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Domu

3/15/2015

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lguns autores e artistas correm um risco curioso: ao invés do temor gerado por uma produção eventualmente insípida, o problema desse grupo é a possibilidade de ser dragado, sumarizado e reduzido a uma única obra, em geral considerada de grande importância artística e/ou histórica. O autor destruído por sua obra-prima, que se vinga de algum agravo desconhecido ou inconcebível. Um dos membros exemplares desse grupo, não temos dúvidas, é o autor de mangás e animés Katsuhiro Otomo, nascido em 1954 no distrito de Miyagi. Otomo, ainda ativo e produzindo suas criações, parece o autor de uma obra só: o mangá logo convertido em animé Akira (1982 como publicação impressa; 1988 como animação). Embora o impacto do mangá, continuamente publicado no Ocidente por editoras influentes como a Black Horse, fosse considerável, nada serve como preparação para o assalto aos sentidos que é a animação de 1988. Com o custo aproximado ¥1.100.000.000 (considerado altíssimo à época e mesmo nos dias de hoje, isso se pensarmos em filmes live action), Akira rompeu uma velha tradição dos animés: o uso da "animação limitada" – na qual há sobreposição e repetição de pedaços de cenas e personagens – para as mais diversas situações, economizando tempo e número de quadros. Cada detalhe da Tóquio futurista explode na tela com um detalhamento excruciante, alcançado graças às mais de 160.000 células de animação empregadas. O escopo épico da realização multimídia de Akira (mangá de 2000 páginas em traço fino, afiado e hiper-detalhado que se transformou em uma animação de custo gigantesco e que mobilizou potências do entretenimento japonês na produção), não há dúvidas, coloca na sombra muito do que Otomo produziu antes e depois. Mas esse não deveria ser o caso de uma das primeiras graphic novels assinadas pelo jovem Otomo, Domu, publicada como série entre 1980 e 1981 e em versão final em 1983.

Trata-se apenas do quinto trabalho de Otomo em larga escala; mesmo assim, impressiona a maturidade e regularidade do traço barroco do quadrinista, bem como sua desenvoltura em trabalhar uma trama rocambolesca e cheia de personagens peculiares, no limite entre a caracterização quase surrealista e a caricatura brutal dos suburbanos de Tóquio. Na trama, acompanhamos as investigações de um time de policiais que busca elucidar suicídios e mortes bizarras, todas ocorridas em um titânico conjunto habitacional nos subúrbios, o Tsutsumi Housing Complex. Logo os investigadores percebem que o problema que enfrentam é bem mais complexo que imaginavam: trata-se de uma força destrutiva, humana mas não-natural. Apenas um poder semelhante, em sentido contrário, pode resolver o problema: o embate final ganha dimensões míticas, o confronto entre o princípio da morte/destruição e o princípio da vida/permanência. A batalha desses princípios impessoais resulta, evidente, em destruição em massa, provação pela qual passam os policiais, moradores e o próprio edifício temível, espécie de personagem infernal envolvendo nas teias funcionais de loucura seus habitantes. Durante a vertiginosa trama, mergulhamos na vida dos moradores em seus cubículos da mesma forma que o poderio destrutivo, esquadrinhando os detalhes mais sórdidos de um modo só igualado pelo The Invisible Men de H. G. Wells – um feito considerável para o escritor e desenhista em início de carreira. Por outro lado, a trama lembra os primeiros filmes de David Cronenberg, especialmente Shivers (1975), embora antecipe Scanners (1981), ao menos como ideia. Essa proximidade com os temas e formas do moderno cinema fantástico foi o que provavelmente chamou a atenção de Guillermo del Toro que tentou (sem sucesso) adaptar Domu para o cinema.

A graphic novel teve boas traduções no Ocidente: a norte-americana (pela Black Horse com o título Domu: A Child's Dream; como se encontra fora de catálogo, essa edição alcança a casa das centenas de dólares em sites como Amazon ou Abebooks), a francesa (pela Les Humanoïdes Associés com o título Dômu: Rêves d'enfants, edição também esgotada) e a espanhola (pela Norma Editorial, com o título traduzido como Pesadillas; a terceira edição, de 2009, ainda está disponível para compra). De todas as edições a espanhola é a que mais me agrada: a arte da capa, minimalista embora sem abandonar certa figuração surreal, capta bem o foco de Otomo no conjunto habitacional, cubo mágico e prisão. Ou um inferno em que o outro se desdobra no próprio ambiente que cerca cada personagem, o mais eficaz de todos os infernos.
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