protagonista não facilita em nada algum tipo de redenção heróica. Como é possível perceber, a potência da trama de Jonathan ultrapassa os limites e as fronteiras estabelecidas pelas molduras narrativas que ele emprega para suas pinturas de desespero e morte – mas também de êxtase e transfiguração. Os dois livros são, igualmente, expressões de belezas diferentes – há uma abstração singela em The Delicate Shoreline Beckons Us, editado pela Zagava (minha edição é a paperback, mais barata, mas há no site da editora opções muito mais luxuosas), com a imagem fotográfica mas indefinida em sua capa, sugerindo o fluxo das águas do mar; há uma fúria barroca em The Deepest Furrow, expressa notadamente na capa espetacular de, incrivelmente intrincada como a própria novellete de Jonathan. Essa oposição segue normalmente em ambas e cria um contraste espetacular. Talvez seja necessário, contudo, destacar o aspecto cinematográfico das edições da Mount Abraxas, ricas em um colorido que é sugerido pelo próprio papel em que o livro é impresso. Mas esse é um outro patamar de significação. É interessante comparar as duas narrativas breves de Jonathan com filmes recentes que trilharam caminhos específicos semelhantes, mas sem a mesma riqueza (embora, sem dúvida, sejam bons filmes). Midsommar, o Mal Não Espera a Noite (2019) de Ari Aster pode ser comparado com The Deepest Furrow e A Casa que Jack Construiu (2018) de Lars Von Trier, com The Delicate Shoreline Beckons Us. Mas os filmes ainda são enquadrados pelos clichês de seus gêneros, pelos dispositivos empregados em sua confecção; já as novelettes de Jonathan fluem pelo selvagem território entre a visão e o pensamento. A riqueza trancendente das histórias de Jonathan talvez um dia chegue ao cinema; mas talvez o melhor mesmo seja desfrutar delas na amplitude infinita das páginas impressas desses dois livros soberbos.
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January 2021
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