A Primeira Guerra Mundial, conflito complexo, absurdo e incrivelmente sanguinário que varreu a Europa, foi um evento apocalíptico. É improvável que tenha sido o primeiro de sua categoria, mas é notável por sua magnitude: milhões de mortos e feridos, cidades calcinadas, economias arrasadas, revoluções esmagadas ou "traídas". Nesse mar histórico de águas turvas e turbulentas, a visão transforma-se em ferramenta essencial e a Arte ganha ares de clarividência, revelação, percepção extrassensorial, atividade visionária. A Arte de crise que foi o expressionismo, especialmente em sua configuração alemã, foi portanto uma expressão criativa e angustiada perfeita para o momento histórico em que surgiu, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Expressão inicialmente visual, o expressionismo logo se expandiu para universos criativos tão díspares quanto cinema e poesia e filosofia, pelo curto período de tempo de uma explosão ou de um lapso visual capaz de perturbador nossa percepção da realidade, uma vez que a proposta expressionista, saindo da esfera da subversão da Arte das galerias para o pacifismo e a reforma política, era utópica e irrealizável. "Superado" logo depois da Grande Guerra, empurrado para o canto do absurdo idealista por percepções que se autoproclamavam "realistas" ou "críticas", pois, como bem percebe Luiz Nazario – em ensaio pertencente ao alentado volume sobre o tema editado pela Perspectiva com o título O Expressionismo –, esse Renascimento judaico e laico que foi o expressionismo negava a permanência e seus muitos avatares, optando pelo sentido instável da constante ameaça de dispersão e exílio. A dispersão da morte e a realidade do exílio, aliás, assolariam os criadores egressos do expressionismo já durante a guerra mundial de 1914-17, depois ao longo do turbilhão de revoluções e regimes fortes por toda a Europa nos anos 1920-30 até a tomada do poder pelos nazistas na Alemanha, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Assim,os artistas que sobreviveram às perseguições e que se mantiveram mais ou menos fiéis ao espírito da crise, essência germinativa do expressionismo (alguns poucos artistas do expressionismo, é bem verdade, converteram-se ao nazismo, não raro para serem escorraçados pouco depois como ocorreu com Gottfried Benn) puderam, do exílio, assistir às detonações das duas bombas atômicas no Japão, estranho ritual de encerramento da Gerra de 1939-45 que parecia coroar a barbárie humana, o último tijolo na pilha de atrocidades. Isso aconteceu com, entre outros, o extraordinário Yvan Goll.
Nascido em St. Dié, Na França, em 1891, Goll representou a face mais cosmopolita da cultura alemã e européia desse início do século XX. Amigo de Stefan Zweig, Hans Arp, James Joyce, envolvido em polêmicas com André Breton, articulador de revistas literárias por boa parte da Europa e EUA, foi inicialmente um autor programático da vertente do expressionismo denominada "o grito social" por críticos como João Barrento. Poemas de Goll como "Der Panamakanal", recheados de um visionário messianismo social em versos como os seguintes (na tradução de João Barrento, na coletânea A alma e o caos: 100 poemas expressionistas): "Nada sabiam da libertação dos oceanos e da humanidade. / Nada da radiosa revolução do espírito." A crítica mais formalista – como a do próprio Barrento – pode torcer o nariz para essas imagens do primeiro momento poético de Goll, recheadas de uma exaltada e abstrata politização, mas é inegável que O fruto de Saturno ultrapassa os eventuais limites da figuração utópica ou meramente idealizada do trabalhador, da ciência, do progresso, do futuro. Diante do novo, obscuro e bárbaro mito atômico, Goll só pode dar a resposta poética de desconstrução desse mito através do curto circuito de concepções esotéricas moribundas. O resultado é um breve e intenso ciclo de poemas em inglês durante seu último exílio (nos EUA), no qual vemos o contínuo nascimento/destruição dos frutos atômicos da Árvore do Conhecimento. A reação em cadeia, possibilidade automatizável que faz surgir a energia atômica, é um processo no qual o nascimento e a morte surgem solidamente ligados, neutralizando a longa dança mítica das superadas religiões do passado. Ao mesmo tempo, a energia evocada pelo físico faz risíveis todos os feitos das divindades persistentes ou extintas ao fazer brotar um Sol, em pleno esplendor, no meio de uma cidade ou para prosaica missão de impulsionar um reator. Goll percebe muito bem que a nova religião atômica só pode ser compreendida e desmistificada pelo uso dos velhos esquemas de conhecimento, da velha religião e seus mitos: eis que, em seus poemas, vemos um desfile de entidades com espaço para Lilith, Raziel, Maimônides, Abulafia, Memnon, o Samsara. Os mitos esmagados ressurgem para saudar a destrutividade absoluta do novo mundo atômico, destrutividade essa que antes era apenas evocada nas epopéias pela imaginação poética: "Da terra surgira o Nome flamejante / Dos verticilos florais dos chifres espectrais / Na hora alta da morte." O pequeno ciclo de poemas de Yvan Goll teve um tratamento editorial merecido dado pela brasileira Sol Negro Edições, de Natal (RN). Um trabalho artesanal e minucioso de design faz o livro bilíngue uma pequena joia editorial, com a reprodução de imagens extremamente significativas acompanhando cada poema, além de introdução crítica e um interessante manifesto de autoria de Goll, com sua peculiar visão de surrealismo. Esperamos, ansiosamente, não apenas novas edições da Sol Negro, mas que sua iniciativa inspire outras iniciativas em nosso país.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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