A vulgaridade, dentro dos muitos aspectos do humano, é aquele que sugere de fato a mortal platitude, a abismal superficialidade, algo que poderia dragar todo um universo para o nada. A relação com a vulgaridade é difícil, árdua, eventualmente épica – mas, em geral, consuma-se na celebração de repetições: de ideias, frases, momentos e formas em um perpétuo canibalismo que nem de longe sugere o homérico Eterno Retorno de Blanqui (ou de Nietzsche), embora essencialmente signifique que as coisas sempre voltam a ser elas mesmas e que essa é sua maldição mais tenebrosa. Mas nem sempre um desfecho assim pouco inspirador acontece: no extraordinário Satíricon, escrito poucas décadas após o nascimento de Cristo, temos a demonstração de como as conversas banais e a vulgaridade pavorosa do povão de Roma poderiam ser deliciosamente dissecadas e apresentadas ao leitor como um sangrento e suculento banquete. Com essa obra incrível de Petrônio, a inteligência e a esperteza tornaram-se elementos abertos para discussão e reflexão, enquanto a vulgaridade ganhou uma destruição tão sistemática que reemerge das cinzas, sem perder nada de sua essência, vingada e redimida. Séculos se passaram até o surgimento de obra crepuscular do mesmo naipe: Bouvard et Pécuchet, de Flaubert. O célebre criador da Bovary, em seu romance-testamento, criou esses dois idiotas que buscam um conhecimento enciclopédico e universal que os fizesse novos Leonardos Da Vinci ou Athanasius Kirchers, polígrafos contemporâneos com domínio em vastos campos do saber. Mas a idiotia de ambos, a surda e completa vulgaridade desses caracteres que se pretendiam talhados para grandeza do Olimpo, torna cada empresa mais espetacularmente frustrada que a anterior.
Essa mesma vulgaridade que torna falhado o intento de saída orna Bouvard e seu parceiro de uma aura trágica e patética: a grandeza que lhes escapa das mãos por conta de uma profunda idiotia os eleva acima de outros milhares de outros, igualmente imbecis e vulgares, que não ousam sequer fracassar tão estrepitosamente. São homens superiores, trágicos – personagens únicos que antecipam os patéticos de Samuel Beckett em um século. Após Flaubert, seria no século XX que outro escritor francês se arriscaria de forma tão completa e suicida no lodaçal do vulgar, cotidiano e comum (inclusive no campo da linguagem), obtendo resultados espantosos: trata-se de Raymond Queneau em seu Zazie dans le métro – na excelente tradução brasileira, Zazie no metrô. Queneau – ele mesmo, um grande admirador de Petrônio – inicia seu romance como uma espécie de jornada que nunca se cumpre: Zazie será frustrada em seu desejo, não conseguindo nada daquilo que ela mesma ou sua mãe gostariam que ela obtivesse em Paris com o tio Gabriel (diversão, conhecer o metrô). A trama é sacudida não apenas pela oralidade e pelo absurdo que a corta, pela deriva, com certa frequência, mas também pela instável identidade dos personagens, que trocam de sexo, de nome, de função social, de bandido para polícia, de polícia para tarado, de perseguidor para perseguido e vice-versa. Os lugares e as paisagens onde esses personagens transformistas realizam suas ações agonísticas, por outro lado, também parecem escorregar e variar, de modo que o Panthéon pode ser a Gare de Lyon, Invalides transforma-se na Caserne de Reuilly, e a “jóia gótica” que é Sainte-Chapelle vira o Tribunal de Commerce. Na repetição de fórmulas e sentenças – ou seja, de ideias – Queneau coloca a vulgaridade no jogo, pois a repetição sempre foi o atributo central do que é vulgar. O jogo aparenta ser velho, ainda mais se pensarmos em tanta literatura do século XX ou em um concorrente direto de Queneau, a turma de Alain Robbe-Grillet e do Nouveau Roman. Robbe-Grillet e seus apaniguados também apreciavam as repetições, as identidades falsas ou incertas, a instabilidade das paisagens, a relatividade fornecida pelo ponto de vista, a vulgaridade violenta. Mas o que diferencia ambos é que a prosa de Queneau é menos calculada e simétrica – amador dos “clássico”, sabia aproveitar a fluência da narrativa tradicional em uma síntese que não é mecânica e fria como aquela obtida pelos esforços de engenharia efetuados por Robbe-Grillet. Queneau aprecia a sátira e o experimento, mas é sábio ao utilizar todos os recursos disponíveis tendo sempre por norte a narrativa em si, inclusive (como bem percebeu Roland Barthes) uma espantosa unidade de tempo e espaço típica das tragédias. Zazie e seus amigos não são gélidas abstrações simbólicas indicadas por incógnitas matemáticas – usuais no Noveau Roman – mas personagens palpitantes, grotescos e vívidos, que se projetam qual seres vivos. As repetições, farsas e diálogos vazios desses seres quase fantásticos parecem romper a superfície estática do cotidiano, como se a vulgaridade ganhasse ares de mito. Talvez por isso a idade da protagonista seja uma constante incerteza: jovem demais, velha demais, mas nuca estável e inocente como as representações infanto-juvenis o exigem. Jorge Luis Borges decifrou Bouvard et Pécuchet ao mencionar como o tempo linear não afetava a dupla, que estaria idosa ou morta antes de alcançar a quantidade de conhecimentos correspondente à metade do romance. Não envelhecem porque o estofo de ambos é o mito. Assim, como Petrônio e Flaubert antes de Zazie, a vulgaridade em Queneau ultrapassa a armadilha da superfície e a repetição torna-se ritual, cômico e trágico, ao qual sentimos vontade de sempre retornar. A tradução brasileira, realizada por Paulo Werneck e editada pela Cosac & Naif, possui um projeto gráfico genialmente ardiloso. O projeto gráfico, inspirado nos cartazes de rua em estilo “lambe-lambe” dos anos 1950 (sempre em duas cores, vermelho e azul) transborda da capa para o interior do livro. Impresso em papel bíblia, as páginas são dobradas para ocultar uma imagem de um desses cartazes, reprodução de algum autêntico exemplar da época. Assim, durante a leitura, passeia-se do vermelho ao azul, enquanto vislumbra-se de leve uma imagem entre as páginas – um diálogo entre cor, forma e linguagem urbana completamente adequado tendo em vista a essência tão parisiense de Zazie dans le métro.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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