Há alguns exemplos conhecidos de obras literárias que utilizam sistemas de divinação como um tipo de estrutura essencial em termos narrativos ou poéticos. Esse é o caso de O castelo dos destinos cruzados (1973) de Italo Calvino, elaborado a partir de interpretações possíveis das sequências de cartas que ilustram cada narrativa – algumas das quais surgiram, inicialmente, em uma edição da Franco Maria Ricci com esplêndidas reproduções de baralho pintado, ao século XV, por Bonifácio Bembo para os duques de Milão. Outro exemplo: O homem do castelo alto (1962) de Philip K. Dick, em que o clássico texto oracular chinês não apenas surge como dispositivo narrativo mas como recurso para solução de imbroglios narrativos empregado pelo próprio autor. Mais raros, contudo, são os casos em que uma obra narrativa ou poética torna-se ela própria um oráculo, absorvendo algo das propriedades sugestivas dos textos, imagens e simbologia da arte divinatória. Esse é o caso de Los San Signos do polígrafo argentino Xul Solar, espécie de tradução imagética/interpretativa do I Ching para o idioma inventado por Solar, o neocriollo, matizada por imagens retiradas de fontes como a Divina Comédia de Dante. Esse também é o caso de Dada Gnosis, trabalho do escritor e editor romeno Dan T. Ghetu, cuja ressonância oracular foi percebida por outro autor extraordinário, Damian Murphy, em uma resenha (outra interessante resenha/experimento, uma apreciação sem palavras, foi publicada por Des Lewis em seu site).
Do ponto de vista físico, Dada Gnosis lembra menos um livro e mais uma caixa de fósforos entulhada de escritos, sem ordem aparente – são, na verdade, seis folhas coloridas dobradas na forma de mini-livretos. Esse curioso formato remete, simultaneamente, a um estranho baralho de tarô e a uma provável metodologia para a difusão de textos clandestinos, cuidadosamente dobrados e ocultos em locais insuspeitos. Cada um dos livretos contêm poemas que fazem referência a poetas vitimados pelas terríveis tempestades históricas que acossaram a Romênia no século XX. Como o título do conjunto sugere, estamos diante de uma espécie de gnose contemporânea e iconoclasta, a possibilidade de descoberta pelo poder do acaso e da negatividade, que pulsam de cada um dos poemas de Ghetu. Esses vertiginosos e breves textos em prosa poética abordam o exílio, a solidão, a guerra, o isolamento, a perseguição. Os poetas de Ghetu se juntam aos judeus como minoria perseguida, uma compreensão direta do destino de um povo que quase nunca encontra um local em que possa repousar por muito tempo, antes de retomar seu exílio, sua fuga ou sua morte. Assim, os vaticínios evocados por esse curioso oráculo não são como os horóscopos projetados no mass media: são possibilidades que se projetam a partir das ruínas, tendência inescapável como bem demonstra a História, o pano de fundo de cada um dos hexagramas desse novo I Ching. De fato, há algo de irônico e enigmático em se conceber reflexos dos frenéticos e titânicos conflitos históricos em pequenos textos dobrados, enfiados dentro de uma pequena caixa. Esses dois atributos – a ironia e o enigma – fazem de Ghetu, um editor de imenso talento à frente da Ex Occidente Press, um legítimo herdeiro dos vanguardistas romenos que formaram o grupo surrealista de Bucareste, o “Infra-Noir”, que cultuavam o mistério, a clandestinidade, o mito renovado como uma estranha forma de revolução, necessária para subverter/destruir tanto a extrema direita quanto a esquerda autoritária, ambas unidas nos mesmos preconceitos, no mesmo ódio à liberdade, na mesma construção de uma mitologia postiça e ridícula. No poema dedicado a Mehmet Niyazi, uma das estrofes nos diz: “Os anjos vieram, afinal. A longa estrada do poeta está para começar.” A dor do exílio, da fuga, da perseguição, da morte, para o poeta, ganha a configuração de uma estrada aberta, de um road movie sem fim. A felicidade oracular em Dada Gnosis surge não da falsa esperança ou da irrealidade trivial cotidiana, mas da percepção poética de um mundo mergulhado em sangue, mas ainda aberto e possível.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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