Das muitas invenções maravilhosas do engenho humano, deixadas de lado pelo inexorável progresso tecnológico, uma das mais saudosas deva ser provavelmente a lanterna mágica. Pois a projeção de imagens luminosas, que parecia criar todo um universo repentinamente de uma superfície bidimensional em branco pareceu aos nossos antepassados não apenas uma conjura mágica, mas mesmo a materialização perfeita dos jogos metafísicos de nosso mundo e da nossa existência. Não é por acaso que historiadores do cinema primitivo como Laurent Mannoni cheguem a lamentar a extinção dos espetáculos lanternistas – efeito colateral da ascenção do cinema, com suas “pobres” e instáveis, mas baratas, imagens em preto e branco nos primeiros tempos em que o cinematógrafo se impôs como divertimento óptico sem concorrentes. A possibilidade mágica da projeção de imagens mais ou menos fixas – uma vez que elas permitiam, ao sabor da habilidade do lanternista e da qualidade da máquina de projeção, efeitos diversos como fusões, alteração de foco, mudanças de cor, ampliações e reduções da imagem projetada. Por conta dessa versatilidade, que poderia modificar qualquer narrativa proposta pela sequência de imagens projetadas, a lanterna mágica tornou-se um poderoso reforço à ilustração, uma ferramenta preciosa em colóquios, exposições, aulas ou convenções científicas. Da mesma forma – e também por questões relacionadas ao “esclarecimento”, ainda que superficialmente – a lanterna mágica possibilitou esse espetáculo único que era a Fantasmagorie de Étienne-Gaspard "Robertson" Robert, que surgiu na virada do século XVIII para o XIX e que se beneficiou, para sua exposição de atrocidades, dos cadáveres decapitados ainda frescos das vítimas da Revolução Francesa.
Para Robertson e outros concorrentes, que apresentavam espetáculos similares, tratava-se de uma luta contra crenças absurdas e irracionais em demônios e fantasmas empregando no processo de desmistificação o mesmo “veneno” que pretendiam combater – fantasmas, demônios, esqueletos e demais aparições que voavam graças aos trunfos da projeção. Robertson, assim, não apenas impulsionou o gênero gótico – que saltava da literatura e ganhava um aspecto audiovisual a cada espetáculo fantasmagórico – como, de certa forma, colocava em questão a própria estabilidade do mundo percebido pelos sentidos, o mundo que parecia (e ainda perece, em alguns casos) tão sólido e confiável. Nada mal para um aparato inventado no século XVII, de provável paternidade flutuante (entre dois sábios/cientistas/inventores de temperamentos e naturezas bastante distintas, Athanasius Kircher e Christiaan Huygens). Baseada em um princípio de projeção muito mais antigo: a luz artificial de velas e os efeitos de sombras móveis projetadas – descrito em escritos de autores como o poeta Mathurin Régnier e Jean Prevost ainda no século XVI – a lanterna mágica surge como uma invenção par excellence de uma era que teria na crença segura na beleza e na validade do progresso científico seu vértice. Talvez por isso seja um outro sábio, inventor, polígrafo do século XVII, Emanuel Swedenborg, não diretamente relacionado à invenção da lanterna mágica, quem ofereça a mais peculiar forma de aproximação para com aquele popular aparato óptico e luminoso. Para Bernhard Lang, na introdução para a tradução espanhola, editada pela Siruela, da obra mais famosa de Swedenborg, Del cielo y del infierno, a original visão religiosa de Swedenborg delineava o universo espiritual como um gigantesco espetáculo de lanterna mágica. A lanterna e seu repertório de imagens corresponderiam à alma, a luz produzida no aparato seria o influxo divino enquanto as imagens projetadas teriam analogia com o universo que cercaria cada alma. A lanterna mágica se transforma não mais em um mero aparato de uso limitado, divertimento óptico, mas em metáfora visionária – pois a prosa de Swedenborg é viva, movimentada e frenética como um verdadeiro filme – para um universo em que as interações visíveis se comunicam com outras, ainda mais extraordinárias/visionárias, além de invisíveis aos sentidos usuais. Seguindo esse caminho, o breve mas intenso livro Several Clouds Colliding de Brian Catling e Iain Sinclair torna-se uma referência essencial não apenas por trabalhar com um pequeno, mas bastante significativo acervo de slides para lanterna mágica relacionados com Swedenborg mas também por perceber como o universo evocado pelos escritos de Swedenborg – baseado em cortes, transformações, e mutações de forma, tamanho, cor – se aproxima do espetáculo da lanterna mágica. Assim, logo na epígrafe, lemos um texto espantoso de Swedenborg, retirado de seu último trabalho entitulado Vera Christiana Religio (publicado em Amsterdam, 1771; traduzido para o português com o título Verdadeira Religião Cristã). No trecho, Swedenborg descreve uma visão, que se inicia com um meteoro, que se funde a nuvens multicoloridas em um turbilhão cortado por raios. Esses raios sofrem transmutação: são agora pontas de espadas que se quebram, logo transformadas em pugilistas que empregam movimentos cadenciados durante um embate. Ou seja: o conflito de sugestão sangrenta (as espadas que se quebram) atravessa um processo simbólico e imagético de mudança, tornando-se uma disputa regrada e não mortal, um evento esportivo. Mas a estabilidade fornecida pela leitura dos elementos da visão nos é novamente negada; o visionário busca observar o que há além do meteoro, e percebe (em transição abrupta) um grupo de pessoas de todas as idades entrando em um edifício de mármore e pórfiro, uma casa encimada pelo fenômeno natural/simbólico até então descrito por Swedenborg. Ao perguntar para um dos jovens que estava no local (nova transição abrupta, pois repentinamente o visionário deixa de descrever o universo que vê mas dele participa) o que era tudo aquilo, finalmente obtemos uma resposta: “um ginásio no qual jovens são iniciados em assuntos concernentes à sabedoria.” Os fenômenos naturais que alimentaram o primeiro momento descritivo da visão (meteoro, nuvens, raios) são convertidos pela leitura do visionário em elementos simbólicos (as espadas que se quebram, revelando movimentos agressivos, mas não mortais) para terminar, ao final, um traço peculiar de uma edificação de sonho, com o qual o visionário interage de modo corrente e do qual nos envia impressões narrativas completas. Um hábil lanternista como Étienne-Gaspard Robertson veria com inveja essa apreciável demonstração de talento imagético e cinematográfico. Assim, Several Clouds Colliding surge como o resultado de uma pareceria dos dois autores na pesquisa dos arquivos da Swedenborg Society. Tal sociedade dedicada à vida e obra de Swedenborg, cuja sede fica no bairro de Bloomsbury, no coração de Londres, não poderia estar melhor localizada: Londres foi a cidade em que Swedenborg passou parte de sua vida, teve uma iluminação fundamental, que representou mudança decisiva na carreira do sábio, e morreu. Portanto, os documentos armazenados na Swedenborg Society – fundada em 1810 – são riquíssimos. Um dos ramos desse acervo são as placas de vidro luminosas empregadas em lanternas mágicas, recurso usual de sociedades científicas no século XIX, material que Catling e Sinclair utilizaram menos como corpus de pesquisa histórico-acadêmica e mais como fonte poderosamente sugestiva para inquietações poéticas, narrativas, aforísticas. Já no primeiro capítulo, “Eyes no Eyes” Iain Sinclair adota uma postura do lanternista que necessita comentar a imagem projetada, de modo improvisado e prolixo mas sempre surpreendente. Assim, uma fotografia – transferida para a lâmina de vidro, processo comum até o início do século XX e que aproximava a lanterna mágica da fotografia – mostrando os participantes de um congresso swedenborguiano em 1910 transforma-se na oportunidade de um longo comentário cinematográfico de Iain Sinclair, que inclui referências a Fitzcarraldo (1982) de Werner Herzog e King Kong (1933) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. No segundo capítulo, “Commentaries”, Sinclair prossegue com tal método, aplicado não mais às lâminas de vidro para projeção mas a estranhos e/ou curiosos itens catalogados na coleção da Swedenborg Society. São breves instantâneos poéticos em que o elemento descritivo se cruza com certa tendência ao abstrato, à dissolução da linguagem que se torna algo como um elemento (decorativo? evocativo?) da imagem. O “arquivista” (como Sinclair se autodenomina ao longo desses capítulos) toma a atitude de imaginar histórias a partir desses itens antes de conhecer a história de cada um deles: realidade e ficção se chocando no momento mesmo de constituição de cada um deles. As reproduções fotográficas, em branco e preto, que ilustram os dois capítulos não auxiliam na compreensão da verdade, na separação entre realidade e invenção: sombrias, algo indefinidas, contribuem para que a ficção e a realidade não se distingam. Os capítulos escritos por Brian Catling são menos densos, breves, vinhetas poéticas ilustradas (ou ilustrando) as imagens de placas luminosas selecionadas do acervo da Swedenborg Society. Afinal, trata-se de um trabalho menos de pesquisa e muito mais de performance artística, que culminou em um happening no qual Catling engolia filmes fotográficos, reprodução em tom quase de bufonaria da visão mística que Swedenborg teve ao final de um jantar em Londres, a 26 ou 27 de outubro de 1744. Contudo, em “Lantern Slides”, Catling define muito bem a fascinante instabilidade e fragilidade dos slides em vidro das lanternas mágicas: “Muitas [das imagens nos slides] passaram pela transformação que caracteriza a gloriosa condição usualmente descrita como decadente. Transformação que ocorreu através de rachaduras e desequilíbrio químico. Até o esvaecimento e o abandono.” Resenha produzida graças ao apoio da Fundação Biblioteca Nacional, através de seu programa de pesquisa PNAP-R.
0 Comments
Leave a Reply. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
Categories
All
|