ualquer autor brasileiro sabe como é difícil publicar um livro no Brasil – de poesia, ficção, ensaio, estudo, história em quadrinhos, romance policial, o que for. Com um publico leitor pequeno e questões complexas de distribuição e visibilidade, muitas editoras trabalham em excelentes títulos que acabam perdidos em produções regionais ou ignorados graças à massa de traduções e de best sellers que inunda as grandes livrarias que, hoje, funcionam como lojas de departamentos de produtos culturais. O fato é que esses livros dispersos e injustamente relegados a papel de fundo necessitariam de um Andrade Muricy, crítico pioneiro que trouxe à tona a realidade complexa do nosso simbolismo em seu trabalho Panorama do simbolismo brasileiro, dois volumes que sumarizavam imensa produção regional e limitada. Mas não há tantos críticos desse calibre para tal trabalho, embora algumas pequenas editoras consigam uma espantosa, imprevista visibilidade. A qualidade de um catálogo, somada ao risco de publicar autores novos, a qualidade do design e a valorização do trabalho de artistas gráficos de talento em capas e ilustrações internas, o trabalho delicado e belo de diagramação e tipografia.
Esses elementos, cultivados à perfeição e à margem do poderio de enormes conglomerados editoriais, foi o que transformou o editor Massao Ohno (1936-2010) em uma figura única no cenário editorial brasileiro. Esse dentista de formação, filho de pais japoneses, iniciou sua carreira editorial na década de 1950, trabalhando com apostilas para cursinhos pré-vestibulares. Depois, mergulhou na publicação de literatura, trabalhando com autores novos e pouco conhecidos, em um catálogo vasto constituído por cerca de 800 títulos. Poetas como Claudio Willer e Antonio Gomes de Franceschi tiveram trabalhos iniciais importantes publicados por Massao – na verdade, toda uma geração de poetas que despontava nos anos 1960 teve com ele sua primeira experiência editorial. Leitor refinado e afiado – qualidade essencial a um bom editor – Massao, contudo, soube diversificar bastante seu catálogo. Talvez por isso tenha criado séries como a “Clássicos Orientais”, dirigida por Antonio Nojiri e Ricardo Mário (João K. Suzuki e Manabu Mabe eram os diretores artísticos), que estreou com aquela que deve ser a primeira tradução dos contos do escritor japonês Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927) editada no Brasil. Akutagawa foi um escritor marginal, talvez – como Mishima, algumas décadas depois – pela mescla complexa e sofisticada que o autor realizou da visão de mundo ocidental e oriental, em termos culturais, políticos, religiosos. Como explicitou Jorge Luis Borges, com Akutagawa percebemos como o Oriente absorveu o Ocidente. Estudioso da melhor literatura européia – sua tese de doutorado era sobre William Morris – e comparado frequentemente a August Strindberg, Akutagawa abraçou uma visão mística torturada, retomando a história de mártires cristãos no Japão em versões orientais da “Lenda Áurea” medieval, ao mesmo tempo que inventava alegorias em territórios fantásticos e desmontava a fábula empregando procedimentos de Robert Browning e Marcel Schwob (como nos dois mais famosos contos de Akutagawa, os espantosos “Rashomon” e “Dentro do bosque", ambos fundidos no lendário filme de Akira Kurosawa). Cometeu suicídio aos 35 anos de idade. As histórias desse autor ousado e complexo foram a escolha de Massao para o primeiro volume da coleção, Rashomon e outros contos, uma edição rara, belíssima, artesanal, na qual sequer consta a data de publicação. Impossível saber se a coleção seguiu adiante com outros lançamentos, mas a notável beleza desse primeiro volume é algo a se destacar: a capa, de João Suzuki, apresenta a ilustração de um rosto feminino e fantasmagórico graças ao uso de contrastes entre branco, cinza e preto, uma prévia para as lindas ilustrações internas, a cargo de Manabu Mabe. Mabe empregou caligrafismos em densas pinceladas que tanto lembram ideogramas possíveis de um japonês real (ou imaginário) quanto personagens tão esboçados e distorcidos quanto os que vemos em cada uma das narrativas (além de “Rashomon”, temos outras três: “Dentro do bosque”, “Kappá” e “O Cristo de Nanquim”). A tradução, de Antonio Nojiri e Ricardo Mario Gonçalves, é delicada, aparentemente realizada a partir do original em japonês e estruturada tendo em vista os efeitos de ironia e de espanto/reviravolta valorizados por Akutagawa. As narrativas, em pouco menos de 100 páginas, praticamente cobrem toda a produção de Akutagawa de forma prototípica: da ruptura formal com a lenda japonesa e busca de fontes ocidentais para estrutura da trama em “Rashomon” e “Dentro do bosque” à recuperação da narrativa fabular cristã dentro de um contexto histórico oriental, que é o caso de “O Cristo de Nanquim”. Já “Kappá”, um conto mais extenso e um dos últimos escritos por Akutagawa, constitui uma narrativa única. A intenção inicial é satírica: Akutagawa criou uma espécie fantástica, a partir de um animal imaginário conhecido do bestiário nipônico tradicional, para falar sobre as mazelas humanas. Mas, conforme a trama se desenrola – como Borges bem percebe – o autor parece se esquecer das convenções usuais da narrativa satírica, do bestiário, da fábula convencional desde Esopo: seus kappás, antecipando Karel Capek no romance apocalíptico A guerra das salamandras, transformam-se em homens, falando diretamente dos problemas e das angústias da época. Ainda segundo Jorge Luis Borges, essa indesculpável “falha literária”, por assim dizer, que é esquecer ou ignorar as convenções canônicas de gênero e função narrativas, mergulha o leitor na mais absoluta e desesperada melancolia, provavelmente a mesma experimentada por Akutagawa em seus últimos anos de vida – sentimos que sua prodigiosa imaginação, da mesma forma que os sonhos de sua arte, entram em colapso, pois o mundo, seja ele habitado por kappás ou homens, surge nessas (e em outras) páginas do autor como vazio e desprezível. Maravilhosa edição, resultado de um cuidadoso trabalho artesanal que trata o livro, seu autor e leitor com o respeito devido. Uma pena que já sejam raros editores como Massao, dispostos ao risco e ao novo, à valorização do inédito e à busca da ruptura. Uma pena que o livro seja raro e que as novas traduções de Akutagawa, embora de ótima qualidade, sejam publicadas em edições bem menos belas e memoráveis. Oxalá a recuperação dessas edições “perdidas”, ainda que em escala limitada – através de comentários, fotos e vídeos na Internet ou em outros meios de divulgação –, não seja o suficiente para inflamar alguma sugestionável imaginação editorial.
2 Comments
José Armando Pereira da Silva
4/21/2015 08:16:00 am
Muito apropriado o comentário, que irei aproveitar em trabalho que estou elaborando sobre Massao Ohno.
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Alcebiades Diniz Miguel
4/21/2015 11:10:03 am
Me alegra saber que meu texto pode ser útil em outra pesquisa. Agradeço seu comentário.
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