"Uma após outra, todas essas Terras são submersas em chamas renovadoras, para renascer antes de serem novamente consumidas, o fluxo monótono de uma ampulheta que eternamente se esvazia e gira a si mesma para nova contagem. É algo novo que sempre será antigo; algo antigo que é novo."
(A eternidade pelos astros, de Louis-Auguste Blanqui) Após muito tempo de elaboração, o projeto de crowdfunding da adaptação do conto "The Extinction Hymnbook" – presente nas espantosas coletâneas The Gift of the Kos'mos Cometh! A Homage to Night and Kosmos e Lanterns of the Old Night – para formato graphic novel, ilustrada pelo jovem e talentoso Fabio Laoviahn, está pronto e consumado. Alguns desenhos podem ser vistos na galeria a seguir e o link para a campanha encontra-se disponível no link abaixo. Extinção: Projeto de Graphic Novel
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O livro de horas de Jeanne D’Evreux (foto retirada de medievalfragments). Toda uma nova mitologia poderia ser desenvolvida tendo por base os livros possíveis, aqueles que foram imaginados mas nunca escritos. Ou que se perderam para todo o sempre em uma dessas mudanças de trama da História, sempre cruel com a fragilidade da imaginação. Há um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que parece oferecer uma perspectiva terrivelmente sedutora para qualquer escritor. Trata-se de “El milagro secreto”, parte da seção “Artifícios” do livro Ficciones (1944), que fala de um poeta que, após rápida condenação por um tribunal nazista, encontra-se diante de um pelotão de fuzilamento. Ele trabalhava em uma peça de teatro particularmente difícil e seu desejo, possivelmente, seria terminá-la antes das balas de seus algozes destroçarem seu corpo. Era, evidentemente, uma esperança vã, mas alguma divindade ouviu o poeta e concedeu-lhe um ano, entre o momento do disparo e o impacto das balas, para que ele concluísse sua obra. Assim foi feito e logo que os últimos reparos foram finalizados, as balas se colocaram novamente em movimento. O poeta, protagonista do conto, não teve tempo ou possibilidade de realizar sua obra definitiva em um formato editorial cabível; apenas sua memória e a divindade que teve com ele alguma consideração conheceriam o conteúdo do que havia projetado em sua mente. Por isso, Borges, autor e narrador, oferece ao leitor não uma reprodução dessa obra insólita, inacessível e não registrado, mas seu insólito percurso. Nesse sentido, Mark Valentine nos oferece o mesmo em seu Wraiths – o percurso sinuoso, insólito e complexo de obras que nunca chegaram a tomar forma ou que se tornaram invisíveis.
O ensaísmo de Mark Valentine é vibrante, inovador e sugestivo. Um dos aspectos desses ensaios, sem dúvida, é a abordagem/recriação de obras perdidas, inacabadas, invisíveis. Em Wraiths, temos dois de seus ensaios focando essa forma específica de criação não existente, de possibilidade não concretizada mas que atiça a imaginação de um tipo muito específico de animal – o bibliófilo, o indivíduo que nutre essa fascinação obcecada, algumas vezes torturante, pelo livro, como objeto, forma, conceito. O primeiro ensaio é justamente “Wraiths” (algo como “espectros”) e trata dos livros de poesias que provavelmente foram produzidos na virada do século XIX para o XX na Inglaterra, mas que aparentemente não existem de fato. A época foi povoada por livros de poemas breves e preciosos, pequenas jóias da indústria editorial, mas nem todos tiveram essa materialização essencial, a forma definitiva do livro. Os livros de poemas imaginários descritos por Valentine são como miragens complicadas, cuja existência é atestada inclusive por testemunhos, mas que se desvaneceram e não deixaram vestígio. Valentine, nesse primeiro ensaio, utiliza esses testemunhos, essas evidências indiretas para tratar de tal corpus invisível; trata-se de uma metodologia inteligente, pois essas evocações indiretas trazem ao leitor algo da vida incomum desses criadores de obras primas desmaterializadas. Essa evocação fornece, por um paradoxo de representação, algo como um vislumbre de seus poemas perdidos. Pois, de fato, tais criações inexistentes vão ainda mais longe que esses sonetos esparsos e vaporosos que Mallarmé escreveu para impressão em leques. Esses autores de obras perdidas atingiram algo como a concretização de uma utopia da imaginação: a construção poética tão breve, suave, sofisticada, que se dilui em fragmentos ominosos ou felizes na própria existência do poeta e em sua época. O segundo ensaio, “What Became of Dr. Ludovicus”, trata da aventura de criação não realizada ainda mais intrincada: um romance perdido, que fora escrito a quatro mão por Ernst Dowson e Arthur Moore. Tratava-se de um “shocker”, que era a maneira como os vitorianos denominavam romances centrados em elementos bizarros, inquietantes e/ou sobrenaturais. O ensaio acompanha a produção do romance através de cartas trocadas entre os dois autores; o nível de detalhamento desse processo de produção, evocado por Valentine, é bem grande, incluindo detalhes como o uso de um caderno de notas compartilhado que ambos autores empregavam para escrever os capítulos. O leitor acompanha, assim, o desenvolvimento (algumas vezes problemático) de cada capítulo e o destino do material finalizado, rejeitado sistematicamente onde quer que os autores tentassem publicá-lo. Rejeição justa, tendo em vista a qualidade, ou uma miopia editorial, tão frequente, diante de um material interessante? Valentine coloca essa questão em aberto, ressaltando contudo – com sua alma de bibliófilo – como seria interessante se o livro tivesse existido, conhecer sua narrativa tendo em vista uma origem tão aparentemente rica e tumultuada. Essa, talvez, seja a essência mais evidente do livro, o elo de união entre os dois ensaios: o desejo pela existência de um livro, de certa forma, pode fazer com que o próprio o leitor (que já se converteu em pesquisador, investigando pistas de sua paixão aqui e ali), por uma sorte de magia evocatória, realize essa prestidigitação de um livro perdido que faz com que, do nada, surja alguma coisa. Como livro, Wraiths é um objeto delicado e precioso, de fato uma bela homenagem à arte editorial fin de siècle. Apenas título surge, dourado, na capa – uma fonte sinuosa parece marcar aqui ao mesmo tempo ousadia e contenção, único traço distintivo em um papel rugoso e cinza, como a textura pouco polida, mas rica em nuances de uma pedra. As duas ilustrações de Ronald Balfour, que abrem os ensaios, parecem evocar de forma decisiva e nada sobrecarregada, a época vitoriana. Curiosamente, o próprio livro de Mark Valentine, hoje é parcialmente invisível – a editora Zagava informa que a tiragem de 50 exemplares já se encontra esgotada. Embora os ensaios possam ser encontrados em outros livros (notadamente, na excelente coletânea de ensaios Haunted by Books da Tartarus Press) a preciosidade desse pequeno livreto, tão delgado que poderia desaparecer a qualquer instante, é insubstituível. A edição especial de Extinction, the Notation Script finalmente está pronta. Seu formato sanfonado e alongado, com sobrecapa especial, contendo ainda duas imagens bastante significativas (aos que conhecem o conto e o roteiro). Essa versão terá apenas dez exemplares (os subsequentes terão acabamento convencional e tamanho A5). Essas versões especiais ainda estão disponíveis neste link (também há a versão digital, em epub ou PDF).
(O martírio de Santa Catarina, de Albrecht Dürer) As rodas do suplício se romperam com a explosão & morte dos carrascos & o céu se crispou & trovejou uma chuva de pedras, contudo o fogo terrestre se afastou de Santa Catarina, ela cuja pescoço estava lacerado pelo ferro & ainda assim findava. Mas há algo mais sobre essa imagem, ou melhor, está mais completamente escrito em conformidade com o eterno pelo que foi entalhado na madeira. A roda está ao centro, um pouco excêntrica, como se se tratasse do centro de um leque, que é completa embora não circular. E há uma manivela para mover a roda & essa roda é dupla & as duas metades giram em sentido inverso, da mesma forma que se abre um leque. As chamas fluem dessa rotação como a água de um moinho & os fragmentos do solo da colina se precipitam na direção delas, que persistem, & as árvores na parte superior estão em outro plano, dispostas horizontalmente, empilhadas, descendo da seção à direita, sobre uma nuvem & alimentam o giro da roda. A chuva que cai do céu desaba sobre os dois lados de um triângulo isósceles no qual as extremidades são a base: a base preenchida torna-se curva (a forma do pluviômetro) & cria o braço direito do carrasco, as vestes erguidas & a espada à direita, outro lado é coberto pelo braço esquerdo, que leva ao ar igualmente as vestes de acordo com a ventilação das aletas e da roda como se fosse um catavento & as duas orelhas foram um pentágono no qual a pandorga se inverte & a forma do triângulo é visível também, uma significação de Deus, o Pai de fogo que surge entre as nuvens pesadas. Acima é possível ver a cidade, sustentada pela roda, na qual há uma colina que desce desde o céu & que alcança seu ponto inferior onde a terra se converte nos carrascos mortos & as folhas ao redor da roda & há três níveis na imagem, significando cada um dos três mundos. A sinuosa colina é harmoniosa com as dobras da vestimenta & a bela linha dos músculos das pernas dobradas, que são as pernas de Dürer. Essas vestimentas & essas pernas são a cauda & a vestimenta de um grande Santo Decapitado que preenche a imagem, com a distância das ancas aos ombros do carrasco, do umbigo aos olhos de Catarina, do comprimento inferior até a linha do horizonte dos limites da colina. O pescoço dividido da santa termina de acordo com as arestas agudas dos raios que partem do homem alongado, nos prolongamentos dos traços que se adensam de modo indefinido, que são menos estocada e mais gládio. A cabeça & o cabelo enrolam-se na cidade em declive & nas árvores. E na direção do moinho da roda, em rotação nova. Alfred Jarry (Perhinderion, n. 02, junho de 1896) Acima, apresentamos, como uma introdução aos novos livros da Raphus Press, a tradução de um breve comentário de Alfred Jarry para a expressiva, tumultuada e apocalíptica gravura de Dürer. A primeira edição da nova série da Raphus, centrada em traduções, terá um trabalho de Jarry para sua outra revista imagética, L'Ymagier, além de uma introdução com um retrato/exegese imaginária.
Uma narrativa produz uma série de efeitos complexos, após surgir de uma forma ou de outra em nosso universo – especialmente quando essa forma é a do livro. Os efeitos mais evidentes são especulativos, no domínio da racionalização crítica: o ensaios, a resenha, o estudo. Mas existem alguns efeitos menos visíveis – ideias truncadas, analogias indiretas, construções ficcionais apenas parcialmente possíveis. Chamo esses efeitos menos visíveis de exegese imaginária e são eles o objeto do primeiro chapbook lançado pela Raphus Press, iniciativa editorial que é um desdobramento da Bibliofagia, especializado em pequenas tiragens, obras únicas e artesanais.
Assim, The Ghost of the Western Borders é um pequeno livro de exegeses imaginárias e ensaios visuais, disponível em versão impressa e eletrônica (Epub e PDF). Visitem a página da Raphus Press para informações mais detalhadas. Aos interessados no volume, por favor entre em contato através do campo Contato para valores em Real. Basta apenas uma fonte de luz, projetada através de uma lente na direção de uma tela em branco. No meio do caminho, a luz atravessa uma chapa de vidro, brilhante como uma multifacetada jóia, pintada com cenas do cotidiano, cenas engraçadas ou dramáticas transfiguradas do cinzento cotidiano. Ou então são cenas fantásticas, de naufrágios, de fantasmas, o próprio inferno projetado em suas cores mais espalhafatosas, em suas formas mais aberrantes. O espetáculo de lanterna mágica, acessível nos dias de hoje apenas através de recriações em certas performances artísticas ou evocado nas narrativas de autores como Balzac, na visionária filosofia teológica de Swedenborg e na paciente reconstrução conceitual realizada por historiadores como Laurent Mannoni, foi a base imaginária destas narrativas, elas mesmas chapas de vidro moldadas na vida e na obra de autores únicos, à margem dos processos usuais de canonização que tornam a Cultura algo previsível.
Tais espetáculos noturnos foram traduzidos para a forma de livro pelo paciente trabalho editorial de Dan Ghetu e pela criteriosa revisão do material original pelo extraordinário Damian Murphy. Em sua forma final, o show de luz e sombra tornou-se algo mais, um grimório tão imaginário quanto o catálogo de fantasmagorias usadas por Christiaan Huygens para impressionar seus amigos com sua última invenção, a lanterna mágica. Com a diferença que Lanterns of the Old Night é real. As fotos abaixo foram gentilmente cedidas por Dan Ghetu. O livro começa a se distribuído amanhã, dia 07 de junho de 2016. Há um momento vertiginoso, que pode ocorrer diariamente ou ao menos uma vez na vida de cada um, quando percebemos que tudo ao nosso redor é oco, vazio, e que a vida é sonho. Trata-se, claro, de um clichê – verdadeiro, mas ainda um clichê. Talvez seja melhor reformula-lo: nosso tempo é imóvel. Como a flecha do paradoxo de Zenão de Eleia, vivemos na imobilidade estática, permanente. Nossos gadgets, guerras, refugiados e problemas cotidianos não passam de uma espuma que agita brevemente um mar turbulento. Assim, vivemos ainda o tempo das vanguardas artísticas. Somos movidos pelos mesmos paradoxos, nos emocionam os mesmos dramas, nos escandalizam as mesmas técnicas de épater la bourgeoisie. Talvez, isso aconteça pelo fato dos artistas envolvidos com as vanguardas no início do século XX tenham descoberto o segredo para a criação de um novo gênero narrativo e teatral: a tragédia universal – ou talvez comédia universal, pois os dois gêneros fluem em paralelo nesse novo gênero. A produção nesse gênero inédito foi única: um drama, imenso e contínuo, cujo tema central é a aniquilação da arte.
Nesse novo tipo de arte total inaugurada pelas vanguardas, o público em escala global é convidado a tomar parte em um ato no qual os artistas e suas criações são esmagados por inúmeras forças repressivas, mas mesmo assim buscam desesperadamente manter-se vivos e conscientes, a despeito da violência e das tentações que incluem a venda de almas em leilão. Assim, cada retrato, cada imagem, cada pintura, cada história, cada drama das vanguardas do século XX sugaria seu público para o interior dessa peça sem palcos, a voragem de uma outra época, aparentemente remota; quando contemplamos uma pintura como La città che sale (A cidade ascende), de Umberto Boccioni, realizada em 1910, temos exatamente essa sensação, ainda que ignoremos seu criador ou o tema central da composição. As formas dinâmicas de homens e cavalos na imagem de Boccioni levam o espectador a um abismo vertiginoso, um outro tempo, ou melhor ainda, uma outra possibilidade temporal, na qual a tensão dramática é permanente. Dessa forma, as justas preocupações de nossa época perecem desaparecer diante das incertezas da Revolução Bolchevique, da barbárie estilizada do fascismo, do cotidiano terrível da hiperinflação, das guerras civis, européias, mundiais. Se tivéssemos de batizar esse gênero de uma única obra, inaugurado pelas vanguardas do início século XX e ainda pulsante e contínuo, poderíamos empregar um termo sintético, eficaz: Conflagração. Não por acaso, esse é o título do novo trabalho de D. P. Watt, publicado pela Ex Occidente Press de Bucareste através de sua nova persona editorial, a série Mount Abraxas. O novo livro de Watt possui um formato curioso: quadrangular, algo que o editor já havia empregado na série L’homme recent mas em um formato ainda maior. A sobrecapa apresenta uma ilustração contínua (realizada por Misanthropic Art), como um pôster, a imagem de um Sol negro ao centro, mediando entre uma mão de proporções imensas, divinas, e olhos igualmente enormes, os dois campos marcados pela presença de formas humanas ornamentais. Diante dessa sobrecapa extraordinária, a capa minimalista, padrão da editora, fornece um eficaz contraponto, com sua textura de pelagem animal, seu baixo relevo e sua cor alaranjada (seguida pelo marcador de página). Logo que começamos a leitura do livro (após a extraordinária fotografia que serve de frontispício ao livro, “Multiple self-portrait in mirrors”, de Stanisław Ignacy Witkiewicz) somos surpreendidos por um folheto que nos apresenta as “Instruções para o Leitor”. Tais instruções começam da seguinte forma: “Por favor, leia este texto de uma única vez, começando precisamente às 19:30 de uma noite qualquer.” Tal procedimento, orientar o hipotético leitor em uma forma de leitura aconselhável segundo o autor, foi empregado com finalidades semelhantes por Julio Cortázar em seu experimento romanesco Rayuela (O jogo da amarelinha); como no caso de Cortázar, Watt nos convida a desobedecer as regras do jogo por ele estabelecido, o que aliás fizemos, exatamente como Des Lewis em sua excelente resenha de Conflagration (que pode ser vista aqui). Logo após esse primeiro momento de estranhamento, temos a Dramatis Personae aos moldes de uma peça de teatro. Nessa lista, surgem os nomes dos diversos inovadores vanguardistas do teatro no século XX, de Alfred Jarry a Jean Genet, de Bertolt Brecht a Eugene Ionesco, de Vsevolod Meyerhold a Samuel Beckett. Mas os textos breves do livro não constituem a estrutura tradicional de uma peça de teatro adaptada ao formato de um livro; são narrativas breves e fluidas, marcadas por uma data e um título topográfico, uma indicação de lugar como “As ruas de Trieste” ou “Galerie Montaigne, Paris”. Essas pequenas narrativas se estabelecem no equilíbrio entre o abstrato, o fantástico, o cômico e o trágico. Nesse sentido, o subtítulo é revelador: são “vinhetas imorais”, cenas breves que poderiam ser encenadas como imaginativas e críticas (ou irônicas) reformulações da história do teatro contemporâneo. Assim, o universo de Beckett ressurge no interior da França desolada pela guerra. La cantatrice chauve de Ionesco materializa-se no seu provável momento de concepção. A tragédia de Meyerhold se desenvolve com nitidez diante do leitor, até seu inevitável fim decretado pela ortodoxia stalinista. Mas esses são apenas alguns fragmentos, algumas dessas vinhetas vorazes que parecem sumarizar toda a história contemporânea e se iniciam em Braunau Am Inn, a 20 de abril de 1899. Em uma dessas vinhetas, “Sprovieri Gallery, Rome”, temos uma descrição viva e dinâmica do teatro futurista italiano. Dado momento, somos informados que as imagens empregadas como pano de fundo dessas apresentações, representações da velocidade e da força de veículos mecânicos baseadas no carnaval napolitano, “descreviam apenas a paixão de sua própria concepção”. Talvez, essa seja a melhor maneira de descrever esta pequena obra-prima de D. P. Watt, uma descrição que caberia igualmente aos intentos e utopias instáveis, frágeis, decadentes e inúteis produzidas pela perpetuamente fascinante arte das vanguardas no século XX – uma névoa, um fluxo, um fantasma, cuja intensidade ofusca e impressiona o leitor por sua própria força motriz, infinita. As três primeiras fotos abaixo foram gentilmente fornecidas pelo editor, Dan Ghetu. Foi em 2013 que a ideia do blog Bibliofagia (e de seu irmão, Bibliophage) surgiu. À época, eu estudava a ficção de J. G. Ballard pois trabalhava na tradução de The Atrocity Exhibition para o português. No meio desse percurso, percebi como a ficção fantástica e especulativa adotou, desde seus primórdios, a forma do livro, a arte de cada detalhe de um volume, como veículo de expressão para o sentido de ambiguidade e instabilidade do universo que nos cerca, uma meta usual nessa forma de ficção. O desenvolvimento dessas ideias levou à configuração do blog e ao contato com criadores de ficção fantástica em atividade, editores, autores, ilustradores. O projeto sobre Ballard já foi encerrado, outros vieram desde então, mas o blog se manteve como uma atividade extremamente prazeirosa e útil para meus estudos. Assim, por que não compartilhar o prazer que me traz a leitura e a análise desses livros?
Mas, infelizmente, está difícil manter o site vivo: há prolongados hiatos nas postagens pois cada detalhe do blog é sistematicamente pensado – escolha do livro, leitura, análise do material, elaboração do texto, captura das imagens, etc. Assim, tendo em vista a manutenção do projeto e mesmo a possibilidade de ampliar a quantidade e a qualidade dos ensaios publicados (penso, inclusive, em realizar ensaios em vídeo e entrevistas gravadas em áudio para o futuro) é que peço aos leitores, que apreciam e compreendem as duas necessidades deste trabalho (não remunerado, mas apaixonado, como a construção de barricadas segundo Charles Fourier) que colaborem com meu projeto através do Patreon. Agradeço antecipadamente a atenção e o apoio de todos. Sento-me diante de um livro: a sobrecapa é inteiramente negra, levemente brilhante. Mal consigo distinguir seu nome na lombada ou na parte frontal da sobrecapa, mas é possível ler A Distillate of Heresy, por Damian Murphy. Na única imagem da sobrecapa além do minúsculo logotipo da editora na lombada, uma pequena ilustração na qual vemos um anjo sentado sobre Saturno, a cor predominante, novamente, é o negro, agora conjugado a um dourado pálido, tonalidade necessária para a construção de volume na imagem. Retiro a sobrecapa para contemplar o livro em sua nudez: a capa, de tecido, é igualmente negra, sem qualquer adorno ou indicação de qualquer tipo que seja. Esse predomínio sombrio faz a cabeça do leitor dar voltas: estaria diante de um grimório, de um livro clandestino? De um material impresso que fosse, de alguma forma, proibido ou ao menos profano, demoníaco? O conteúdo estaria próximo desse negror que predomina na superfície externa do livro? Mas eis que estamos diante da guarda do livro: o negro finalmente cede espaço para tonalidades vermelhas em profusão, um efeito marmorizado abstrato, embora profundamente significativo. Trata-se da simulação do efeito marmorizado presente em livros antigos; ao mesmo tempo, aparentemente estamos diante de um efeito de sentido mais complexo apenas com a organização de design do volume: o negror da capa e da sobrecapa dá lugar aos tons de vermelho vivo da guarda, cores intensas e contraditórias, embora potencialmente complementares em sentido cerimonial. Pois este livro trata de cerimônias, em seus múltiplos aspectos. Mas ainda é cedo para tratar de seu conteúdo. Logo depois da guarda, encontramos uma imagem – a salamandra (de Sorina Vazelina), na forma de um “S”, esboço caligráfico que parece atingir, a despeito de sua simplicidade, a formalização de uma palavra, de um hieróglifo. Afinal, a própria letra “S” guarda o sentido sinuoso do animal fantástico (a salamandra) e parece se comunicar com os textos do livro, que tratam dos enganos, acasos e encontros fortuitos que geram efeitos cerimoniais, ritualísticos. Essa imagem caligráfica parece contrastar com a tipografia da página de título e a elaborada imagem subsequente, de uma mão que segura um coração em chamas, recorte em big close up de uma composição pictórica bem maior e mais complexa: trata-se da pintura Saint Augustine (1645-1650) do barroco Philippe de Champaigne, reproduzida aqui. Na imagem de Champaigne, o santo está em seu estúdio, desfrutando aparentemente de um momento de iluminação após intenso trabalho intelectual. Os olhos extáticos do santo convergem para a veritas brilhante como um pequeno Sol no canto da tela enquanto suas mãos seguram a pena e o coração que está em chamas pela inspiração divina. Ao destacar apenas a mão que segura o coração em chamas, o trabalho gráfico do livro desloca a imagem do santo intelectual de seu centro consolador e usual; não há mais veritas que a tudo ilumina, nem mesmo a localização espacial e o contexto geral da imagem, mas apenas o órgão sangrento em chamas, algo tanto espiritual quanto carnal, mesmo cruel, mas sem dúvida iniciatico. Como nas narrativas, essas imagens breves situadas nos paratextos do livro parecem indicar que os caminhos convencionais escondem muitos atalhos e rotas desconhecidas, que por outro lado estão longe de ser a salvação/iluminação daquele que as descobre. Há breves textos, epígrafes anônimas (seriam do próprio autor?) que preparam o leitor para os contos propriamente ditos. Em uma dessas epígrafes, lemos que o livro se destina “Aos heréticos, aos poucos, aos marginais, àqueles que voltam o rosto para a lua mais vezes que para o Sol.” Não existem imagens no restante do livro, mas elas seriam desnecessárias: a forma do volume estabeleceu uma introdução orgânica entre texto, imagens e concepção estética. Como escreveu, em outro contexto, a pesquisadora Évanghélia Stead: "Imagens e estampas, dobraduras, capas e encadernações, ornamentos, grafismo e tipografia, até mesmo a tinta e as letras, os insetos que caminham através de um deserto de papel e que foram dotados de um sentido intelectual, poético e sensual.” Damian Murphy, nesse sentido, é um narrador único ao manipular elementos inusitados no deserto branco do papel, transformando-o em uma floresta densa de signos: suas histórias possuem um sentido ritualístico, de jogo em que objetos (cotidianos ou não) e o acaso desempenham funções essenciais. Seus protagonistas são personagens únicos, cuja vida segue um sentido próprio em contraste ao aspecto mais mundano da existência, buscando saídas ritualísticos em cada pequena chance de fuga. E as edições, lançadas pelas editoras Zagava e Ex Occident Press, completam o sentido complexo dessas narrativas que se deslocam pela fluidez da realidade dos objetos cotidianos, eletrificados por significados simbólicos e míticos. Assim, o primeiro conto do livro, "A Book of Alabaster", trata de um recluso que coleciona, em sua torre, objetos únicos como um velho jogo de videogame cujo nome é o título da narrativa. Na primeira sentença do texto, temos uma síntese da visão estética e narrativa de Murphy: "Stefan vivia sozinho em sua torre de observação". Há algo de atemporal nessa expressão, cujo centro é torre, um tipo de construção militar que em geral alude à tempos primevos, Idade Média. Essa desorientação inicial do leitor é corrigida com o restante do texto, mas nunca de forma a percebemos um espaço bem definido e claro. Trata-se de uma narrativa que se desenvolve em um plano abstrato, em que os marcos físicos facilmente se perdem e se confundem com a percepção psíquica e mítica do espaço, de sua circularidade, infinidade e desdobramento ritualístico. As narrativas subsequentes desenvolvem em direções diversas essa proposta de um universo abstrato, difícil de definir ou perceber com a clareza necessária de um realismo mimético, culminando com "Permutations of the Citadel", um conto em que a realidade ficcional parece se transmutar continuamente ao redor dos personagens. Seus jogos e buscas com a realidade abrem possibilidades novas não apenas para o rito de iniciação, mas também para o sacrifício, com a visão ao mesmo tempo tenebrosa e desejável de territórios infindáveis que se desdobram por debaixo de nossas cidades, locais em que a evocação de potenciais infernais parece relativamente fácil. A cidade é um tema caro a Murphy: uma entidade crepuscular e tentacular, cuja aparência diurna e cotidiana é apenas uma de suas muitas manifestações labirínticas. As produções posteriores de Murphy – na verdade a novela "The Salamander Angel", publicada na coletânea Infra Noir, precedeu os contos de A Distillate of Heresy em alguns meses – como as novelas The Imperishable Sacraments e "The Hour of Minotaur" (antepenúltima narrativa da coletânea The Gift of Kos'mos Cometh!) desbravam caminhos novos dentro das infinitas possibilidades de combinação ritualística e lúdica em termos de narrativa. Um desses caminhos – muito bem desenvolvido na novela mais recente de Murphy, The Exaltation of Minotaur – é justamente o diálogo filosófico que se desdobra em intrincadas combinações narrativas estruturadas em torno de elementos simbólicos que permitem aos capítulos da primeira narrativa, "An Incident in the House of Destiny" ganharem títulos que aludem a formas arquetípicas: o burocrata, o anarquista, a visão, catástrofe. Mesmo a divisão de gêneros parece recuar nas narrativas de The Exaltation of Minotaur, formas complexas entre o conto e a novela que se entrelaçam em detalhes obsessivos, aspectos cíclicos que cobrem o ritual e o dotam de sentido. Murphy, nesse sentido, realiza múltiplas evocações a cada narrativa; talvez alguns dos nomes evocados possam ser reconhecidos pelo leitor: Alain Robbe-Grillet e J. K. Huysmans. Mas essa é apenas a superfície: as nuances e consequências das evocações narrativas de Murphy situam-se em uma região opaca, indefinível e perigosa que costumamos denominar imaginário, e que nem sempre é facilmente acessível. Algumas das fotos abaixo (as três últimas, respectivamente dos livros The Imperishable Sacraments e The Exaltation of Minotaur) foram gentilmente cedidas por Dan Ghetu. A narrativa não fecha, o final não se resolve – motivos, consequências, culpados e vítimas, todos esses elementos permanecem obscuros. Se uma história deixa de ser a exposição de acontecimentos dentro de uma estrutura dinâmica de causalidade, uma máquina de projeções como uma lanterna mágica – a falta de uma solução, clara ou obscura, seria um tipo de erro de composição, um defeito talvez imperdoável, a frustração do mistério insolúvel. Antes do mistério, contudo, ainda temos um último alento: a ambiguidade. Pois há diferenças entre a ambiguidade e o mistério; no primeiro caso (facilmente exemplificável pela elegante e sutil ficção de Henry James), existe uma calculada abertura interpretativa diante dos fatos narrados que resulta na polissemia explicativa daquilo que foi dito/narrado. A ambiguidade permite ao leitor o prazer do jogo controlado, a excitação diante das possibilidades de entendimento de dada realidade cujos elementos centrais parecem escapar das regras usuais de verossimilhança e lógica. O mistério não pode ser reduzido a um número possível de resultados, a uma combinatória probabilística: o mistério revela o limite da racionalidade interpretativa, da forma como nossa consciência encadeia os fatos que resultam em uma narrativa. Com o mistério, abandonamos o reino das contingências – eventualmente, das certezas – e adentramos uma região cinzenta bem próxima do sagrado.
Nesse sentido, poderíamos sem dúvida afirmar que o romance histórico Picnic at Hanging Rock (1967) de Joan Lindsay pende muito mais para o mistério do que para a ambiguidade. Escrito em momento particularmente rico da ficção australiana, com desdobramentos poderosos no cinema – poucos anos antes, Kenneth Cook lançou Wake in Fright, obra igualmente marcante e que também ganharia uma espantosa adaptação cinematográfica – Picnic narra, em seus 17 capítulos, os acontecimentos de um pouco usual dia de São Valentino na região de Mount Macedon, onde se localiza a formação montanhosa conhecida como Hanging Rock, no ano de 1900. No romance, as alunas do colégio interno de elite Appleyard College escolhem justamente o dia de São Valentino para uma excursão – o picnic do título – na região algo inóspita, próxima de Hanging Rock. Duas professoras encabeçam a excursão, para melhor controle das alunas e para evitar que o ambiente aberto, natural e selvagem não contamine de alguma forma as moças da sociedade. Mas todo esse empenho não foi suficiente: quatro alunas das mais brilhantes do colégio, Miranda, Irma, Marion e Edith, se afastam do grupo em direção da rochosa montanha. A elas se junta a professora de matemática que acompanhava a excursão, Greta McCraw. Todas desaparecem sem deixar vestígios com exceção de Edith, que retorna histérica e amnésica ao picnic e de Irma, resgatada posteriormente graças aos esforços de Michael Fitzhubert, um jovem de boa família que teve uma epifania ao contemplar as moças (em especial, Miranda) em sua definitiva rota ascensional. Mas as outras duas moças e a professora de matemática permanecem desaparecidas, apesar de todas as buscas. Enquanto a população e a polícia local elabora tabulações explicativas diversas, o escândalo causado pelo misterioso desaparecimento afeta seus sobreviventes com a intensidade dramática da catástrofe na tragédia grega, desdobrando o mistério nas consequências da impossibilidade de compreendê-lo. Mesmo após o leitor terminar a leitura, o mistério parece perdurar em seu sentido mais terrível e irracional, de tal forma que o próprio desaparecimento torna-se um evento opaco, como se as moças e a professora sumidas assumissem uma função de oferendas voluntárias em um sacrifício. Por isso, um livro que surgiu em 1987, The Secret of Hanging Rock, com o suposto capítulo de solução do mistério “descoberto” três anos após a morte da autora por seu editor astuto, enfraquece consideravelmente a narrativa ao oferecer uma solução do mistério próxima da ficção científica. Chegamos a conclusão que, se esse “capítulo perdido” não foi pura mistificação, algum editor criterioso agiu com considerável eficiência cortando o tal décimo oitavo capítulo da edição final. O final "alternativo" publicado em 1987 tornaria a narrativa de Lindsay ambígua, não mais misteriosa; a ambiguidade absorve até mesmo o sobrenatural em seu potencial de possibilidades, basta que tenhamos alguns elementos centrais do coração mesmo do enigma. No caso do desfecho misterioso de Picnic, temos apenas elementos pontuais – a data, o clima, o local, as testemunhas – irredutíveis diante das possibilidades daquilo que aconteceu de fato, o desaparecimento. Muitas são as opções explicativas possíveis – acidente, sequestro, estupro, ascensão espiritual, acidente banal – e nenhum indício que forneça vantagem a quaisquer dessas opções. O livro de Joan Lindsay fez considerável sucesso de tal forma de tal forma que já em 1975 Peter Weir, à época um promissor cineasta, realizou a adaptação do romance para o cinema. O roteiro foi feito por Cliff Green, um roteirista profissional com vários trabalhos para a televisão. Weir acabara de realizar um filme extraordinário, a comédia de humor negro The Cars That Ate Paris (1974), filme cuja concepção irônica influenciaria outras distopias motorizadas como Mad Max, de seu compatriota George Miller. Em contraste com a acidez irônica de The Cars, a captação do romance de Lindsay é sutil: a fotografia parece dominada por tons desmaiados de sépia amarelado, uma influência evidente de artistas do impressionismo australiano como Frederick McCubbin na fotografia de Russell Boyd. A sexualidade reprimida e oblíqua surge justamente nesse universo de cores desmaiadas, algo que amplia seu impacto sugestivo. As moças da escola surgem como ninfas, aparições de pinturas pré-rafaelitas com seus longos cabelos e expressões de êxtase congelado. A beleza etérea da atriz Anne-Louise Lambeth, nesse sentido, é essencial pois sua Miranda dota os jogos mais ou menos perversos de alunas e professoras de um sentido transcendente e enigmático. Assim, a adaptação de Weir possui a fidelidade do mistério com a narrativa original de Joan Lindsay, pois o filme poderia mostrar mais, ir adiante nos detalhes da escola ou mesmo formular sua explicação do enigma, mas optou por não fazê-lo. A edição do filme em blu-ray e DVD, lançada pela Criterion Collection em 2014, busca evocar a beleza evocativa da prosa de Lindsay e a visualidade impressionista e etérea da paleta de cores do filme de Weir ao mesmo tempo. Para isso, optou em primeiro lugar por lançar o filme e o livro em um mesmo estojo; a brochura e o digipak da embalagem de cada uma das mídias se harmoniza nessa opção de apresentação completa da narrativa. Nesse sentido, embora a edição do livro seja simples, a opção por empregar em sua capa não um fotograma do filme, mas uma pintura de Robert Hunt que se harmoniza, contudo, com toda a equilibrada arte do pacote (que também inclui um booklet com mais fotogramas, ficha técnica e dois ensaios sobre o filme, escritos por Megan Abbott e Marek Haltof). Pois a tipografia e os fotogramas do filme que encontramos nessa edição possuem a dupla ressonância aludida através da centralidade do personagem de Miranda, que parece se colocar de forma hipnótica no centro dos eventos, mesmo os mais inadvertidos, da narrativa tanto do livro quanto do filme. Seria ela o foco e a chave do mistério? Sabiamente, a edição de Picnic da Criterion apenas sublinha a pergunta, sem aventar hipótese alguma como resposta. O mistério é a maldição de nossa lógica, a destruição da base de nossa consciência que é a interpretação ordenada dos fatos. Toleramos até mesmo que essa interpretação forneça resultados suspeitos ou múltiplos, mas não que estes sejam impossíveis ou impenetráveis. Mas apesar de nosso horror a tais indefinições, não escapamos do fascínio daquilo que não podemos ou conseguimos explicar, elaborando teorias e lutando para reduzir o mistério a nada mas, frustrados, retomamos ao início, à contemplação estupefata da falência de nossa racionalidade explicativa. Esse caminho cíclico alimenta algumas ficções extraordinárias, e Picnic at Hanging Rock se encaixa nessa categoria. |
Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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