Para o atarefado jesuíta Athanasius Kircher – colecionador do passado exótico, decifrador peculiar dos hieróglifos egípcios, inventor de instrumentos prodigiosos – o jogo de luz e sombra que simula o movimento/a vida, ou seja aquilo que um dia ganhará o nome de cinema, era muito mais que um truque vulgar para iludir os sentidos. Tratava-se, isto sim, de uma forma peculiar, única, de interação com a realidade: algo que se denominava à época magia – ou seja, as formas de acesso, positivas ou negativas, da Natureza e do Prodígio. Na cidade holandesa de Haia, não muito distante do lar do padre Kircher em Roma, o respeitado físico, matemático e astrônomo Christian Huygens construía imagens de esqueletos e assombrações em sequências animadas – um novo e excitante jogo de salão com luzes e projeções animadas. Ambos, Kircher e Huygens, eram adversários situados nos pontos da esfera do Conhecimento que vão da Ciência ao Charlatanismo. Mesmo assim, no caso do invento cuja paternidade é atribuída a ambos, a lanterna mágica, optaram por um caminho atravessado pelo Mal, pela morte, pelo grotesco e pelo riso histérico, eventualmente incontrolável – a magia dos emblemas de Kircher transforma-se em dança da morte em Huygens, a imaginação e a aplicação de conceitos da Ciência convergem em imagens grotescas. Essa união de facetas paradoxais, eventualmente complementares, na construção de um instrumento maravilhoso, tecnológico, inútil e malévolo aparece como leit-motiv central do novo livro de D. P. Watt, The Phantasmagorical Imperative & Other Fabrications. Nessa obra extraordinária, cada narrativa surge marcada pela tensão entre o prodigioso e o terrível, entre a beleza singela do objeto obsoleto/raro e a sangrenta imagem apocalíptica, entre a evocação elegíaca e o sorriso vermelho da ironia, em geral empapada de sangue.
A ficção de D. P. Watt anima-se de uma intuição antiga, que assolou Heráclito de Éfeso, por exemplo: trata-se da consciência de que há um espanto e um horror latente no fluxo de objetos mortos que acreditamos contemplar e manipular, na impossibilidade de interromper a cadeia de metamorfoses contínuas que sofremos, na perda definitiva de uma identidade que acreditávamos sólida apenas um minuto atrás. As narrativas que encontramos em The Phantasmagorical Imperative, superficialmente, poderiam ser vistas como o acervo de um belo e elaborado gabinete de curiosidades. Temos prestidigitação e metamorfose, objetos inanimados que ganham vida e vice-versa, música celestial proveniente de instrumentos infernais, efeitos e transições audiovisuais, seres feéricos e paisagens de sonho/pesadelo. Mas todo esse desfile selvagem é apenas a abertura da trama de transformação apresentada por Watt. Logo temos os protagonistas – não raro, simultaneamente testemunhas, vítimas, algozes –, outsiders que possuem algo de tocante: insatisfeitos com as limitações da vida, encontram em objetos, instrumentos, miniaturas e miragens novas possibilidades, talvez o que parece ser uma ou a única saída para o tedioso tempo cíclico da existência. De fato são, mas não da forma que eles imaginavam e essa solução irônica resume o imperativo fantasmagórico. Como bem observa Eugene Thacker no posfácio do livro, o imperativo categórico kantiano – a noção de que devemos agir somente segundo uma máxima cuja formulação é tal que possamos querer, ao mesmo tempo, que ela se torne Lei Universal – possui uma ressonância fantástica e fantasmagórica, uma brincadeira de faz de conta cujo objetivo é aplicar à ética leis férreas, invariáveis, intoleráveis e universais como as da matemática. Watt constantemente retoma a ambiciosa fórmula kantiana com resultados infinitamente sinistros. Como livro, The Phantasmagorical Imperative é um belo fascinante objeto. A belíssima edição da Egaeus Press evoca um objeto refinado, embora desgastado pelo uso, encontrado no canto de um antiquário. Tal efeito se dá pelo inteligente uso das tecnologias de impressão contemporâneas aplicadas à reprodução dos efeitos corrosivos do tempo, um jogo ilusório que antecipa os jogos que veremos nas tramas: por exemplo, na imagem da capa temos o esmaecido e tóxico sabor de obsolescência (a imagem da flor, a tipografia em hot stamp), mas o mesmo ocorre com a paginação e o layout. As imagens reproduzidas na edição são objetos encontrados, na melhor tradição surrealista. Há fotos e ilustrações aparentemente rasgadas (pertencentes a outros livros? Encontradas na rua ou em qualquer outro lugar? Editadas em softwares para parecerem velhos e desgastados?), cuja História truncada encontra um espelho nas tramas, tornando-se mais que ilustrações pontuais. São comentários que ligam as histórias ao acaso, ao caminho usual da mutação. O caminho que Watt optou por seguir em suas tramas – para deleite do leitor.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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