La mort : mon ironie dépasse toutes les autres! de Odilon Redon.
Talvez o trecho mais conhecido de Introdução à Literatura Fantástica de Tzvetan Todorov seja justamente o seu final – é quando ele indica quais seriam os becos sem saída da ficção fantástica que sua análise perde o foco estrutural e ganha algo de um verniz positivista, uma confiança no poder explicativo/terapêutico do discurso científico para desfazer as fantasias da ambiguidade fantástica. Se entendida dessa forma, como um tipo de eletrificação de um bestiário ancestral, a literatura fantástica tenderia a uma linguagem estática e a se tornar uma “propedêutica da literatura”, como o próprio Todorov afirma. Mas a verdade é que o fantástico, aos poucos, deixou de ter interesse na ambiguidade entre real e imaginado (ou sobrenatural) para centrar seu foco na tensão gerada pela estranheza. São os momentos em que, por um átimo, nossa racionalidade parece ameaçada – sons murmurados, imagens vistas de relance, sensações inexplicáveis que nossa mente tenta, em desespero, traduzir, trazer para a dimensão do razoável. Não se trata apenas da ameaça sobrenatural ou da loucura, mas de um temor em não reconhecer mais nosso universo e sua fortuita casualidade. Nossa ânsia por verossimilhança atual permite tudo, menos essa proximidade assustadora com um nada que sequer sabemos como nomear. O breve romance de Oscar Nestarez, Bile Negra, obedece em seus melhores momentos a essa lógica do horror que surge da incapacidade de nossa percepção traduzir a entropia da natureza em imagens mais palatáveis. Talvez seja por conta da opção feita pela valorização dessa nossa deficiência perceptiva – na verdade uma deficiência linguística, pois o desespero que se abate sobre nós diante do incomum é a impossibilidade de nomeá-lo – o que dota o solipsismo narrativo que o autor emprega de uma energia feroz, uma fúria verdadeiramente barroca. O Mal nunca se limita ou se circunscreve aqui e embora os melhores momentos da trama sejam aqueles que que a tensão conduz os personagens e a sensação de catástrofe parece corroer tudo ao redor, Nestarez nunca nos poupa de nada, sem piedade, sem fazer prisioneiros ou deixar sobreviventes. Há, por exemplo, uma nítida opção por aquilo que Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo (a partir de Chesterton) chamavam "perigo amarelo", efeito exemplificado na introdução da Antologia de Literatura Fantástica organizada pelos três da seguinte maneira: "Wells teria caído no perigo amarelo se houvesse criado, ao invés de um único homem invisível exércitos deles que invadissem e dominassem o mundo." Trata-se exatamente do que temos aqui; mas esse excesso é eficaz, embora seja nas sombras, por trás dos olhos dos personagens, que a trama funcione melhor. Não por acaso, páginas negras prenunciam as visões mais brutais da trama, solução tipográfica brilhante. Seriam essas visões do protagonista? De algum dos personagens? Não fica muito claro, mas é perene a atmosfera de pesadelo boschiano que cada uma delas suscita. As primeiras (notadamente a primeira, retomada no capítulo final) são as melhores, mas em todas há a opressiva percepção do ominoso. Pois se o desenrolar da trama parece obedecer, muitas vezes, a lógica do excesso, sua conclusão acontece na escala menor do casal humano, uma inversão cruel do arquétipo "casal primordial", de Adão e Eva, que anuncia, sem delongas, justificativas ou eufemismos, o fim último da humanidade, aparentemente ansiado dentro do abismo solitário dos personagens do livro como um reflexo do que alimentamos nos recônditos de cada um de nós. Alcebiades Diniz Miguel
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January 2021
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