Há alguns exemplos conhecidos de obras literárias que utilizam sistemas de divinação como um tipo de estrutura essencial em termos narrativos ou poéticos. Esse é o caso de O castelo dos destinos cruzados (1973) de Italo Calvino, elaborado a partir de interpretações possíveis das sequências de cartas que ilustram cada narrativa – algumas das quais surgiram, inicialmente, em uma edição da Franco Maria Ricci com esplêndidas reproduções de baralho pintado, ao século XV, por Bonifácio Bembo para os duques de Milão. Outro exemplo: O homem do castelo alto (1962) de Philip K. Dick, em que o clássico texto oracular chinês não apenas surge como dispositivo narrativo mas como recurso para solução de imbroglios narrativos empregado pelo próprio autor. Mais raros, contudo, são os casos em que uma obra narrativa ou poética torna-se ela própria um oráculo, absorvendo algo das propriedades sugestivas dos textos, imagens e simbologia da arte divinatória. Esse é o caso de Los San Signos do polígrafo argentino Xul Solar, espécie de tradução imagética/interpretativa do I Ching para o idioma inventado por Solar, o neocriollo, matizada por imagens retiradas de fontes como a Divina Comédia de Dante. Esse também é o caso de Dada Gnosis, trabalho do escritor e editor romeno Dan T. Ghetu, cuja ressonância oracular foi percebida por outro autor extraordinário, Damian Murphy, em uma resenha (outra interessante resenha/experimento, uma apreciação sem palavras, foi publicada por Des Lewis em seu site).
Do ponto de vista físico, Dada Gnosis lembra menos um livro e mais uma caixa de fósforos entulhada de escritos, sem ordem aparente – são, na verdade, seis folhas coloridas dobradas na forma de mini-livretos. Esse curioso formato remete, simultaneamente, a um estranho baralho de tarô e a uma provável metodologia para a difusão de textos clandestinos, cuidadosamente dobrados e ocultos em locais insuspeitos. Cada um dos livretos contêm poemas que fazem referência a poetas vitimados pelas terríveis tempestades históricas que acossaram a Romênia no século XX. Como o título do conjunto sugere, estamos diante de uma espécie de gnose contemporânea e iconoclasta, a possibilidade de descoberta pelo poder do acaso e da negatividade, que pulsam de cada um dos poemas de Ghetu. Esses vertiginosos e breves textos em prosa poética abordam o exílio, a solidão, a guerra, o isolamento, a perseguição. Os poetas de Ghetu se juntam aos judeus como minoria perseguida, uma compreensão direta do destino de um povo que quase nunca encontra um local em que possa repousar por muito tempo, antes de retomar seu exílio, sua fuga ou sua morte. Assim, os vaticínios evocados por esse curioso oráculo não são como os horóscopos projetados no mass media: são possibilidades que se projetam a partir das ruínas, tendência inescapável como bem demonstra a História, o pano de fundo de cada um dos hexagramas desse novo I Ching. De fato, há algo de irônico e enigmático em se conceber reflexos dos frenéticos e titânicos conflitos históricos em pequenos textos dobrados, enfiados dentro de uma pequena caixa. Esses dois atributos – a ironia e o enigma – fazem de Ghetu, um editor de imenso talento à frente da Ex Occidente Press, um legítimo herdeiro dos vanguardistas romenos que formaram o grupo surrealista de Bucareste, o “Infra-Noir”, que cultuavam o mistério, a clandestinidade, o mito renovado como uma estranha forma de revolução, necessária para subverter/destruir tanto a extrema direita quanto a esquerda autoritária, ambas unidas nos mesmos preconceitos, no mesmo ódio à liberdade, na mesma construção de uma mitologia postiça e ridícula. No poema dedicado a Mehmet Niyazi, uma das estrofes nos diz: “Os anjos vieram, afinal. A longa estrada do poeta está para começar.” A dor do exílio, da fuga, da perseguição, da morte, para o poeta, ganha a configuração de uma estrada aberta, de um road movie sem fim. A felicidade oracular em Dada Gnosis surge não da falsa esperança ou da irrealidade trivial cotidiana, mas da percepção poética de um mundo mergulhado em sangue, mas ainda aberto e possível.
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ualquer autor brasileiro sabe como é difícil publicar um livro no Brasil – de poesia, ficção, ensaio, estudo, história em quadrinhos, romance policial, o que for. Com um publico leitor pequeno e questões complexas de distribuição e visibilidade, muitas editoras trabalham em excelentes títulos que acabam perdidos em produções regionais ou ignorados graças à massa de traduções e de best sellers que inunda as grandes livrarias que, hoje, funcionam como lojas de departamentos de produtos culturais. O fato é que esses livros dispersos e injustamente relegados a papel de fundo necessitariam de um Andrade Muricy, crítico pioneiro que trouxe à tona a realidade complexa do nosso simbolismo em seu trabalho Panorama do simbolismo brasileiro, dois volumes que sumarizavam imensa produção regional e limitada. Mas não há tantos críticos desse calibre para tal trabalho, embora algumas pequenas editoras consigam uma espantosa, imprevista visibilidade. A qualidade de um catálogo, somada ao risco de publicar autores novos, a qualidade do design e a valorização do trabalho de artistas gráficos de talento em capas e ilustrações internas, o trabalho delicado e belo de diagramação e tipografia.
Esses elementos, cultivados à perfeição e à margem do poderio de enormes conglomerados editoriais, foi o que transformou o editor Massao Ohno (1936-2010) em uma figura única no cenário editorial brasileiro. Esse dentista de formação, filho de pais japoneses, iniciou sua carreira editorial na década de 1950, trabalhando com apostilas para cursinhos pré-vestibulares. Depois, mergulhou na publicação de literatura, trabalhando com autores novos e pouco conhecidos, em um catálogo vasto constituído por cerca de 800 títulos. Poetas como Claudio Willer e Antonio Gomes de Franceschi tiveram trabalhos iniciais importantes publicados por Massao – na verdade, toda uma geração de poetas que despontava nos anos 1960 teve com ele sua primeira experiência editorial. Leitor refinado e afiado – qualidade essencial a um bom editor – Massao, contudo, soube diversificar bastante seu catálogo. Talvez por isso tenha criado séries como a “Clássicos Orientais”, dirigida por Antonio Nojiri e Ricardo Mário (João K. Suzuki e Manabu Mabe eram os diretores artísticos), que estreou com aquela que deve ser a primeira tradução dos contos do escritor japonês Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927) editada no Brasil. Akutagawa foi um escritor marginal, talvez – como Mishima, algumas décadas depois – pela mescla complexa e sofisticada que o autor realizou da visão de mundo ocidental e oriental, em termos culturais, políticos, religiosos. Como explicitou Jorge Luis Borges, com Akutagawa percebemos como o Oriente absorveu o Ocidente. Estudioso da melhor literatura européia – sua tese de doutorado era sobre William Morris – e comparado frequentemente a August Strindberg, Akutagawa abraçou uma visão mística torturada, retomando a história de mártires cristãos no Japão em versões orientais da “Lenda Áurea” medieval, ao mesmo tempo que inventava alegorias em territórios fantásticos e desmontava a fábula empregando procedimentos de Robert Browning e Marcel Schwob (como nos dois mais famosos contos de Akutagawa, os espantosos “Rashomon” e “Dentro do bosque", ambos fundidos no lendário filme de Akira Kurosawa). Cometeu suicídio aos 35 anos de idade. As histórias desse autor ousado e complexo foram a escolha de Massao para o primeiro volume da coleção, Rashomon e outros contos, uma edição rara, belíssima, artesanal, na qual sequer consta a data de publicação. Impossível saber se a coleção seguiu adiante com outros lançamentos, mas a notável beleza desse primeiro volume é algo a se destacar: a capa, de João Suzuki, apresenta a ilustração de um rosto feminino e fantasmagórico graças ao uso de contrastes entre branco, cinza e preto, uma prévia para as lindas ilustrações internas, a cargo de Manabu Mabe. Mabe empregou caligrafismos em densas pinceladas que tanto lembram ideogramas possíveis de um japonês real (ou imaginário) quanto personagens tão esboçados e distorcidos quanto os que vemos em cada uma das narrativas (além de “Rashomon”, temos outras três: “Dentro do bosque”, “Kappá” e “O Cristo de Nanquim”). A tradução, de Antonio Nojiri e Ricardo Mario Gonçalves, é delicada, aparentemente realizada a partir do original em japonês e estruturada tendo em vista os efeitos de ironia e de espanto/reviravolta valorizados por Akutagawa. As narrativas, em pouco menos de 100 páginas, praticamente cobrem toda a produção de Akutagawa de forma prototípica: da ruptura formal com a lenda japonesa e busca de fontes ocidentais para estrutura da trama em “Rashomon” e “Dentro do bosque” à recuperação da narrativa fabular cristã dentro de um contexto histórico oriental, que é o caso de “O Cristo de Nanquim”. Já “Kappá”, um conto mais extenso e um dos últimos escritos por Akutagawa, constitui uma narrativa única. A intenção inicial é satírica: Akutagawa criou uma espécie fantástica, a partir de um animal imaginário conhecido do bestiário nipônico tradicional, para falar sobre as mazelas humanas. Mas, conforme a trama se desenrola – como Borges bem percebe – o autor parece se esquecer das convenções usuais da narrativa satírica, do bestiário, da fábula convencional desde Esopo: seus kappás, antecipando Karel Capek no romance apocalíptico A guerra das salamandras, transformam-se em homens, falando diretamente dos problemas e das angústias da época. Ainda segundo Jorge Luis Borges, essa indesculpável “falha literária”, por assim dizer, que é esquecer ou ignorar as convenções canônicas de gênero e função narrativas, mergulha o leitor na mais absoluta e desesperada melancolia, provavelmente a mesma experimentada por Akutagawa em seus últimos anos de vida – sentimos que sua prodigiosa imaginação, da mesma forma que os sonhos de sua arte, entram em colapso, pois o mundo, seja ele habitado por kappás ou homens, surge nessas (e em outras) páginas do autor como vazio e desprezível. Maravilhosa edição, resultado de um cuidadoso trabalho artesanal que trata o livro, seu autor e leitor com o respeito devido. Uma pena que já sejam raros editores como Massao, dispostos ao risco e ao novo, à valorização do inédito e à busca da ruptura. Uma pena que o livro seja raro e que as novas traduções de Akutagawa, embora de ótima qualidade, sejam publicadas em edições bem menos belas e memoráveis. Oxalá a recuperação dessas edições “perdidas”, ainda que em escala limitada – através de comentários, fotos e vídeos na Internet ou em outros meios de divulgação –, não seja o suficiente para inflamar alguma sugestionável imaginação editorial. Existe uma infinidade de possibilidades para a criação poética – uma delas, a de evocar. Ou seja, aproximar algo distante daquilo que está próximo, o usual daquilo que se perdeu, o conhecido do desconhecido. Trata-se de um processo de transformação que envolve uma dose razoável de mistério, pois a forma poética se aproxima da prece, da fórmula de encantamento, da música, do fluxo vago do pensamento reflexivo, da imaginação desenfreada próxima tanto do delírio quanto da inspiração divina. O saudoso filólogo e professor Segismundo Spina menciona como, para Isidoro de Sevilha em sua obra Etymologiae – a partir de Suetônio – a poesia, de origem semidivina, estaria subordinada ao culto, consagrada à exaltação dos deuses primitivos. Eram os “vates” que, arrebatados por um furor inumano, a “vesania" pronunciavam oráculos e vaticínios. A linguagem na boca desses indivíduos tornava-se uma estranha forma de comunhão, uma continuidade explosiva entre a Natureza, o universo abstrato e reflexivo e o mundo como entendido usualmente pela sociedade organizada, construindo a paisagem na qual os deuses ganhavam seu corpo e sua alma. O tempo passou e a possibilidade mágica da linguagem foi se tornando mais limitada – a utilização prosaica da linguagem parece, constantemente, soterrar suas possibilidades visionárias. Contudo, a poesia ainda existe: a duras penas é bem verdade, mas ela explode de forma especialmente deliciosa quando encontramos (ou reencontramos) um grande poeta – e é essa a sensação que temos, de encontro e de reencontro, quando lemos A agonia dos pássaros de Fernando Naporano, livro publicado com esmero e arte pela editora Selo Demônio Negro.
Os poemas de Naporano se alinham à tradição da melhor poesia vanguardista em língua portuguesa, imaginista e visionária, de poetas como Fernando Pessoa, Mario de Sá-Carneiro ou Herberto Helder. Mas as criações de Naporano, apesar dessa filiação, estão longe de ser qualquer coisa derivada, uma homenagem convencional, construções pedestres que possam ser catalogadas em gavetas cuidadosamente ordenadas. Uma dicção bastante pessoal anima os poemas do autor, uma tensão paradoxal entre mudança e permanência, materializada nas imagens constantes que o autor faz do reino mineral – pedras, águas, lâmpadas, traquitanas, animais leves, objetos estáticos que se transfiguram em metamorfoses com a subjetividade do poeta que os observa, cujo desejo de se perder nesse mundo de formas lentamente golpeadas pela Natureza provoca pequenos e sentidos cataclismos. A intensidade desses cataclismos em miniatura, contudo, demonstra que não estamos diante de qualquer tipo de lamúria em tom menor, de reclamações diante das necessárias limitações nas medidas do Homem, nas possibilidades da Natureza, na memória dos deuses – estamos diante de uma refinada percepção da catástrofe, uma catástrofe que se realiza de inúmeras formas em nosso cotidiano, mas que é peculiarmente insidiosa em nossa esfera individual, quando nos devora por dentro. Já os títulos dos poemas naporanianos parecem aludir a imaginários tratados existencialistas, escritos por Kierkegaard e perdidos entre a infinidade de pseudônimos que aquele filósofo dinamarquês utilizava: “Na sórdida periferia da claridade”, “Ocupação do ódio, quase sem conclusão”, “Trilhas surdas do insondável”, “O fulgor na desarticulação do presente”, “Obra levada a exaustão”. Contudo, apesar dos nomes lembrarem livros de filosofia, tais poemas estão longe de qualquer traço de pretensão gratuita, de abstração fria e livresca. São frutos da subjetividade em carne viva e explodem em imagens metamorfoseadas, em evocações constantes – de momentos, de formas sensuais, de maneiras de viver, de esperança na imobilidade e no movimento – construídas com imenso requinte de linguagem de forma que a liberdade pode ser um puma, as recordações são formigas douradas e carismáticas e o Longe, um beija-flor ferido. Como escreve Luiz Nazario, no excelente ensaio introdutório, há algo de cinemático nessas imagens metamorfoseantes, que provavelmente foi “editado”, redimensionado e estruturado pelas ricas experiências, pessoais e estéticas, do autor. Essa percepção cinematográfica da realidade torna-se aplicável em um nível ainda mais profundo, pois concretiza a tensão entre imóvel/inanimado e cambiante/movente, que marca os poemas de Naporano, pois a imagem no cinema é tecnicamente as duas coisas ao mesmo tempo. Ou, colocando de outra forma, até mesmo as pedras escondem uma vida rica em transformações e Naporano retoma o caminho estabelecido por Roger Caillois em seu L'ecriture dês pierres: “Cada espaço está preenchido e cada interstício, ocupado. Mesmo o metal se insinuou em células e canais onde a vida há muito desapareceu.” O livro A agonia dos pássaros foi lançado pelo Selo Demônio Negro, sob os cuidados de Vanderley Mendonça. A Selo Negro investe em autores menos conhecidos, em criações marginais, na valorização eclética da criação ampla, multifacetada, em livros que possuem um irresistível apelo como objetos estéticos. Como usual, o labor editorial de Mendonça no livro de Naporano é notável: uma mescla de tecnologia digital e acabamento manual, de argúcia na utilização dos recursos tecnológicos disponíveis e de preservação da essência artesanal, que traz ao livro de poesia um sentido bastante significativo. Assim, ficamos na torcida para que Naporano publique, de preferência por uma editora como a Selo Negro, mais livros com suas visões únicas, seus devaneios devastadores, cuja leitura será sempre um privilégio e um prazer. Em 1975, Jorge Luis Borges publicaria um conto que seria materialização do sonho de todo o bibliófilo: “El Libro de Arena”, o livro cujas páginas são infinitas (ou ao menos incontáveis) como os grãos de areia que existem em uma praia. O protagonista do conto adquire o fantástico volume de um vendedor de Bíblias escocês que surge em sua casa mas acaba prisioneiro do “livro monstruoso” e “diabólico”. Objeto impossível e fascinante – alimentou mesmo uma releitura apocalíptica de Rhys Hughes, em um conto de sua Nova história universal da infâmia – símbolo daquilo que desejamos e que alimenta nossos piores pesadelos, que apenas podemos abandonar em um local onde se perca definitivamente, assombrando-nos assim apenas como uma provável ilusão dos sentidos. É curioso que o volume monstruoso de Borges não é incomum: a capa demonstrava que o livro passara por muitas mãos, o idioma no qual fora escrito talvez fosse estranho, mas a tipografia era medíocre, as páginas estavam gastas, as ilustrações eram torpes e de feitio mediano.
De certa forma, Borges era sensível a um fenômeno curioso: muitos livros cotidianos, de forma limitada, reproduzem a sensação do livro de areia graças a curiosas disposições na Natureza. O tempo, por exemplo, pode desgastar um volume de tal forma que as páginas, antes vistosas, surgem quebradiças em nossos espantados dedos (que talvez não tocaram essas páginas por alguns anos). Já a memória produz o efeito de espanto diante de um livro que imaginamos conhecer (e que nos surpreende, o que indica que provavelmente não o conhecíamos) quando passagens que temos a certeza estarem em tal e qual página desaparecem, quando novas ilustrações ou sentidos surgem mesmo que de uma leitura breve, superficial. Por outro lado, certos formatos sempre buscaram emular, de forma evidentemente imperfeita, a infinitude: os almanaques e as coletâneas, que possibilitavam a (re)descoberta, o frisson inesperado na leitura do volume. Mas nenhuma dessas formas de aproximação ao “livro de areia”, objeto não natural mas possível (como tantos objetos não naturais) é como esse estranho artefato publicado pela Zagava/Ex Occidente Press: Infra-Noir, compêndio multifacetado e único, o mais próximo possível do livro de areia. O título, que poderíamos traduzir como “infranegro”, parece aludir aos manifestos e séries de opúsculos do grupo surrealista romeno, que congregou nos anos 1940 nomes como Gherasim Luca, Dolfi Trost, Paul Păun e outros. Essa relação com o rico e complexo veio do surrealismo romeno é acentuada pelo trecho do poema de Virgil Teodorescu (ilustrado por stilamancies de Dolfi Trost), Poem in Leoparda (1940), que ilustra a sobrecapa, escrito no idioma dos leopardos, ferocidade fonética inventada por Teodorescu como “idioma” de seu poema, moldada a partir – como destaca Andrew Condous – das experiências dadaístas de Tristan Tzara em torno dos chamados “poemas simultâneos” e do “letrismo” de Isidore Isou. O original do estranho poema de Teodorescu e Trost foi confiscado pelas autoridades romenas em 1959 e imaginava-se destruído. De fato estava, mas não inteiramente: quatro páginas foram secretamente guardadas pela esposa de Virgil, Helene – nessas páginas, podemos ler o trecho que está na capa de Infra-Noir: “Sobroe vinwid tidiv toe”. A linguagem estranhamente irreal e poderosamente sugestiva do poema aparece impresso em letras de tipografia impecável, negro sobre o negro da sobrecapa, um verso primoroso em uma língua desconhecida da humanidade, mas por ela percebida. Na lombada, a indicação evidente de negrura, obscuridade, clandestinidade, ameaça de esquecimento: “Infra-Noir”. Mergulhamos em um universo negro, inacreditavelmente significativo e complexo, mas apesar de tudo ainda estamos na sobrecapa que, a despeito de sua imponência, não é preparação suficiente para o impacto do conteúdo do volume: são seis livros completos, uma gama variada de poesia, prosa poética e ficção em diversos formatos e tipografia, cada um deles acabamento luxuoso que inclui uma ampla gama de ilustrações e fotografia. A abertura de Infra-Noir é “Smoke”, livro de poemas de Mark Valentine. Um amplo espectro da composição poética da vanguarda do início do século XX – notadamente o surrealismo, o hermetismo, o dadaísmo, o expressionismo – informa os poemas de “Smoke” que, por outro lado, possuem uma dicção muito própria. Os focos mais evidentes da poesia de Valentine são o exílio e a dispersão, fatos singulares cuja ocorrência se dá tanto na dimensão do cotidiano e quanto do exótico, a projeção constante de outros universos no universo mesmo que percebemos usualmente. Imagens de fontes, objetos de mármore, templos obscuros, espelhos, coisas perdidas ou esquecidas – esse á a imagerie desenvolvida por Valentine em poemas soberbos que em alguns casos transformam-se em pequenas obras-primas da fusão entre poesia e ficção fantástica como em “hark to the rooks” e “a note about hats”, poemas sobre a perda da identidade pela pressão da Natureza e dos sistemas políticos. O segundo livro é “Inflammable Materials”, escrito pelo dinamarquês Thomas Strømsholt, cuja abordagem também é poética. Mas distingue-se do experimento de Mark Valentine por trabalhar uma outra tradição poética: o pequeno poema em prosa, construção que atingiu um grau de sofisticação apreciável nas mãos de autores como Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Oscar Wilde e Franz Kafka. Strømsholt ataca o gênero com perspicácia, astúcia, entrega e inteligência, trabalhando o sentido alegórico das pequenas construções narrativas com o cinzel da multiplicação dos sentidos – pois é o mistério da alegoria aberta o que alimenta o pequeno poema em prosa, efeito obtido com muita eficácia por Strømsholt notadamente no poema “The Glowing Heart”, gema wildeana na qual um inquisidor pagão – filósofo e poeta – confronta uma santa cristã, com resultados reveladores para ambos e, claro, para o leitor. O terceiro livro da amplitude que é Infra-Noir, “The Unfolding Map”, é uma pequena novela de John Howard. Trata-se de uma obra-prima da mistura que Howard costuma realizar entre realidade história, projeção fantástica e especulação filosófica. Pois a concisão e a precisão, aqui, aproxima essa refinada maravilha ficcional dos trabalhos de um H. G. Wells, de um Henry James ou de um William Gehardie. Na trama, acompanhamos as reuniões de um grupo, encabeçado por um líder nazista escalado por Berlim, em negociações a respeito das fronteiras, sempre móveis, entre Romênia e Hungria nos anos 1940. As discussões ocorrem em um fictício e refinado restaurante, localizado em fictícia localidade na Romênia – mas cada um desses elementos poderia ser real. Esse jogo de aparências está no núcleo da trama e de seu acontecimento climático, indefinível entre o sobrenatural, o mágico, o possível. O quarto livro fecha a metade poética de Infra-Noir: “Soot”, de Dan Watt, com ilustrações de Andrzej Welminski. Watt construiu uma prosa alimentada pela estranha confluência entre a humanidade e seus pequenos aparatos mecânicos, feitos para reconstruir e recortar obsessivamente uma realidade muitas vezes cinzenta, pétrea, sufocante. Esse jogo de enganos entre formas captadas pelos sentidos é exposto em seu âmago nos poemas de Watt e nas ilustrações de Welminski. Assim, temos personagens que buscam adivinhar estranhezas carregadas por outros, um circo que inverte o papel entre espectador e espetáculo, livros raros para rituais inabituais, transformações místicas. O quinto livro é “The Salamander Angel”, de Damian Murphy, outra novela com um curiosa estrutura de múltiplos personagens e pontos de vista. Trata-se de um formato bastante adequado, tendo em vista o fato da trama apresentar as múltiplas visões de um único evento apocalíptico, embora talvez invisível. A prosa da novela de Murphy segue uma formato obscuro e mesmo ocultista, com suas referências a rituais e práticas teosóficas, herméticas. As entrelaçadas visões dos personagens atingem um clímax imagético espantoso, inacreditável, com seus anjos apocalípticos transmutados de estátuas para um fragmento de magnetita, símbolo que serve como um tipo de unificador imagético. O último livro é mais uma novela, “The Slaves of Paradise”, de Colin Insole. A ficção de Insole se passa durante os anos de ocupação nazista da França, com essa estranha e ambígua mistura da vida cotidiana que seguia e as necessidades impostas pela colaboração e pela resistência. Esse universo, na trama, é o do cinema, que não poderia ser mais adequado para ilustrar as muitas ambiguidades da França sob ocupação nazista. A questão da traição involuntário e do logro deliberado – de uma perversidade acachapante – são os leitmotive da novela, com ressonâncias cinematográficas sutis: detectei referências aos filmes A sétima cruz (Seventh Cross, 1944) de Fred Zinnemann e O Boulevard do Crime (Les enfants du paradis, 1945) de Marcel Carné. Obra que não limita à homenagem de suas ricas fontes culturais e históricas, “The Slaves of Paradise” é outra gema preciosa dentro da vastidão de Infra-Noir. Infra-Noir segue a tradição hermética e sombria da fonte de seu título, a obra dos surrealistas romenos – em grande parte, conscientemente obscura ou perdida, uma vez que os membros dos círculos vanguardistas na Romênia utilizaram a obscuridade, a clandestinidade, mesmo o esquecimento como armas de resistência ao fascismo, nazismo e stalinismo. Foi uma estratégia arriscada, que parece também destinada ao ocaso em sua nova encarnação: um verdadeiro evento da literatura nessa segunda década do século XXI, a publicação das obras que estão congregadas em Infra-Noir, corre o risco de não passar das notas de rodapé de um ou outro veículo da mídia, voltada usualmente para a narração das pequenas e grandes catástrofes da Humanidade. Mas não é o que poderíamos esperar de algo tão monstruoso e tão magnificamente belo quanto um livro de areia? A vulgaridade, dentro dos muitos aspectos do humano, é aquele que sugere de fato a mortal platitude, a abismal superficialidade, algo que poderia dragar todo um universo para o nada. A relação com a vulgaridade é difícil, árdua, eventualmente épica – mas, em geral, consuma-se na celebração de repetições: de ideias, frases, momentos e formas em um perpétuo canibalismo que nem de longe sugere o homérico Eterno Retorno de Blanqui (ou de Nietzsche), embora essencialmente signifique que as coisas sempre voltam a ser elas mesmas e que essa é sua maldição mais tenebrosa. Mas nem sempre um desfecho assim pouco inspirador acontece: no extraordinário Satíricon, escrito poucas décadas após o nascimento de Cristo, temos a demonstração de como as conversas banais e a vulgaridade pavorosa do povão de Roma poderiam ser deliciosamente dissecadas e apresentadas ao leitor como um sangrento e suculento banquete. Com essa obra incrível de Petrônio, a inteligência e a esperteza tornaram-se elementos abertos para discussão e reflexão, enquanto a vulgaridade ganhou uma destruição tão sistemática que reemerge das cinzas, sem perder nada de sua essência, vingada e redimida. Séculos se passaram até o surgimento de obra crepuscular do mesmo naipe: Bouvard et Pécuchet, de Flaubert. O célebre criador da Bovary, em seu romance-testamento, criou esses dois idiotas que buscam um conhecimento enciclopédico e universal que os fizesse novos Leonardos Da Vinci ou Athanasius Kirchers, polígrafos contemporâneos com domínio em vastos campos do saber. Mas a idiotia de ambos, a surda e completa vulgaridade desses caracteres que se pretendiam talhados para grandeza do Olimpo, torna cada empresa mais espetacularmente frustrada que a anterior.
Essa mesma vulgaridade que torna falhado o intento de saída orna Bouvard e seu parceiro de uma aura trágica e patética: a grandeza que lhes escapa das mãos por conta de uma profunda idiotia os eleva acima de outros milhares de outros, igualmente imbecis e vulgares, que não ousam sequer fracassar tão estrepitosamente. São homens superiores, trágicos – personagens únicos que antecipam os patéticos de Samuel Beckett em um século. Após Flaubert, seria no século XX que outro escritor francês se arriscaria de forma tão completa e suicida no lodaçal do vulgar, cotidiano e comum (inclusive no campo da linguagem), obtendo resultados espantosos: trata-se de Raymond Queneau em seu Zazie dans le métro – na excelente tradução brasileira, Zazie no metrô. Queneau – ele mesmo, um grande admirador de Petrônio – inicia seu romance como uma espécie de jornada que nunca se cumpre: Zazie será frustrada em seu desejo, não conseguindo nada daquilo que ela mesma ou sua mãe gostariam que ela obtivesse em Paris com o tio Gabriel (diversão, conhecer o metrô). A trama é sacudida não apenas pela oralidade e pelo absurdo que a corta, pela deriva, com certa frequência, mas também pela instável identidade dos personagens, que trocam de sexo, de nome, de função social, de bandido para polícia, de polícia para tarado, de perseguidor para perseguido e vice-versa. Os lugares e as paisagens onde esses personagens transformistas realizam suas ações agonísticas, por outro lado, também parecem escorregar e variar, de modo que o Panthéon pode ser a Gare de Lyon, Invalides transforma-se na Caserne de Reuilly, e a “jóia gótica” que é Sainte-Chapelle vira o Tribunal de Commerce. Na repetição de fórmulas e sentenças – ou seja, de ideias – Queneau coloca a vulgaridade no jogo, pois a repetição sempre foi o atributo central do que é vulgar. O jogo aparenta ser velho, ainda mais se pensarmos em tanta literatura do século XX ou em um concorrente direto de Queneau, a turma de Alain Robbe-Grillet e do Nouveau Roman. Robbe-Grillet e seus apaniguados também apreciavam as repetições, as identidades falsas ou incertas, a instabilidade das paisagens, a relatividade fornecida pelo ponto de vista, a vulgaridade violenta. Mas o que diferencia ambos é que a prosa de Queneau é menos calculada e simétrica – amador dos “clássico”, sabia aproveitar a fluência da narrativa tradicional em uma síntese que não é mecânica e fria como aquela obtida pelos esforços de engenharia efetuados por Robbe-Grillet. Queneau aprecia a sátira e o experimento, mas é sábio ao utilizar todos os recursos disponíveis tendo sempre por norte a narrativa em si, inclusive (como bem percebeu Roland Barthes) uma espantosa unidade de tempo e espaço típica das tragédias. Zazie e seus amigos não são gélidas abstrações simbólicas indicadas por incógnitas matemáticas – usuais no Noveau Roman – mas personagens palpitantes, grotescos e vívidos, que se projetam qual seres vivos. As repetições, farsas e diálogos vazios desses seres quase fantásticos parecem romper a superfície estática do cotidiano, como se a vulgaridade ganhasse ares de mito. Talvez por isso a idade da protagonista seja uma constante incerteza: jovem demais, velha demais, mas nuca estável e inocente como as representações infanto-juvenis o exigem. Jorge Luis Borges decifrou Bouvard et Pécuchet ao mencionar como o tempo linear não afetava a dupla, que estaria idosa ou morta antes de alcançar a quantidade de conhecimentos correspondente à metade do romance. Não envelhecem porque o estofo de ambos é o mito. Assim, como Petrônio e Flaubert antes de Zazie, a vulgaridade em Queneau ultrapassa a armadilha da superfície e a repetição torna-se ritual, cômico e trágico, ao qual sentimos vontade de sempre retornar. A tradução brasileira, realizada por Paulo Werneck e editada pela Cosac & Naif, possui um projeto gráfico genialmente ardiloso. O projeto gráfico, inspirado nos cartazes de rua em estilo “lambe-lambe” dos anos 1950 (sempre em duas cores, vermelho e azul) transborda da capa para o interior do livro. Impresso em papel bíblia, as páginas são dobradas para ocultar uma imagem de um desses cartazes, reprodução de algum autêntico exemplar da época. Assim, durante a leitura, passeia-se do vermelho ao azul, enquanto vislumbra-se de leve uma imagem entre as páginas – um diálogo entre cor, forma e linguagem urbana completamente adequado tendo em vista a essência tão parisiense de Zazie dans le métro. Escritor, pesquisador, colecionador, Andrew Condous mesclou realidade, ficção, literatura, bibliofilia em seu livro Letters from Oblivion, cujo foco foi a editora de Bucareste Les Éditions de L'Oubli, especializada em obras vanguardistas de autores como Gherasim Luca e Dolfi Trost. Obra única, mescla de relato histórico, memórias e ficção, projeta livros reais que parecem saídos de louca extrapolação ficcional e livros utópicos que parecem palpáveis como a matéria do sonho.
As vanguardas do início do século XX, de certa forma, estabeleceram uma interessante possibilidade utópica e internacionalista, que contradizia certa mitologia nacionalista cultivada desde o romantismo. Essa possibilidade se evidencia em seu livro, em como processos de fechamento (do fascismo e depois do stalinismo) inviabilizaram o universo cultural no qual o surrealismo romeno era possível. Nesse sentido, foi esse elemento, essa outra história possível, que o levou a escrever Letters from Oblivion? Se não, qual seria o principal motivador? As motivações principais, inicialmente, foram mais simples ampliando-se depois para o que podemos contemplar agora. Uma motivação inicial foi a ideia de produzir um relato histórico sem precedentes, que incluísse uma abordagem na qual a maior parte dos eventos factuais, locais e algumas das publicações jamais tiveram qualquer documentação. Também pretendia incluir referências a indivíduos que não eram comumente associados ao movimento surrealista romeno. Por isso, evitei propositalmente incluir o que já era conhecido ou documentado com exceção do que fosse absolutamente necessário para fornecer um contexto relevante. Esse relato histórico serviria, igualmente, para dispersar as afirmações de que a editora Les Éditions de L’Oubli seria uma espécie de ficção, para dispersar o mistério que parece cercá-la. Também estava motivado a destacar um autor em particular que não estava diretamente conectado ao surrealismo romeno mas que, por outro lado, possuía relações com eles e suas editoras. Tal autor foi particularmente ignorado embora prevejo que isso possa mudar no futuro. Quando o descobri pela primeira vez, anos atrás, creio que meu sentimento foi similar ao experimentado pelos surrealistas franceses quando da descoberta das obras do Conde de Lautréamont. Uma segunda motivação foi de natureza pessoal. Alguns dos eventos que aparecem em Letters from Oblivion são, na verdade, testemunhos em primeira mão, que me foram transmitidos (com extrema paixão) anos atrás por alguém que estava em Bucareste à época e que teve contato com os surrealistas romenos, com outros autores das vanguardas locais e com os editores. O que mais o impressionara foi a relação simbiótica entre intensa atividade criativa e destruição generalizada presente em Bucareste no período da guerra e que marcou a produção literária de tal momento histórico. Desejava documentar alguns desses testemunhos na forma de memórias anônimas, sendo que meu livro surgiu como meio perfeito para isso. Sem dúvida, também senti que era necessário fornecer alguma perspectiva histórica a respeito da Les Éditions de L’Oubli tendo em vista sua recente ressurreição e a qualidade do material publicado nessa segunda encarnação. Letters from Oblivion possui uma estrutura muito interessante e dinâmica: trata-se da recuperação de uma experiência editorial (da Les Éditions de L’Oubli na Bucareste dos anos 1940), de fato, mas isso não restringe a trama tecida à mera função de catálogo. Fluxos poéticos e narrativos coexistem com a funcionalidade da historiografia. O que o orientou na direção dessa síntese? Houve necessidade de fornecer texturas e coloração aos livros descritos, do conteúdo de cada um deles, bem como da atmosfera da época e dos personagens envolvidos. Mais que simplesmente inserir detalhes elaborados a partir de cada um desses aspectos, pensei que o melhor seria fornecer fortuita prosa ficcional que tentasse refletir e condensar todos esses elementos. É preciso destacar que a mescla de fato e ficção serve, também, como reflexo da percepção incorreta nutrida a respeito da própria Les Éditions de L’Oubli. A intensa e breve produção da Les Éditions de L’Oubli, tanto em termos de qualidade editorial quanto artística, possuiria algum paralelo na própria Romênia? Houve outras editoras que se lançaram em aventuras semelhantes? De modo geral, costumo incluir dentro de uma elevada categoria artística e editorial a maior parte dos editores ligados às vanguardas romenas e outros movimentos artísticos menos conhecidos como o expressionismo, simbolismo e decadentismo romenos – tanto em termos de livros publicados quanto de periódicos (jornais e revistas). Há várias editoras e periódicos que poderiam ser citados (Unu e Alge seriam os mais notáveis exemplos entre as publicações), não nos limitando apenas a pequenas editoras, pois poderia mencionar algumas editoras maiores como a Socec. Vários editores em Craiova também mereciam, nesse sentido, uma menção em particular durante o período no qual vigoravam leis de restrição de publicações em Bucareste. Também é necessário mencionar as revistas dos simbolistas romenos, especialmente aquelas associadas a Macedonski – como Flacara e Versuri si Proza. No Brasil, um grupo de vanguardistas – que se autodenominava "antropófago" – subverteu a visão pitoresca e o exotismo convencional aplicado aos países tropicais, empregando esses dois conceitos como armas para produção estética. Haveria algo análogo entre os vanguardistas romenos os quais você pesquisou, talvez em sua posição geográfica "nos limites do Ocidente"? Como era o trabalho de autores como Trost e Luca com as noções de exótico e pitoresco que eventualmente foram aplicadas a eles? É interessante sua menção ao "antropófago", essa referência, que pode ser feita em relação ao núcleo do Grupo dos Cinco, salta à minha mente de forma imediata e, de fato, paralelos são possíveis com o mencionado Grupo, mesmo que os manifestos, tendências, trabalhos artístico-literários e contextos culturais sejam diferentes em algumas questões concretas – mas creio que não diametralmente diferentes, especialmente tendo em vista a base teórica de tais grupos (ou seja, Breton, Freud, Picabia, etc.). Uma análise comparativa seria um caminho interessante, embora complexo, a se explorar. Não saberia dizer, nesse sentido, se a posição geográfica da Romênia, por si mesma, foi um fator significativo – talvez a questão esteja mais em sua capital, a percepção de que era uma versão exótica ou, de certa forma, uma extravagante irmã mais nova da grande capital que é Paris, "a Paris do leste" como costuma ser chamada. De qualquer forma, em termos de literatura, essa comparação é relevante em muitos sentidos mas não em termos da internacionalização da literatura. Poucos autores romenos – incluindo, por exemplo, Tzara, Eliade, Cioran, Ionesco, etc. – e em sentido mais estrito outros como Luca ou Naum, são conhecidos pelo público estrangeiro, de um modo geral. A maior parte dos autores romenos, atravessando os diversos movimentos literários que caracterizam a literatura local (incluindo os membros do grupo surrealista), permanecem exóticos. Em geral, uma estética ocidentalizante, exótica e pitoresca é evidente em outras vanguardas romenas (os construtivistas e expressionistas, por exemplo) e em artistas como Scarlat Callimachi, Horia Bonciu, Aron Cotrus. Muito mais que nos surrealistas romenos. Para a maior parte dos leitores de fora da Romênia, a vertente surrealista local, a vanguarda em sentido amplo, mesmo a cidade de Bucareste, persistem em manter esse fascínio estranho e bizarro, no qual entram beleza e sofisticação mas que merece ser revisitado da mesma maneira que se vai ao museu: para obter mais um vislumbre de um objeto estranho, excitante e fora do usual. Certa vez, André Breton observou que "o centro do mundo se moveu para Bucareste". Para mim e para alguns outros fora da capital Romena, esse "centro do mundo" não mudou necessariamente de lugar em alguns aspectos. Um dos fatos que percebemos durante a leitura de Letters é como a construção de redes foi importante para a produção cultural vanguardista no século XX, com editoras e revistas conectando constantemente autores, leitores, comentadores, etc. Nesse sentido, Les Éditions de L’Oubli é exemplar. Ao que você atribui o sucesso dessa rede de conexões no caso de uma pequena editora na Romênia dos anos 1940, em plena Segunda Guerra Mundial? O sucesso, nesse caso, pode ser atribuído ao dono da editora, figura destacada em Letters from Oblivion, e sua esposa. Foi esse reduzidíssimo time e as muitas conexões – que possuíam com escritores da vanguarda na Romênia, impressores, fornecedores de artigos de papelaria, os correios, as várias "sociedades secretas" que floresceram à época – o que permitiu a publicação e distribuição dos livros produzidos. O extraordinário nível de dedicação, discrição e engenhosidade alcançado surge como algo quase impossível. Certamente, o comprometimento que tiveram destaca-se como um ato de coragem, tendo em vista o contexto extremamente delicado, perigoso e imprevisível. Além disso, é necessário destacar o antecessor movimento simbolista romeno (que envolvia Minulescu, Macedonski, Maniu, Bacovia), as conexões e estruturas estabelecidas por esse grupo literário, essenciais como alicerce para as interconexões que se estabeleceram no período posterior, das vanguardas. Embora Gherasim Luca seja um autor relativamente conhecido, traduzido e publicado, o mesmo não ocorre com muitos de seus companheiros (Trost, Teodorescu, etc.). Nesse sentido, nem mesmo o idioma seria um impedimento, uma vez que Trost – como Luca – escreveu também em francês. Qual seria, em sua opinião, o motivo desse injusto esquecimento? Dos surrealistas romenos apenas Gherasim Luca e Gellu Naum ganharam certo renome internacional. Dolfi Trost, Paul Paun e Virgil Teodoresco permaneceram relativamente obscuros. Isso é verdadeiro. Contudo, mesmo no caso de Luca e Naum, os primeiros trabalhos por eles produzidos também são pouco conhecidos e negligenciados até certo ponto. Por exemplo, no caso de Luca, seus trabalhos anteriores à Segunda Guerra Mundial são em larga medida ignorados. Quase todos esses trabalhos foram escritos em romeno, de modo que o idioma deve ter alguma influência nisso. Há um bom número de obras escritas durante os anos 1930, publicadas em diversos jornais e revistas, muitas das quais foram completamente esquecidas (algumas dessas publicações foram mencionadas em Letters from Oblivion, em especial no contexto do capítulo "The Outlaw"). Um exemplo mais óbvio são as primeiras publicações de Luca, consideravelmente obscuras: a infame (à época) Roman de Dragoste e Fata Morgana, de 1933 e 1937, respectivamente. Mas a teoria do idioma como limitador pode ser um pouco minimizada tendo em vista a atenção dada aos dois livros, escritos em romeno, que Luca publicou pela Editura Negatia Negatiei Negrata. No caso de Luca (e de Naum), é possível culpar esse esquecimento pelo fato das primeiras obras de ambos serem de difícil acesso. No caso de Dolfi Trost, o esquecimento não pode ser atribuído a questões de idioma uma vez que ele usou (como Luca) o francês como idioma predominante em sua escrita durante e após o período de atividade do grupo surrealista romeno. Atualmente, ele é em geral mais reconhecido por uma ou duas técnicas artísticas por ele inventadas do que pela sua obra escrita (com exceção de uma coautoria com Luca no livro Dialectique de la Dialectique), o que é injusto tendo em vista a excelência e a importância daquilo que ele produziu, especialmente o material publicado pela Les Éditions de L'Oubli e Infra Noir. Uma razão possível estaria no fato que Trost não possuía um bom nível de contato com os círculos parisienses que outros, como Luca, dispunham. Contudo, essa explicação seria relevante até certo ponto, especialmente porque Trost chegou a publicar dois livros no início dos anos 1950 em Paris (Visible et invisible e Librement mécanique). Penso que uma razão mais certeira da obscuridade de Trost se situe na decisão do autor em migrar para os EUA e abandonar a literatura (ao contrário de Luca, que continuou escrevendo e publicando em Paris) e no fato de suas primeiras obras serem tão raras. Acredito que essa obscuridade seria menor se um extraordinário livro que ele planejava lançar com Luca, mencionado em Letters from Oblivion, não tivesse "desaparecido" [nota: trata-se de L'Invisibilite d'une reve]. O esquecimento de Paul Paun e Virgil Teodorescu pode ser atribuído, de maneira mais direta, ao fato de nunca terem sido publicados fora de Bucareste (exceção feita ao último trabalho de Paun, publicado em Israel) embora, novamente, a dificuldade em encontrar as primeiras obras tenha alguma relevância aqui. Teodorescu, contudo, não pode ser considerado um estranho dentro dos limites da Romênia uma vez que decidiu permanecer em Bucareste. Minha esperança sincera é que esses três esquecidos surrealistas romenos possam ser descobertos e traduzidos para outros idiomas, uma vez que suas poderosas obras constituem importante contribuição ao movimento surrealista internacional. Indiscutivelmente, Trost, Paun e Teodorescu escreveram ao menos um trabalho que pode ser visto como uma das obras-primas da literatura de vanguarda romena na primeira metade do século anterior. Algo em seu livro me trouxe à mente a narrativa de um filme documentário – registro de fatos, mas também trabalho meditado de construção formal. Essa forma faz com que seu trabalho destoe da linha seguida pela Ex Occidente/Zagava Press, centrada na ficção, embora mantenha curiosamente uma relação íntima com outras obras igualmente únicas do catálogo de ambas editoras (penso especialmente em At Dusk, de Mark Valentine, com seus níveis de ficção poética e realidade histórica ao evocar a vida de poetas da vanguarda do século XX). Pretende retomar essa abordagem em livros futuros? Quais seriam, nesses casos, os temas possíveis? Ou tentará, talvez, a ficção? Sim, de fato pretendo utilizar novamente essa abordagem, mas de formas variadas. Atualmente, escrevo um ensaio fictício incorporando os trabalhos de ficção e teoria de Maurice Blanchot por conta de uma futura homenagem a esse autor, que será editada por Dan Ghetu e Dan Watt pela Zagava/Ex Occidente. Também estou nos estágios iniciais de desenvolvimento de alguns projetos mais ambiciosos. Um deles envolve o tema da fertilização cruzada das vanguardas e dos movimentos surrealistas na Europa e América Latina. Nesse trabalho, cada capítulo será dedicado a um autor latino-americano ou europeu que esteve fisicamente localizado, de alguma forma, entre esses dois continentes. Será uma pesquisa histórica transcontinental analítica, mas com relatos ficcionais. Conforme o livro avança, o nível de obscuridade do autor analisada também será maior. O mais importante e complexo livro ao qual me dedico será um segundo volume, dedicado aos desenvolvimentos ou extrapolação do que está em Letters from Oblivion. Esse livro consistirá, como conceito central, de uma singular e única abordagem da obra de Fernando Pessoa. O título, Fictions from Oblivion. Abaixo, gravura "entóptica" (ou seja, feita a partir das irregularidades de cor presentes na folha de papel) de Dolfi Trost, que iliustra seu livro Vision dans le Cristal, Oniromancie obsessionelle (Et neuf graphomanies entoptiques), publicado pela Les Éditions de L'Oublie em 1945. Em 2007, a Romênia ingressou na Comunidade Europeia. De certa forma, a afirmação anterior, verídica e correta, encarna uma dessas curiosas ironias da modernidade pois a Romênia sempre foi algo como uma nação fora do centro mais óbvio de qualquer que seja a Civilização, notadamente a órbita do Ocidente. E isso começa com o idioma, cuja estrutura central derivada do latim é cercada com vocabulário e outros elementos eslavos além de ressonâncias do húngaro – que muitos romenos diriam, não sem alguma razão, serem bárbaras. Talvez por isso as vanguardas das primeiras décadas do século XX, quando aportaram nesse distante país, foram apropriadas como novas formas de descentramento – surgiam novos idiomas, novas possibilidades de vida e novos continentes na pitoresca e bela Bucareste. Com a finalidade de explorar esse novo universo que se descortinava no seio de um cotidiano marcado pela disputa (posteriormente opressão) política mais feroz surgia a Les Éditions de L'Oubli, cujo curto período de atividade (1940-44) foi marcado pelo lançamento de obras pioneiras em edições ousadas – autores vinculados diretamente ao surrealismo romeno, como Gherasim Luca, Dolfi Trost e Virgil Teodorescu.
Vejamos um exemplo: o primeiro livro lançado pela Les Éditions cujo título era Poem in Leoparda, escrito por Virgil Teodorescu com ilustrações de Dolfi Trost (que utilizou a técnica por ele inventada "stilamancie", que produzia imagens semelhantes àquelas empregadas nos testes de Rorschach). Nesse poema, os dois autores/ilustradores descortinam um território selvagem e peninsular, habitado por animais fantásticos e por miragens complexas. Esse território possui, além de uma cartografia, um idioma – o poema se divide, bilíngue, entre o idioma fonético inventado para os leopardos, pleno de possibilidades polissêmicas, e o romeno. Desse livro único pouco restou – a página de rosto, alguns trechos do poema e duas ilustrações. Tal destino melancólico acomete parte dos títulos produzidos pela Les Éditions, que nos faz projetar esses livros perdidos no campo livre e amplo do imaginário, onde ressurgem como objetos de sonho/pesadelo, utopias e evocadas pelo registro histórico que, paradoxalmente, alimenta o mito e engana o esquecimento. De fato, o registro histórico, quando articulado com engenho e arte, permite ao leitor o estabelecimento de teias relacionais complexas, que tornam o balanço entre mito e história ainda mais denso. Assim, pode-se afirmar que o Poem in Leoparda de Teodorescu/Trost se associa, por sua poesia de invenção fonética e construção imaginária no estilo Imago Mundi, aos dadaístas e surrealistas; mas também não é absurdo imaginá-lo próximo de formas poético-narrativas distantes e diferentes como Los San Signos do argentino Xul Solar, outro vanguardista à margem que inventou um idioma. Nesse sentido, Letters from Oblivion, de Andrew Condous (autor tão misterioso quanto a editora que resgata do passado) surge como uma leitura poderosa. Ferramenta de resgate histórico e romance esotérico que refaz parte da trajetória desses livros míticos. Assim, acompanhamos o destino de cada um dos livros publicados e também daqueles que existiram somente em projeto, jamais concretizados, ao mesmo tempo que Condous reconstrói tramas, criações poéticas e concepções que alimentavam cada um deles. Os discursos da memória, da história e da ficção se cruzam mas não se dissolvem, mantendo certa autonomia. Não há um mergulho no quadro histórico do surrealismo ou das vanguardas em geral. Também não está presente uma análise sócio-política da Romênia no período da Segunda Guerra Mundil, quando Les Éditions esteve ativa. O eixo central de Coundous é a editora e seus livros, desviando desse foco apenas ao final, no longo e elegíaco capítulo cujo título é "The Outlaw" (o fora-da-lei) e que trata do destino de Victor Valeriu Martinescu, aliás Dalombra ("a sombra"), aliás Marele Contemporan ("Grande Contemporâneo"), aliás Haiduc (o "fora-da-lei") aliás VVM, importante articulador da vanguarda de Bucareste ainda nos anos 1930-40, além de impulsionador da própria Les Éditions. Poeta e ilustrador/pintor cuja obra se espalhou por periódicos diversos (inclusive os pertencentes ao grupo fascista romeno Guarda de Ferro, o que teve consequências terríveis no destino do autor após 1947), publicou apenas um romance e um livro de poemas por ele ilustrado. Diferente do que acontecera com outros intelectuais, escritores e artistas romenos que conseguiram escapar à opressão stalinista que se instaurava, Martinescu foi preso em 1947 na estação de Covasna, a primeira parada saindo de Bucareste. Após intenso interrogatório, foi enviado para a prisão de Jilava, onde passou algum tempo confinado na infame Câmera Zero. Nessa cela, cujo nome parece saído de uma narrativa de ficção científica pulp, havia apenas camas e um poderoso holofote central que impedia o estranho conforto fornecido pela escuridão. Condenado à morte, foi perdoado e solto em 1964. Viveu então trinta anos em Bucareste, comunicando-se com seus amigos do grupo surrealista e talvez escrevendo textos que se perderam ou seguem, ignorados, em algum local secreto. Sua morte, em 1994, permanece um mistério. Nos parece compreensível a escolha do capítulo final biográfico para um livro a respeito de uma editora cuja produção, hoje, é quase invisível – Martinescu, de certa forma, materializou em vida o destino dos livros da Les Éditions, um destino que permanece aberto para toda e qualquer obra de arte do mundo, também para cada um de nós. A edição de Letters from Oblivion é muito bem cuidada: a sobrecapa roxa apresenta o título, autor e demais informações do livro, que é de tecido igualmente roxo mas sem nenhuma marcação ou informação; objeto misterioso sem sua cobertura de proteção. A arte interna – fotografias, ilustrações –, bem como a tipografia, é primorosa; o usual das edições de Dan Ghetu e Jonas Ploeger, que retomam em pleno século XXI o nome e a tradição da Les Éditions de L'Oubli. Os dois editores (de Bucareste e Dusseldorf) dedicam-se igualmente ao pouco usual, poético, complexo, contraditório e descentrado. Esperemos que essa parceria seja bem mais longa e menos dolorosa que a primeira encarnação. Para o atarefado jesuíta Athanasius Kircher – colecionador do passado exótico, decifrador peculiar dos hieróglifos egípcios, inventor de instrumentos prodigiosos – o jogo de luz e sombra que simula o movimento/a vida, ou seja aquilo que um dia ganhará o nome de cinema, era muito mais que um truque vulgar para iludir os sentidos. Tratava-se, isto sim, de uma forma peculiar, única, de interação com a realidade: algo que se denominava à época magia – ou seja, as formas de acesso, positivas ou negativas, da Natureza e do Prodígio. Na cidade holandesa de Haia, não muito distante do lar do padre Kircher em Roma, o respeitado físico, matemático e astrônomo Christian Huygens construía imagens de esqueletos e assombrações em sequências animadas – um novo e excitante jogo de salão com luzes e projeções animadas. Ambos, Kircher e Huygens, eram adversários situados nos pontos da esfera do Conhecimento que vão da Ciência ao Charlatanismo. Mesmo assim, no caso do invento cuja paternidade é atribuída a ambos, a lanterna mágica, optaram por um caminho atravessado pelo Mal, pela morte, pelo grotesco e pelo riso histérico, eventualmente incontrolável – a magia dos emblemas de Kircher transforma-se em dança da morte em Huygens, a imaginação e a aplicação de conceitos da Ciência convergem em imagens grotescas. Essa união de facetas paradoxais, eventualmente complementares, na construção de um instrumento maravilhoso, tecnológico, inútil e malévolo aparece como leit-motiv central do novo livro de D. P. Watt, The Phantasmagorical Imperative & Other Fabrications. Nessa obra extraordinária, cada narrativa surge marcada pela tensão entre o prodigioso e o terrível, entre a beleza singela do objeto obsoleto/raro e a sangrenta imagem apocalíptica, entre a evocação elegíaca e o sorriso vermelho da ironia, em geral empapada de sangue.
A ficção de D. P. Watt anima-se de uma intuição antiga, que assolou Heráclito de Éfeso, por exemplo: trata-se da consciência de que há um espanto e um horror latente no fluxo de objetos mortos que acreditamos contemplar e manipular, na impossibilidade de interromper a cadeia de metamorfoses contínuas que sofremos, na perda definitiva de uma identidade que acreditávamos sólida apenas um minuto atrás. As narrativas que encontramos em The Phantasmagorical Imperative, superficialmente, poderiam ser vistas como o acervo de um belo e elaborado gabinete de curiosidades. Temos prestidigitação e metamorfose, objetos inanimados que ganham vida e vice-versa, música celestial proveniente de instrumentos infernais, efeitos e transições audiovisuais, seres feéricos e paisagens de sonho/pesadelo. Mas todo esse desfile selvagem é apenas a abertura da trama de transformação apresentada por Watt. Logo temos os protagonistas – não raro, simultaneamente testemunhas, vítimas, algozes –, outsiders que possuem algo de tocante: insatisfeitos com as limitações da vida, encontram em objetos, instrumentos, miniaturas e miragens novas possibilidades, talvez o que parece ser uma ou a única saída para o tedioso tempo cíclico da existência. De fato são, mas não da forma que eles imaginavam e essa solução irônica resume o imperativo fantasmagórico. Como bem observa Eugene Thacker no posfácio do livro, o imperativo categórico kantiano – a noção de que devemos agir somente segundo uma máxima cuja formulação é tal que possamos querer, ao mesmo tempo, que ela se torne Lei Universal – possui uma ressonância fantástica e fantasmagórica, uma brincadeira de faz de conta cujo objetivo é aplicar à ética leis férreas, invariáveis, intoleráveis e universais como as da matemática. Watt constantemente retoma a ambiciosa fórmula kantiana com resultados infinitamente sinistros. Como livro, The Phantasmagorical Imperative é um belo fascinante objeto. A belíssima edição da Egaeus Press evoca um objeto refinado, embora desgastado pelo uso, encontrado no canto de um antiquário. Tal efeito se dá pelo inteligente uso das tecnologias de impressão contemporâneas aplicadas à reprodução dos efeitos corrosivos do tempo, um jogo ilusório que antecipa os jogos que veremos nas tramas: por exemplo, na imagem da capa temos o esmaecido e tóxico sabor de obsolescência (a imagem da flor, a tipografia em hot stamp), mas o mesmo ocorre com a paginação e o layout. As imagens reproduzidas na edição são objetos encontrados, na melhor tradição surrealista. Há fotos e ilustrações aparentemente rasgadas (pertencentes a outros livros? Encontradas na rua ou em qualquer outro lugar? Editadas em softwares para parecerem velhos e desgastados?), cuja História truncada encontra um espelho nas tramas, tornando-se mais que ilustrações pontuais. São comentários que ligam as histórias ao acaso, ao caminho usual da mutação. O caminho que Watt optou por seguir em suas tramas – para deleite do leitor. Criador da Egaeus Press, escritor e editor, Mark Beech seria lembrado em primeiro lugar por editar de um pequeno fanzine literário de culto, Psychotrope, nos anos 1990. Nos dias atuais, com a Egaeus Press, sua visão sintetiza-se em “movido pelo conceito de que o mundo é uma casa mal-assombrada e pelo paradoxo de todos os mais sombrios medos da vida bem como seu maravilhamento mais extático são essencialmente um único e o mesmo.” (do site web da Egaeus Press).
Embora a Egaeus Press seja uma editora jovem, seus primeiros três livros lançados demonstram fôlego e um razoavelmente ambicioso projeto. Conte um pouco a respeito da história da Egaeus? Talvez as mais importantes considerações que me ocorreram quando iniciei a Egaeus Press se relacionavam em como me colocar diante de outras editoras. Desejava atingir a cena de publicações independentes e fazer os livros da Egaeus Press diferentes de tudo o que havia por aí tanto na forma quanto no conteúdo – o que era um pouco ambicioso demais, pra ser honesto. Do ponto de vista do design e dos negócios, existem coisas que fiz melhor nesses primeiros meses; outra que eu não poderia saber se eram razoáveis se não me arriscasse em tentativas. Mas os livros saíram melhores que o esperado, e penso que consegui o destaque que pretendia. Claro que tive bastante sorte em contar com Reggie Oliver, Stephen J. Clark e George Berguño como autores desses primeiros lançamentos. Meus próprios (bastante raros) escritos apareceram em (muito obscuras) antologias ao lado desses três escritores – embora nós nunca tivéssemos estabelecido comunicação – o que acredito me deu coragem para entrar em contato com eles, embora não tivesse certeza que esse nosso contato inicial tenha desempenhado qualquer papel na aceitação de minha proposta. Expliquei o que eu esperava atingir em termos de forma e conteúdo com a Egaeus Press e fiquei bastante satisfeito com a confiança deles. Uma das mais notáveis características das edições Egaeus Press está em seu design: ilustrações, arte, tipografia e a forma do livro, tudo isso mesclado em rara harmonia de maneira que mesmo uma edição de capa dura para leve e portátil como uma edição de bolso. Quais seriam as referências para esse requintado trabalho gráfico? Há algum editor do passado como influência? O único fator unificador no design dos livros da Egaeus Press é a impressão de idade; não necessariamente de que se trata de uma antiguidade preciosa, mas o produto de um outro tempo. Isso não pode ser feito através de pastiches – e eu acredito que nenhum dos livros da Egaeus Press possa ser visto confundido com um livro antigo – mas pelo uso de antiquadas convenções de design e elementos bem simples como a paginação de título e as folhas de guarda da capa. Espero que funcione de forma intangível no leitor – algo como um arrepio na nuca. Nõ estou certo se posso indicar muitos editores como influência específica no design dos livros. Adoro as velhas novelas infantis eduardianas e anuários pelo fato deles serem tão sobrecarregados de elementos, por vezes mesmo espalhafatosos. Mas evocativos. Livros adultos de qualidade daquela época eram mais austeros, embora houvessem belos exemplos em estilo art nouveau. Não tenho dúvidas de que esse tipo de livro não era levado muito a sério – da mesma forma, livros pulp vitorianos são lindamente evocativos. Mas apenas o empoeirado, esmaecido e os carimbos de biblioteca em velhos livros são inadvertidamente evocativos para mim. Com as criações em livros da Egaeus Press, tento capturar todos esses elementos e falhas em uma forma de arrepiar a espinha. Alguns editores possuem uma visão unificadora, mesmo um princípio, uma formulação teórica que serve como uma espécie de linha de desenvolvimento. Existe algo de similar a isso no caso da Egaeus Press? Seria possível definir sua editora com uma ideia, uma palavra, uma noção especulativa? “Obras mórbidas e fantásticas”, conforme o subtítulo da Egaeus Press, praticamente responde sua pergunta. Não perco muito tempo dizendo o que eu gosto e não gosto de publicar, porque eu frequentemente cruzo com narrativas que me surpreendem e desafiam suas próprias limitações. Há uma lista no site da editora que menciona o que a Egaeus Press aprecia… Incluindo coisas como “relógios e relojoaria”, “casas ancestrais caindo aos pedaços” e “tramas folclóricas europeias”, mas sou cuidadoso em não incluir aquilo que não gosto. Conforme alguma coisa tenha a sensação de pertencer ao mundo em que a Egaeus Press habita, isso provavelmente bastará para a publicação. Existiriam planos para a expansão do catalogo da Egaeus Press para outras traduções do fantástico: talvez autores mais antigos ou traduções? Se houver algo do gênero planejado, quais seriam os autores que poderiam ser traduzidos ou publicados? O mais difícil é encontrar tempo para expandir a Egaeus Press para as áreas que eu gostaria de explorar. No momento tenho o suficiente para me ocupar até o final de 2014, e ainda há projetos e ideias para além disso. Outra coisa é que eu gosto de trabalhar ideias de design dos livros a partir do que os escritores pensam, assegurando a eles uma parcela de participação. Isso se tornou uma parte muito importante do que faço. Os livros devem ter algo de seus autores. No caso da publicação/republicação/tradução de livros mais antigos, o problema é que autores já falecidos exigiriam uma abordagem diferente na questão do projeto. É passível de ser realizado, mas me tomaria sérias considerações. Esta entrevista foi realizada graças ao auxílio da Fapesp, como parte de atividades de minha pesquisa de pós-doutorado. No site da Web da Ex Occidente Press – editora que publicou alguns dos trabalhos de D. P. Watt – que, infelizmente, está atualmente desativado, era possível encontrar uma breve mas sutil e intrigante descrição daquele autor: “D. P. Watt é um escritor que vive nas entranhas da Inglaterra. Ele equilibra seu tempo entre conferências a respeito do drama teatral e concebendo novas ‘receitas criativas’ de métodos ‘ilegais’ e ‘heréticos’ para ressuscitar um mundo de terrível maravilhamento literário. Aparições recentes na Ex Occidente Press incluem uma coleção de histórias, An Emporium of Automata, de 2010, além de narrativas nas coletâneas Cinnabar’s Gnosis e The Master in Café Morphine. Sua primeira coleção de contos, Pieces for Puppets and Other Cadavers (InkerMen Press) foi publicada em 2006, reimpressa em 2010.” A ficção de Watt, na qual objetos usuais ou insólitos surgem como elementos de assombro e perturbação, está de fato próximo ao herético e ilegal. Os primeiros passos neste instável e fascinante universo podem ser dados na Casa do Interlúdio. Sua ficção (tomo por exemplo The Ten Dictates of Alfred Tesseller, uma maravilhosa novela plena de transformações), possui uma estrutura engenhosa, na qual há momentos em que a realidade narrada soa estável, mas os momentos de completa transformação – trata-se da melhor expressão que consigo pensar para sua ficção –, aproveitam os muitos elementos daquela realidade em formas novas, complexas e alteradas. Esse processo/mecanismo torna-se, dessa forma, a própria narrativa. O surrealismo parece ser uma referência inicial, mas não a única. As mudanças que vemos em sua ficção são mais livres que as narrativas de estrutura cíclica que encontramos em Alain Robbe-Grillet, embora haja um plano evidente que a torna, portanto, distante de técnicas como o “cut-up” ou a composição por livre associação que temos em William S. Burroughs. Você poderia comentar comentar algo a respeito desse processo de composição e das referências que utilizada nele? É um pouco difícil comentar a respeito de Tesseller, uma vez que essa novela é um caso particular. Eu estava tentando experimentar diferentes perspectivas de narrativa a partir de uma posição de fluxo. Os seres que narram estariam engajados diretamente com o leitor, afirmando que nos conheceram na juventude, mas também seriam nossa conexão com Tesseller, ele mesmo uma consciência em fuga, do além-túmulo. Cada seção foi estruturada por essa tentativa de criar uma percepção de contínuas transformações sem perder a coerência geral da trama que circunda Tesseller. Isso acontece em parte, mas há momentos em que há certo embaralhamento em alguns dos aspectos mais poéticos que tento introduzir. A transformação da realidade é importante para mim, sim, mas ela acontece na maior parte dos casos mais em termos teatrais que literários. O processo de composição se altera a cada história e não tenho nenhuma afiliação por qualquer movimento ou por alguma coisa tão bem elaborada quanto uma técnica que eu possa aplicar. Minha escrita parece, pelo que percebo agora, ser conduzida pelas cenas que emergem conforme as escrevo. Algumas vezes elas podem ser desenvolvidas com relativa coerência e respeito pela cronologia, outras vezes elas são muito distantes e posso levar meses para encadeá-las, exigindo mesmo permutas de uma história para outra. Mencionei na questão anterior os termos “estrutura engenhos” e “mecanismo” e percebo que, de certa forma, suas narrativas parecem fascinadas por esses elementos. Contudo, seu foco aparentemente não está em gigantescas construções que devoram o ser humano diretamente (comum, aliás, em certa ficção dos anos 1970, como por exemplo na cidade móvel do romance The Inverted World de Christopher Priest ou no labirinto infernal que vemos em Concrete Island, de J. G. Ballard), mas os mecanismos de engenharia sutil e escala menor, empregados para iludir a percepção postulada pela realidade cotidiana – os efeitos de prestidigitação, o cinematógrafo, o praxinoscópio, autômatos, bonecos de ventríloquo, etc. Qual seria a fonte desse fascínio? Sim, é verdade. Não tenho interesse nos monstros eternos sejam eles de regiões do espaço ou de apocalipses zumbi – embora ambos possam ser divertidos. Percebo que há uma infinidade de monstros e tendências apocalípticas dentro de cada um de nós. Me interessei pela forma como você menciona a “realidade cotidiana” e esses pequenos momentos que contribuem para a obtenção de um efeito mais amplo. O estranho, misterioso, sobrenatural, qualquer que seja a forma que prefira denominar esse efeito, ocorrer ao nosso redor. Não como a manifestação de alguma coisa, ou algo de outro lugar, mas como a exemplificação de nossa própria outridade: esses métodos ocultos e desonestos que empregamos para manipular, ferir e subjugar o outro. Fantoches, manequins para ventriloquismo, truques de mágica, etc. são os meios pelos quais é possível explorar o auto-engano através de nossa escorregadia, desvanecida ou defeituosa percepção do mundo. Como mencionei anteriormente, foi o mundo da atuação teatral que me influenciou em grande medida – O sonho de Strindberg, Ubu Rei de Alfred Jarry, as uber-marionette de Gordon Craig e os bio-objetos de Kantor. No teatro de marionetes e no carnaval, ou nos parques de diversões e feiras itinerantes, encontramos uma realidade alternativa que busca arduamente entreter através de certa teatralidade. Apenas com uma leve distorção o ator pode sutilmente distorcer o real e explorar nosso relacionamento com as coisas que nos parecem tão fascinantes e assustadoras: sexo, morte e nostalgia (ou sonhos). Tudo isso soa bastante grandioso. Mas não significa que deva ser – o oposto seria o mais exato, na verdade. É partindo dessas coisas menores e de pouco valor, experiências breves, eventos aparentemente sem importância que nos entretêm, onde creio se localiza a possibilidade da ficção comentar as vicissitudes do mundo com humor – desequilibrando o real, de forma lúdica e experimental. Nesse sentido, o cinema parece ocupar um espaço interessante: as imagens em movimento poderiam ampliar as infinitas possibilidades de engano e isso aparentemente se encontra replicado em sua ficção. Tenho em mente, nesse sentido, especialmente seu conto "Dr. Dapertutto's Saturnalia". Essa impressão possui algum fundamento? Em caso afirmativo, qual autor ou estilo cinematográfico seria o mais útil para sua inspiração narrativa? Fiquei intrigado pelo uso que você fez da palavra “engano” em relação ao cinema. Me parece que o ato de escrever também é manipulador e é necessário estar atento ao momento por ele acionado exatamente como no cinema. Isso é o que mais me interessa na relação entre autor e leitor. Mesmo que você trabalhe intensamente o andamento da narrativa escrita ele não vai acontecer da mesma forma que na tela. O andamento pode ser manipulado de várias formas sutis, por exemplo pela troca e retorno de perspectivas, mas exige do escritor mais controle e paciência para gerar algo que não seja simplesmente um confuso rebotalho. O cinema pode – e o teatro, de várias maneiras, também – sempre contar com seu aspecto visual para controle posterior do sentido e, como você mencionou, “engane”. Nos momentos em que os elementos mais extensos da ficção surgem, eles podem se constituir em revelações ou calamidades, pelo que eu entendo como desnecessariamente perturbadores, especialmente em formatos ficcionais mais curtos. A forma do filme que mais me interessa é a animação, especialmente os trabalhos de criadores como Starewicz, Barta, Svankmajer, Norstein e os [irmãos] Quays. O artificio aqui é óbvio, os materiais em geral pobres: lixo, madeira quebrada, brinquedos descartados, metais enferrujados, carne, poeira e sujeira. Disso tudo, tais animadores elaboram transformações mágicas através de um processo dolorosamente lento. Charles Patin, em suas cartas ao duque de Brunswick, descreveu um show de lanterna mágica patenteando a célebre expressão "l'art trompeur” para caracterizar esse estranho espetáculo no qual imagens “desdobravam-se ao nosso redor na escuridão". Essa expressão me traz à mente sua ficção, na qual elementos visuais surgem como essenciais na estruturação da trama, ainda que esses artefatos visuais logo se mostrem falaciosos. O que você poderia nos dizer a respeito do relacionamento entre elementos visuais, descritivos e literais em suas narrativas. Você utiliza algum procedimento visual (uma imagem ou objeto encontrado, por exemplo) como forma de preparação? Em geral, minha escrita se inicia a partir de um objeto particular ou imagem. No momento, estou bastante interessado em "cartes-de-visite" [um tipo de fotografia pequena, em geral gerada por impressão de albumina, patenteada por André Adolphe Eugène Disdéri em 1854] pois acabo de finalizar uma narrativa, "By Nature’s Power Enshrined”, baseada na possibilidade de encontrar um cartão em particular. O ambiente de encenação das primeiras fotografias de estúdio me fascina. A paciência para produzir alguma coisa bem semelhante à pintura e o equilíbrio cuidadoso dos componentes responsáveis pelo significado, tais como o pano de fundo, os adereços, etc. Agora, nós alegremente fotografamos cada segundo de nossa vidas para depois distribuir as imagens prodigamente a pessoas que em geral sequer conhecemos direito – ou seja, me parece que perdemos algo do cuidado da imagem ensaiada. Percebo que uma cena em uma narrativa atravessa um processo de “desdobrar-se ao nosso redor na escuridão”, na mente tanto do autor quanto do leitor. A verdade é que a clareza nunca está garantida em nenhum dos lados. Se ela sobrevive como uma imagem que intriga e provoca o pensamento, de forma semelhante à lanterna mágica, então creio que o atingido deve ser mais que suficiente. Evidentemente não tenho nada elaborado ou controlado como um procedimento de ação. Algumas vezes um objeto, ou imagem, pode ser muito próximo ou muito conhecido, e isso o torna difícil de ser trabalhado. Prefiro elementos que exijam algo como um novo trabalho ou exploração através da criação narrativa. Um de seus últimos trabalhos, publicado pela Egaeus Press, foi uma peça narrativa a respeito da transfiguração de Mr. Punch, essa trama teatral de cunho infantil, estranha e curiosa, que versa sobre violência e crime. De fato, a mim parece que seu trabalho está bem próximo dessa antiga obra popular. Sua abordagem das fontes antigas são, em geral, mais intuitivas, com a transformação de tais fontes em símbolos, ou prefere uma aproximação baseada em pesquisa história e mesmo arqueologia? Sim, Mr Punch me é caro, como são todas as marionetes, mas há algo especialmente duradouro na forma como Punch se desloca em seus vários disfarces por tantos lugares. Sua violência fala dos impulsos de adquirir a própria personalidade, às custas dos outros, e talvez algumas das minhas histórias exploram a tensão entre uma compulsão ética para a aniquilação do eu e o desejo implacável de marcar a presença, tornar-se conhecido perante o mundo. Certamente, existe pesquisa histórica, mas novamente isso ocorre de forma caótica, uma vez que eu tento esboçar, talvez "intuitivamente", talvez através de "símbolos", os elementos de um incidente histórico em particular, da vida ou do alcance de uma cultura que, pela ficção, pode ser entendida como uma ou mais versões grotescas de nossa realidade. Há algum plano de adaptação de seu trabalho para o cinema ou outro meio audiovisual, teatral ou multimídia? Não tenho planos, no momento, para adaptações de meu trabalho para qualquer outro formato. Bem, ninguém me fez qualquer proposta nesse sentido, de qualquer forma! Adoraria assistir curtas de minhas histórias, especialmente aquelas que possam evocar algo da estranheza de objetos que sempre me fascinaram. Como questão final, seria interessante saber quais autores, do passado e do presente, você nutre admiração ou considera importantes para a construção de seu estilo narrativo. Quando comecei a escrever peças em prosa, minhas tentativas seguiam algo em torno das linhas narrativas beckettianas, mas sem habilidade para extração e edição que alcançasse um ponto de absoluta pureza da expressão. No momento em que relaxei nas tentativas de emular os trabalhos daquelas que eu admirava, acredito que voltei a apreciar a leitura deles novamente — uma vez que não se tratava mais de aprendizado, mas de apreciar o trabalho pelo que ele era e não tentando formas de implantá-lo por mim mesmo. Posto isso, não saberia por onde começar na elaboração de um painel do que poderia ser importante em como meu estilo narrativo se desenvolveu a partir de outros autores. Talvez seria o suficiente apenas citar os autores cujos trabalhos tiveram poderoso efeito em mim. Meu principal interesse se localiza em escritores europeus, em especial E.T.A. Hoffmann, Maurice Blanchot, Stefan Grabinski, Franz Kafka e Bruno Schulz. Meu interesse em autores de ficção sobrenatural [tradução aproximada e possível de "Weird"] é bastante privisível e inclui Arthur Machen, Robert Aickman, Sarban e M. John Harrison.Há vários autores contemporâneos cuja obra eu aprecio, incluindo os trabalhos de Michael Cisco, Jonathan Wood e Derek John em particular. Esta entrevista foi realizada graças ao auxílio da Fapesp, como parte de atividades de minha pesquisa de pós-doutorado. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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