A narrativa não fecha, o final não se resolve – motivos, consequências, culpados e vítimas, todos esses elementos permanecem obscuros. Se uma história deixa de ser a exposição de acontecimentos dentro de uma estrutura dinâmica de causalidade, uma máquina de projeções como uma lanterna mágica – a falta de uma solução, clara ou obscura, seria um tipo de erro de composição, um defeito talvez imperdoável, a frustração do mistério insolúvel. Antes do mistério, contudo, ainda temos um último alento: a ambiguidade. Pois há diferenças entre a ambiguidade e o mistério; no primeiro caso (facilmente exemplificável pela elegante e sutil ficção de Henry James), existe uma calculada abertura interpretativa diante dos fatos narrados que resulta na polissemia explicativa daquilo que foi dito/narrado. A ambiguidade permite ao leitor o prazer do jogo controlado, a excitação diante das possibilidades de entendimento de dada realidade cujos elementos centrais parecem escapar das regras usuais de verossimilhança e lógica. O mistério não pode ser reduzido a um número possível de resultados, a uma combinatória probabilística: o mistério revela o limite da racionalidade interpretativa, da forma como nossa consciência encadeia os fatos que resultam em uma narrativa. Com o mistério, abandonamos o reino das contingências – eventualmente, das certezas – e adentramos uma região cinzenta bem próxima do sagrado.
Nesse sentido, poderíamos sem dúvida afirmar que o romance histórico Picnic at Hanging Rock (1967) de Joan Lindsay pende muito mais para o mistério do que para a ambiguidade. Escrito em momento particularmente rico da ficção australiana, com desdobramentos poderosos no cinema – poucos anos antes, Kenneth Cook lançou Wake in Fright, obra igualmente marcante e que também ganharia uma espantosa adaptação cinematográfica – Picnic narra, em seus 17 capítulos, os acontecimentos de um pouco usual dia de São Valentino na região de Mount Macedon, onde se localiza a formação montanhosa conhecida como Hanging Rock, no ano de 1900. No romance, as alunas do colégio interno de elite Appleyard College escolhem justamente o dia de São Valentino para uma excursão – o picnic do título – na região algo inóspita, próxima de Hanging Rock. Duas professoras encabeçam a excursão, para melhor controle das alunas e para evitar que o ambiente aberto, natural e selvagem não contamine de alguma forma as moças da sociedade. Mas todo esse empenho não foi suficiente: quatro alunas das mais brilhantes do colégio, Miranda, Irma, Marion e Edith, se afastam do grupo em direção da rochosa montanha. A elas se junta a professora de matemática que acompanhava a excursão, Greta McCraw. Todas desaparecem sem deixar vestígios com exceção de Edith, que retorna histérica e amnésica ao picnic e de Irma, resgatada posteriormente graças aos esforços de Michael Fitzhubert, um jovem de boa família que teve uma epifania ao contemplar as moças (em especial, Miranda) em sua definitiva rota ascensional. Mas as outras duas moças e a professora de matemática permanecem desaparecidas, apesar de todas as buscas. Enquanto a população e a polícia local elabora tabulações explicativas diversas, o escândalo causado pelo misterioso desaparecimento afeta seus sobreviventes com a intensidade dramática da catástrofe na tragédia grega, desdobrando o mistério nas consequências da impossibilidade de compreendê-lo. Mesmo após o leitor terminar a leitura, o mistério parece perdurar em seu sentido mais terrível e irracional, de tal forma que o próprio desaparecimento torna-se um evento opaco, como se as moças e a professora sumidas assumissem uma função de oferendas voluntárias em um sacrifício. Por isso, um livro que surgiu em 1987, The Secret of Hanging Rock, com o suposto capítulo de solução do mistério “descoberto” três anos após a morte da autora por seu editor astuto, enfraquece consideravelmente a narrativa ao oferecer uma solução do mistério próxima da ficção científica. Chegamos a conclusão que, se esse “capítulo perdido” não foi pura mistificação, algum editor criterioso agiu com considerável eficiência cortando o tal décimo oitavo capítulo da edição final. O final "alternativo" publicado em 1987 tornaria a narrativa de Lindsay ambígua, não mais misteriosa; a ambiguidade absorve até mesmo o sobrenatural em seu potencial de possibilidades, basta que tenhamos alguns elementos centrais do coração mesmo do enigma. No caso do desfecho misterioso de Picnic, temos apenas elementos pontuais – a data, o clima, o local, as testemunhas – irredutíveis diante das possibilidades daquilo que aconteceu de fato, o desaparecimento. Muitas são as opções explicativas possíveis – acidente, sequestro, estupro, ascensão espiritual, acidente banal – e nenhum indício que forneça vantagem a quaisquer dessas opções. O livro de Joan Lindsay fez considerável sucesso de tal forma de tal forma que já em 1975 Peter Weir, à época um promissor cineasta, realizou a adaptação do romance para o cinema. O roteiro foi feito por Cliff Green, um roteirista profissional com vários trabalhos para a televisão. Weir acabara de realizar um filme extraordinário, a comédia de humor negro The Cars That Ate Paris (1974), filme cuja concepção irônica influenciaria outras distopias motorizadas como Mad Max, de seu compatriota George Miller. Em contraste com a acidez irônica de The Cars, a captação do romance de Lindsay é sutil: a fotografia parece dominada por tons desmaiados de sépia amarelado, uma influência evidente de artistas do impressionismo australiano como Frederick McCubbin na fotografia de Russell Boyd. A sexualidade reprimida e oblíqua surge justamente nesse universo de cores desmaiadas, algo que amplia seu impacto sugestivo. As moças da escola surgem como ninfas, aparições de pinturas pré-rafaelitas com seus longos cabelos e expressões de êxtase congelado. A beleza etérea da atriz Anne-Louise Lambeth, nesse sentido, é essencial pois sua Miranda dota os jogos mais ou menos perversos de alunas e professoras de um sentido transcendente e enigmático. Assim, a adaptação de Weir possui a fidelidade do mistério com a narrativa original de Joan Lindsay, pois o filme poderia mostrar mais, ir adiante nos detalhes da escola ou mesmo formular sua explicação do enigma, mas optou por não fazê-lo. A edição do filme em blu-ray e DVD, lançada pela Criterion Collection em 2014, busca evocar a beleza evocativa da prosa de Lindsay e a visualidade impressionista e etérea da paleta de cores do filme de Weir ao mesmo tempo. Para isso, optou em primeiro lugar por lançar o filme e o livro em um mesmo estojo; a brochura e o digipak da embalagem de cada uma das mídias se harmoniza nessa opção de apresentação completa da narrativa. Nesse sentido, embora a edição do livro seja simples, a opção por empregar em sua capa não um fotograma do filme, mas uma pintura de Robert Hunt que se harmoniza, contudo, com toda a equilibrada arte do pacote (que também inclui um booklet com mais fotogramas, ficha técnica e dois ensaios sobre o filme, escritos por Megan Abbott e Marek Haltof). Pois a tipografia e os fotogramas do filme que encontramos nessa edição possuem a dupla ressonância aludida através da centralidade do personagem de Miranda, que parece se colocar de forma hipnótica no centro dos eventos, mesmo os mais inadvertidos, da narrativa tanto do livro quanto do filme. Seria ela o foco e a chave do mistério? Sabiamente, a edição de Picnic da Criterion apenas sublinha a pergunta, sem aventar hipótese alguma como resposta. O mistério é a maldição de nossa lógica, a destruição da base de nossa consciência que é a interpretação ordenada dos fatos. Toleramos até mesmo que essa interpretação forneça resultados suspeitos ou múltiplos, mas não que estes sejam impossíveis ou impenetráveis. Mas apesar de nosso horror a tais indefinições, não escapamos do fascínio daquilo que não podemos ou conseguimos explicar, elaborando teorias e lutando para reduzir o mistério a nada mas, frustrados, retomamos ao início, à contemplação estupefata da falência de nossa racionalidade explicativa. Esse caminho cíclico alimenta algumas ficções extraordinárias, e Picnic at Hanging Rock se encaixa nessa categoria.
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Alcebiades DinizArcana Bibliotheca Arquivos
January 2021
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